Sebastião Pereira: o camponês que virou odontólogo! Crônica das tradições de São Miguel do Cajuru!

Crônica das tradições de São Miguel do Cajuru!

José João Bosco Pereira – 12/04/09

Era pequeno, meus olhos abriam-se pela manhã e a novidade por eles entravam. Os ouvidos escutavam os sinos e os foguetes do sábado de aleluia. Estranho mesmo era ver Judas apedrejados –se a fé cristã ensinara nas sete palavras de Jesus na Cruz o perdão. Cores nas fitas das bandeirolas dos santos tremulando ao vento. O entrar inquieto de pessoas e crianças na Igreja de São Miguel do Cajuru. Nós, de roupas novas, desfilávamos tímidos ou alegres pelos adros e ruas empoeiradas do arraial. Vó Rola serviam-nos seu delicioso café ao fogão a lenha. Tia Chiquita ora cantarolando ora se irritando comigo e os outros irmãos, ao todo oito. Primos e tios ali – cúmplices de uma história que não se repete. Papai saia à rua a parolar com conhecidos e tomar bênção dos padres, era a novidade. Riamos das figuras da semana santa – um misto de seriedade e comicidade. Figuras puras da religiosidade – sentiam-se importantes mesmo nas rotas roupas ou nas vestes coloridas dos personagens bíblicos em procissão nas ruas do arraial. O leite e o café quentinhos tem gosto de saudade ainda hoje quando a memória deixa fluir tais lembranças da minha meninice. Já nos sentíamos um com eles, embora tão diferentes dos garotos com camisas de xadrez do arraial. Mamãe nos arruma com esmero e ainda fazia a comida gostosa de fogão a lenha na casa do lado que vovó Rola nos destinou. Depois da morte do papai, os filhos do Tio Geraldo apossaram-se dela o mais rápido possível – aumentando os despojos da herança – já tinham a casa lá em baixo do Tio Quinca e a casa do Botinha ficara para outro filho do Tio Geraldo. Tia Chiquita era submissa a eles e os defendia. Éramos para ela uma espécie incomoda de metidos cidadãos e forasteiros enxeridos. Quando fazia seca, era poeira só. Quando chovia, era lama por toda parte. Como lá ventava forte e o frio vinha de roldão. Nas janelas, o vento nos resmungava uma linguagem incompreensível dos espíritos da noite. Nos catres de madeira, escutávamos o pingar das coteiras da casa colonial de telhas curvas e antigas. O casarão ficava no centro da praça do arraial, na esquina, voltado para a igreja. O chão era de madeira larga e corrida. Vó Rola nos contava as histórias do diabo se encantando pela moça do arraial e o cão descobria o rabo do danado. Na sala, vó Rola tinha o xodó do oratório de Nossa Senhora de Fátima – linda imagem. O relógio de parede, antigo, de forma arredondada, desapareceu misteriosamente certa vez. Na sala de visita, os retratos de meus bisavós. No canto, havia um pequeno quarto, onde papai instalou o seu humilde consultório dentário. Quantas vezes, atendia ali. Fátima, minha irmã, sempre o ajudava. Ia-nos visitar a Profa.. Teresinha e os primos da roça! Papai sabia de cor e em latim o De Profundis – salmo: Do mais profundo, clamo a ti, ó Deus! Na praça, árvores apreciadas por papai. Da casa paroquial, acima do barranco, aconteciam os sermões ao ar livre e seguiam-se as procissões. O povo via os despojos de Judas - uma forma descontraída de rir em plena semana santa. À medida que Judas deixava suas roupas para os moradores que eram citados por nomes mesmo, todos ríamos. O povo era feliz e não sabia naquele momento. O sagrado e o profano assim se davam as mãos sem ressentimentos e a igreja e o povoado legitimavam tais práticas. Que não sei de onde vinham! Tudo valeu a pena porque nossa alma não era pequena, como disse certa vez, o poeta luso Fernando Pessoa. A banda do arraial ou outra convidadas seguiam animando os peregrinos e devotos de São Miguel. Era tempo do Padre Miguel, Pe. Lorival, Pe. Tibúrcio, Pe. Dotivo, Dom Delfim, Pe. Pedro Scaramuça e as autoridades ladeavam os andores. Tio Bisico e a sua cachorra Lambreta eram infalíveis com presença nos vendas do Doca e do escrivão. As vitrines de doces coloridos e pés-de-moleque nos encantavam, deixando-nos atentos, e a boca em água. Papai conversava horas e horas com os amigos. Os leilões aconteciam à noite na esquina entre os casarões do Tio Quinca e da venda do Osvaldo. Era para ajudar o santo, o dinheiro era para a igreja. Como era central e linda ainda hoje a Igreja de São Miguel. As ruas em chão batido. Hoje um tímido asfalto separa um pouco deste tempo. Lá no cemitério estão os restos de meus antepassados: meu pai, meus avós, madrinha Preta, Pe. Miguel, Zé Lucas, Tia Seda, Tia Corina ou Tia Chiquita, Tio Bisico, tantos outros do arraial. Que saudades da minha infância querida que não volta mais... como meu pai costumava recitar os versos de Casimiro de Abreu. Quero dedicar essa descrição a todos os amigos de meu Pai Sebastião Pereira, o dentista, aos parentes e devotos de São Miguel do Cajuru. Papai nos pedia em vida para enterrá-lo lá. Rezem pelas almas deles. Alma de Pe. Miguel não deixe estas tradições nunca morrem. Amém..

