A Guardiã do Fogo - Capítulo 1
O Cemitério de Tenebra
I
A minha história começa em Tenebra, quando meus pais alugaram uma casa a um quilômetro do cemitério. E adivinha para onde dava a vista da minha janela?
Ele não era muito grande, e também não era uma coisa bonita, muito menos relaxante. Na verdade, o fato de ficar encarando, ou apenas olhar para aquela paisagem fúnebre, causava arrepios.
Mas, com o passar do tempo, me acostumei com aquele local mórbido. Ficou rotineiro, até normal e, em algumas vezes, agradável.
Quando eu brigava com a minha mãe, ou ficava de castigo no meu quarto, costumava ir chorar na janela. Comecei a passar mais tempo olhando o cemitério, principalmente quando estava triste, irritada ou quando Hector e Danielle viajavam por muito tempo.
Pelo fato de ficar muito tempo ali, encarando aquele ambiente infeliz, eu acabei por guardar na minha memória, em meu pensamento, o lugar de cada lápide, cada túmulo, cada mausoléu. Me concentrar nisso, fazia com que eu acabasse divagando depois, sonhando com outros mundos, outras dimensões. Com uma vida diferente, onde eu fosse verdadeiramente feliz.
Bizarro, não é mesmo?
II
Era Janeiro, o tempo estava quente, mais do que agradável. Eu estava de férias e briguei com a minha mãe por causa de uma conta de luz que vencia naquele dia, mas esqueci de pagar e não tinha mais onde pagá-la. Acabei me irritando e, como não estava a fim de levar um sermão dela, peguei meu mp3 e meu celular e fui dar uma volta pela rua para refrescar a mente.
Liguei o aparelho e comecei a ouvi-lo. Olhei as horas em meu celular: quatro e meia da tarde. Parecia que as horas eram eternas. O relógio não andava.
Fui andando, subindo a rua, ouvindo música e divagando. Depois de uns quinze minutos, mais ou menos, no topo da rua, meu mp3 falhou, fazendo uns barulhos agudos e chiados; ao mesmo tempo, o celular tocou alto como um louco. De repente, começou a ventar muito forte, fazendo meus cabelos, que estavam soltos, baterem no meu rosto, cobrindo a minha visão e incomodando os meus olhos. Arranquei os fones dos ouvidos, mas agora também havia folhas voando e batendo com força em mim; entrei em desespero. No momento em que virei para voltar por onde vim, tudo parou.
Consegui ver um portão bem velho, abrindo e rangendo alto. No arco em cima dele, conseguia-se ler Cemitério de Memórias.
E eu estava lá, em frente ao lugar que tantas vezes vi da minha janela. Coloquei um fone no ouvido, como estava funcionando normalmente, desliguei e guardei. Peguei o celular e fui ver quem tinha me ligado. Onde deveria aparecer o número da pessoa que ligou, estava registrado “Sem número”. A data e a hora estavam certas.
Respirei fundo, tomei coragem e andei em direção ao portão. Atravessei com receio e continuei andando... Dei uma olhada em volta, mas não consegui ver ninguém, o cemitério estava vazio, exceto por mim.
Era um cemitério em uma colina. Havia filas e filas de lápides alinhadas uma atrás da outra, chegando a ser bonito. Do lado esquerdo, havia os túmulos mais simples. Do direito, ficavam os maiores, mais bonitos. Eram os falecidos das famílias mais importantes de Tenebra, ou as pessoas que podiam pagar pelo alto preço daquelas construções.
Espalhados entre esses últimos havia poucos mausoléus. Continuei andando distraída, lendo os nomes das pessoas que ali descansavam para sempre. Como era de se esperar, não conhecia nenhum deles e, quando reparei, já estava na frente do mausoléu da família Mendes... A minha família.
A família da minha mãe morava na cidade há muitos anos, foi o patriarca que mandou construí-lo, pois sofria de leucemia e sabia que seu tempo aqui era pouco. Ele queria que a família ficasse junta após a morte.
Era grande e lembrava uma construção romana, por fora, com duas colunas ao lado da porta. Me aproximei e girei a maçaneta. A porta rangeu um pouco e abriu.
