Arte de Bonecos
O banco da praça foi repintado, a tinta branca que reveste o estrado de madeira ofusca à luz do sol. Não só ali, mas tudo ao redor cheira a tinta fresca, a exemplo do meio fio e dos troncos das árvores, estes caiados até a metade.
No sentido leste, uma rua estreita ganha ligeira ascensão e logo acima do seu topo situa-se a casa do mestre Ambrósio, famoso por criar a fala de um boneco espalhafatoso.
Já avançado em idades, este brilhante morador passou boa parte da vida alegrando a molecada praticando o ventriloquismo, ou seja, por intermédio da sua voz fazia com que um personagem feito de madeira tivesse vida própria.
Noites de domingo ele descia a ladeira com o seu ilustre amigo e sentava-se no banco da praça onde lhes esperava numeroso grupo de crianças.
Logo ao chegar, manipulava as mãos do Briguilim - este é o nome do seu parceiro - e se apresentava com tamanha irreverência que a meninada respondia numa estrepitosa saudação.
“Sou Briguilim cabra macho
sou rapaz namorador
das meninas eu me acho
verdadeiro prosador”
A voz do mestre era suave, às vezes; outras, ia do fanho ao gasguita e suas mãos contorciam o boneco de todas as formas.
Os olhos esbugalhados de Briguilim afrontavam os presentes enquanto agitavam-se suas pernas desengonçadas e, a certa altura, meninos e meninas imitavam-lhe os gestos em total descontração.
Olhando-se ao redor, toda a praça entrava no clima:
“Venha, minha senhorita
traga cá o seu milorde
Briguilim nunca se irrita
num belisca e nunca morde”
Durante muitos anos mestre Ambrósio distribuiu vasto repertório de histórias, das mais engraçadas. Viajou no imaginário daquela gente sempre fazendo malabarismo com toda a sorte de sonhos.
Atualmente o banco recém-pintado serve apenas como referência de uma época de folguedo e diversão.
Vítima de paralisia, mestre Ambrósio já não anda, pouco gesticula e move-se com a ajuda de familiares.
Briguilim, seu fiel companheiro, do alto de um velho guarda-roupa a tudo olha em angustiosa imobilidade.