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José João Bosco Pereira

“Onde nasceu, morreu!” O Nhozinho da Rola era o apelido de meu pai. Sebastião Pereira nasceu no Ribeirão do Chaves, região limítrofe entre São Miguel do Cajuru, hoje Arcângelo, distrito de São João Del-Rei, e Madre Deus de Minas. As terras do Chaves foi sendo dividida entre os filhos do casal Maria Luiza de Jesus, Dona Rola, e Francisco de Sales Pereira, Vovô Rola: Tio Geraldo, Tia Chiquita, Tia Ceda e Tia Tunica. Vovó Rola, viúva foi viver na praça de Cajuru, em uma casa de esquina, com o irmão tio Quinca, que morava logo a baixo. Vovó, devota de Nª. Srª de Fátima, participava das missas no arraial. Ela era alegre e suave, olhos azuis. Cantava, gostava de contar as histórias de moça, seus apertos na criação dos filhos e como rompeu a viuvice. Vovó morreu com 93 anos. Papai amava aquele arraial, toda festa de São Miguel participava com toda família. Lembro como hoje, em seus apontamentos: este arraial teve imprensa Tribuna de Cajuru, Pharmácia, lojas diversas, muita gente. Os amigos do lugar foram tantos, desculpe-me se esqueço muitos: O mais famoso foi o santo Padre Miguel Andrade. Nas missas, procissões, festas e leilões, o som gostoso da banda de Cajuru nos cativava. Na horta da vovó Rola, tinha arvores e era grande, lá eu e irmãos brincávamos muito. As jabuticabeiras eram lindas e os frutos grandes. Pai ia ao arraial de fusca, vemaquete, chevrolet, Kombi. O padre Gregório seu colega de internato tornou-se nosso amigo também. Éramos ainda pequenos. Nessa casa, ficava à porta deste beco da Assunção, em São João Del-Rei, a esperar papai chegar do Banco da Lavoura altas horas da noite. Com esse sacrifício, fez odontologia em Alfenas, onde nasci. Depois fez advogacia em Conselheiro Lafaiete. Papai era bom e amigo, porém, cansado pela luta diária e desgastante do dia no banco (naquela época, tudo era feito à mão, nada de informatização e bando de dados em computador), creio que era por isso que ficava nervoso e impaciente nos meus deveres de casa. Isso o deixava chateado! Que saudade! Havia coisas inesquecíveis em nossas viagens nas vespas e lambretas: no meio rural, ficávamos em fazendas – eu dormia enquanto ele, com os amigos, em baralho se distraia. Lembro nos dois cortando estradas sem fim – passando rápido em mata-burros para não sermos surpreendidos pelo boi bem próximo. Eram aventuras de filme em branco e preto, claro não faltava a vida das cores, principalmente a cor preferida de meu pai: o verde. Ele teve duas bicicletas Haley, em uma delas, na garupa, agarrei a perna – talvez tivesse 5 anos. No posto de saúde, perto do Carmo, corre da agulha de uma das vacinas, papai teve que correr também, só que atrás de mim, que havia já bem adiantado – tudo por causa do medo da agulha. Lembro-me do fordinho na Rua São João, da moto antiga de papai, dos gabinetes, da vitrola cor de ouro. Lembro de uma visita de tia Augusta, caiu um raio perto quando chovia e eu senti o subir do raio em meu corpo – mas não morri. Papai comprava banquinhos e mesinhas para a gente almoçar e pratos de latão. Na Rua São João, guardo lembranças primeiras de minha vida: as chuvas, os fogos de artifícios a salpicar o céu noturno em direção ao são Caetano, festas da histórica São João, o pimentão que comi achando ser tomate, a voz e o rosto de Sr. João nosso vizinho, o rouxinol que apertei à mão tentando segurar para mim e acabou por matá-lo - isso me deixou por muito tento me sentindo culpado, o susto do Tião da folia de Reis e eu apertando em choro o vestido lindo de minha mãe, as rodinhas de danças dos meninos e meninas na rua. E cantávamos:” Meu amor brigou comigo e me deixou na solidão como dói meu coração... Ah, se ela viesse, eu diria para me perdoar... vem depressa matar meu desejo... lá, lá, lá...” Lembro das canções vinda de rádio ou vitrola... Depois, mudamos de novo, para a General Osório...