A luz invadia o ambiente pelas janelas que ficavam bem perto do teto. Olhei em volta. Era toda revestida com pisos e azulejos brancos, havia várias tampas de mármore cinza que cobriam as paredes direita e esquerda até a metade. Comecei do lado direito e fui contornando o mausoléu por dentro, até chegar à última inscrição.
Estava escrito o meu nome, mas não continha data, nem nada. Fiquei encarando aquelas letras douradas por uns dois minutos, mais ou menos.
De repente, ouvi atrás de mim:
– Moça? Aqui é particular. Você não pode entrar aqui, não!
Me virei em direção à voz. Era um senhor já de idade, devia ter seus sessenta ou setenta anos. Era baixo e um pouco curvado, já estava com todos os seus fios brancos e com certa falta de cabelo no topo de sua cabeça. Usava uma calça social cáqui, uma camisa social branca, e carregava nas mãos um molho de chaves. Ele me olhava como se eu estivesse ali para fazer algo ruim.
– Sinto muito, senhor. Mas esse mausoléu é da minha família e... Eu só estava dando uma olhada. – dei de ombros.
– Mas não é muito tarde para uma moça estar visitando os parentes mortos? Já está quase escuro e o cemitério pode ser muito perigoso à noite... – ele tossiu – É melhor que você vá embora. Passear na rua a essa hora não é uma boa ideia, sabe?
– Já escureceu? – me espantei. – Nossa... Acho que acabei me perdendo aqui. É melhor eu ir, mesmo.
Quando terminei de falar, lancei um olhar para a tampa onde estava escrito o meu nome, mas a encontrei em branco, sem nada escrito. Achei tudo aquilo muito estranho, claro, mas voltei à realidade ao ouvir o senhor me apressando, impacientemente, para ir embora.
– Vamos, vamos, moça! – e ele passou pela porta.
Segui aquele homem que, naquele momento, parecia nervoso como se soubesse que algo ruim poderia acontecer se eu continuasse naquele lugar... Ele trancou a porta do mausoléu assim que passei e me guiou em silêncio até o portão. Enquanto andávamos, ele olhava em volta como se esperasse algo acontecer, me deixando assustada. Assim que atravessei o velho portão enferrujado do cemitério, o vento me deu um abraço frio, causando arrepio. O senhor passou uma corrente pesada e apressadamente fechou um cadeado que aparentava ser novo.
– Obrigada, senhor.
Resmungos.
Virei e fui andando a passos largos pela rua. Dez minutos depois, já entrava pela porta da minha casa. Estava completamente escuro e o vento cantava uma melodia estranha.
III
Minha mãe apareceu na sala. Ela tinha trinta anos, mas com a aparência de alguém com trinta e cinco. Anos esses ganhos por ser excessivamente dedicada à família e à casa.
Ela era mais alta que eu, com cabelos castanho claro e lisos. Seus olhos eram verdes e de uma cor mel perto da pupila.
– Isso é hora de chegar em casa? – falou brava.
– Desculpa, me perdi no tempo, ok! Acontece, sabia?
– Não ouse me responder nesse tom, mocinha. Quer ficar de castigo nessas férias, é?
– Não, mãe.
– Então se comporte mais. Da próxima vez, avise para onde vai e quando vai voltar, porque eu fico preocupada.
– Eu vou avisar. – dei as costas e fui tomar um banho.
– Volte aqui, ainda não terminamos! – ouvi-a berrando da sala.
Depois de me refrescar com o banho, e para evitar ouvir o resto do sermão da minha mãe, coloquei um short, uma camisa, e fui direto para a cama. Meia hora depois, ela apareceu no meu quarto.
– Sofia? Ainda está acordada? – sua voz saiu suave.
Como fingi que já estava dormindo, ela deu meia-volta e fechou a porta, deixando que eu voltasse para os meus pensamentos. Estava um pouco assustada por ter visto meu nome naquela tampa. Poderia ser apenas a minha imaginação, mas se fosse verdade, o que houve ali? E por que o velhinho estava com tanto medo? Estava acontecendo algo, mas... O quê?