Meu pai foi meu melhor amigo em vida!

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A FLOR DO MARACUJÁ – versão caipira. Homenagem a Sebastião Pereira - declamador

Buscai o Senhor enquanto pode ser achado: invocai-o enquanto ele está perto. Isaías 55, 5-6. Vinde a mim os que estão cansados, eu os aliviarei, porque sou manso e humilde de coração.

A FLOR DO MARACUJÁ – versão caipira

Parodiando Catulo Cearense - De José João Bosco Pereira,

Para Sebastião Pereira (in memóriam).

Maracujá já foi branco!

Eu posso inté lhe ajurá.

Mais alvo qui a garça,

Mais brando do que o lua!

Quando a flor amanhecia

Lá pros cunfim do sertão,

Maracujá parecia

Um ninho de argodão.

Nosso sinhô Jesuis

Foi condenado a morrer

Numa grandi cruis

Longe daqui como o quê

Pregaro Cristo a martelo,

E ao vê tanta crueza

Ocarpinteiro leva o madeiro

A natureza chora di tristeza

O sangue de Jesus Cristo

Sangui pisado de dô

Nus pé du maracujá

Tingia todas as flor

Eis aqui seu moço

A estoria que eu vi contá

A razão proque nasce roxa

A flor do maracujá.

SUSPIRO PELA ÁRVORE

A árvore, filho meu, tem verde alma!

Ela doa-nos: abrigo, nutrição...

Semente sua e brotos vêm da lama:

O fruto, sim! E não, desnutrição!

Esta Voz diz: - Zaqueu sobe sem calma,

Veja, ausculta Cristo do Jordão?

É passagem de Deus em cada palma,

E Jesus pede: - Desça, dou Perdão!

À sombra, contemplaram o que lembra

O futuro em hinos – Deus relembra:

Plantas na Terra: mar de verdes velas...

As árvores não são contra suas gentes:

Para as florestas, todos são viventes.