No dia seguinte, acordei cedo, levantei e segui o cheiro do café até a cozinha. Comi algo e saí para o quintal, onde encontrei minha mãe com uma cara irritadíssima podando suas rosas. Sentei nos degraus perto da porta de entrada e tomei um pouco de Sol. Cansei de ficar lá esperando que a bomba explodisse, então levantei e fui dar uma volta pelo gramado. Andando e pensando na vida, deparei com uma visão estranha: no topo da colina, dentro do cemitério, onde ainda não havia nenhuma lápide, brilhou uma luz branca, seguida de uma roxa. De repente, o cemitério ficou com uma aparência muito mais assustadora, o que fez meu corpo inteiro ficar em alerta.
Todo domingo, perto do almoço, sempre havia algumas pessoas que passavam próximo à minha casa, voltando do cemitério. Parecia um ritual; todo domingo era dia de visitar os mortos, levando flores e as deixando em cima dos túmulos. Mas, naquele dia, fiquei certo tempo no quintal e não passou ninguém.
A rua estava deserta e, assim como o cemitério, parecia que uma névoa maléfica os estava encobrindo, o que me deixou mais assustada ainda.
De onde vinha aquela névoa, ninguém sabia.
– Mãe, depois eu volto. – falei apressada.
– Para onde você vai?
– EU JÁ VOLTO!
Saí correndo de casa, passei pelo portão e subi a rua correndo. Estava só de camiseta, short e chinelos. Quase tropecei duas vezes, mas em cinco minutos cheguei ofegante à frente do cemitério. Estava do mesmo jeito de quando saí na noite anterior: a mesma corrente pesada e o cadeado novo. Não tive tempo para pensar em qualquer coisa, minha curiosidade me fez pular o muro e, quando dei por mim, já estava aterrissando do outro lado do portão.
Corri até a parte sem túmulos, desviando de árvores, lápides, mausoléus e todo o tipo de coisa. Quando cheguei ao topo da colina, vi o mesmo velhinho da noite anterior caído no chão, com cortes profundos nos braços e um sangramento na testa ao lado direito, perto das sobrancelhas brancas.
Ele estava deitado de bruços em cima de um símbolo vermelho desenhado no chão, na forma de um pentagrama. E em cima do desenho havia velas roxas, que estavam apagadas, mas ainda soltavam uma fumaça inebriante. No centro, alguns pedaços de galinhas destrinchadas, e o desenho vermelho, que só percebi depois, fora feito com o sangue das galinhas.
– MEU DEUS!
Me ajoelhei rapidamente ao lado do velhinho e cheguei perto de seu rosto, que estava virado para o lado, para ver melhor a situação. O corte na testa não era profundo, e o sangue já estava um pouco coagulado. Percebi que, apesar de ele estar machucado, estava acordado e respirando. Sussurrou algo que precisei chegar mais perto para poder ouvir.
– Vá embora... Vá... Embora. – falou com dificuldade.
– Não posso te deixar aqui! Como posso te ajudar? – perguntei aflita.
– Vá, moça... Agora...
Nesse momento, ouvi vários sussurros tristes e alguns gritos agudos que machucaram meus ouvidos, me fazendo fechar os olhos pela dor e sem me deixar entender o que diziam.
O velhinho apertou ainda mais a minha mão.
– Reze, moça. Reze forte, e não abra os seus olhos por nada, entendeu?
Eu estava com muito medo, mas mesmo assim comecei a rezar, crente de que algo ainda fosse acontecer. O velhinho soltou a minha mão e, no mesmo momento, abri meus olhos lentamente para ver várias pessoas à nossa volta que, em minha opinião, estavam todos mortos. Possuíam uma aparência assustadora, e havia uma distorção estranha em volta dos corpos. Mas eram muitos, devia ter no mínimo uns cinquenta ali, porém uma mulher chamou minha atenção, ela estava à minha frente usando um vestido branco e simples. Seu cabelo era loiro e curto, ela não era bonita, nem feia, apenas comum.
Olhava direto para mim, com um sorriso simpático. Sua pele era pálida, mas seus lábios vermelhos. Pisquei uma vez, e todos sumiram. Pisquei mais uma vez, estava tudo normal. Não apareceu mais ninguém. Levantei e ajudei o velhinho a se levantar também.
– Vamos, se apoie em minhas mãos. Isso, agora força para levantar.
– Vamos, vamos. Precisamos sair daqui logo! – ele falou com urgência na voz.