Vêm logo, filhos meus, à sombra delas!

TAMBÉM HÃO DE ME SUPORTAR – 30/08/08

Homenagem a Tião Milagre (in memoriam)

Ao meu canto, só e silente

E perdoei. Tive pena de animais e gente.

“Tive raiva de muita gente.” (Milagre)

Querem apenas saber meu paradeiro.

Ergui prece a Deus primeiro

Denunciei o contraditório

Suportaram meus defeitos

Torceram pela minha fatalidade

E eu dei a volta por cima.

Ah, essa tendinite!

Olho o crucificado

Esfrego o olhar turvo,

Indignado curvo...

Nunca curvo ante

esta hipócrita cumplicidade

desta perversa sociedade.

Alguns agora dizem: -A pomba caiu do céu.

Atiraram pedra! Eu também errei

A vítima que se oculte como réu.

PROVE O CONTRÁRIO.

Todo mundo É bom.

Ou quase bom

Se não sofresse

Do pecado original.

E alguém dissesse

Que eu devo ser original

No capitalismo

Ocidental.

No nosso cristianismo

Superficial.

Todo mundo

É quase mal

Ou bem mal

Até que prove o contrário.

GRATUIDADE

Quero agradecer tua graça

Que não passa

Em cada amanhecer

Em cada anoitecer

Ele me basta

E penetra além

Desta casca

E pulsa dentro de mim

E ela não me arrasta

E não me afasta nunca

De ti, Senhor.

HIPOCRISIA

Hoje sinto o que sentias

Quando as coisas são arranjadas

E você, fora.

São coisas que lá dentro

Ficam estranhas.

E mexem co nossas entranhas.

E respiro fundo

E junto de mim

Mantenho o silêncio

E observo os homens e os filhos dos homens,

Como ficam nos arranjos

E querem ser atores

E não frios objetos

Deste sistema hipócrita.

ATIRANIA DESTE TRABALHO

Frustam-me os cartões e relógios de ponto.

São prisões inúteis de medir o tempo.

Foram feitos para os acomodados

Não quero a chefia tirânica

Que persegue e engana com seu olhar

Fútil, fingido e indolente.

Nem aceito seus sequazes

Cuja bajulação esconde o desejo de subir e ter poder.

Para vigiar querem algo mais

E delatar logo.

Amofo todos os que se grudam ao poder

E o querem tão-só.

Querem ser superior aos outros.

Aboreço-me com os elogios

Para massagear egos...

Protesto contra os submissos,

Os que adulam e deixam os chefes

Pisarem só para não se imporem.

Que pena será a vida toda?

Se há autoritarismos, existe quem

Os credita facilmente.

Deixam que algum Tiradentes se apresente!

Sairemos bem disso após

A morte do herói.

Abaixo os tiranos e cúmplices malditos

Que apipocam e apodrecem os ambientes de trabalho.

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José João Bosco Pereira, natural de Alfenas (25/03/61), é filho de Sebastião Pereira e Maria das Mercês Nascimento Pereira. Possui graduação em Letras (1995) pela Universidade Federal de São João Del-Rei – UFSJ; em Filosofia e Teologia (1981-86) e pós-graduação em Educação Especial (2001-2) pela UFLA. Lançou Momentos Poéticos (24/out./2006). Prefaciou obras. Cronista desde 2004. Professor desde 1992. Lecionou Comunicação e Expressão no Centro de Ciências Gerenciais – UNA/BH (1999-2002). Sua vocação à poesia e a crônica vem da vida familiar, da pessoa de seu pai Sebastião Pereira (20 de janeiro de 1932 a 28 de janeiro de 1991). Teve diversas participações em eventos culturais como contador de histórias e poeta.

Para contato: joseboscolpp@bol.com.br.

Mais informações no www.blig.ig.com.br/poetajoaobosco

J B Pereira
Enviado por J B Pereira em 06/12/2014
Reeditado em 07/12/2014
Código do texto: T5060627
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