Mulas, moleques, mulatos em Boris Fausto, Edusp, HISTÓRIA DO BRASIL – 1996

Boris Fausto, Edusp, HISTÓRIA DO BRASIL – 1996, em:

http://www.caccto.com.br/material/d00044/Material_6_E-MED_2A_195641.pdf

História do Brasil cobre um período de mais de quinhentos anos, desde as raízes da colonização portuguesa até nossos dias.

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A colonização da Capitania de São Vicente começou, como a do Nordeste, pelo litoral,

com o plantio de cana e a construção de engenhos. Essa atividade não foi muito longe. O

açúcar produzido concorria desvantajosamente com o do Nordeste, seja pela qualidade do

solo, seja pela maior distância dos portos europeus.

Por outro lado, a existência de índios, em grande número, atraiu para a região os

primeiros jesuítas. Padres e colonizadores, com objetivos diferentes, iriam se atirar a uma

grande aventura no rumo do interior: a escalada da Serra do Mar, abrindo caminho por trilhas

indígenas até chegar ao Planalto de Piratininga a uma altura de oitocentos metros. Nada mais

contrastante com esse imenso esforço do que, hoje, uma banal viagem do litoral a São Paulo

pela Rodovia dos Imigrantes. Em 1554, os padres Nóbrega e Anchieta fundaram no planalto a

povoação de São Paulo, convertida em vila em 1561, aí instalando o colégio dos jesuítas.

Separados da costa pela barreira natural, os primeiros colonizadores e os missionários se

voltaram cada vez mais para o sertão, percorrendo caminhos com a ajuda dos índios e

utilizando-se da rede fluvial formada pelo Tietê, o Paranaíba e outros rios.

Houve algumas semelhanças entre a região paulista em seus tempos mais remotos e a

periferia do Norte do Brasil: fraqueza de uma agricultura exportadora, forte presença de

índios, disputa entre colonizadores e missionários pelo controle daqueles, escassez de moeda

e freqüente uso da troca nas relações comerciais. Particularmente notável foi a influência

indígena. Um extenso cruzamento, incentivado pelo número muito pequeno de mulheres

brancas, deu origem ao mestiço de branco com índio, chamado de mameluco. O tupi era uma

língua dominante até o século XVIII. Os portugueses de São Paulo adotaram muitos dos

hábitos e habilidades indígenas, tornando-se tão capazes de usar o arco e a flecha como as

armas de fogo.

A EXPANSÃO DA AGROPECUÁRIA

Apesar das semelhanças iniciais com o Norte, a região de São Paulo teria, já a partir de

fins do século XVI, uma história bem peculiar. Os povoadores combinaram o plantio da uva, do

algodão e sobretudo do trigo com outras atividades que os levaram a uma profunda

interiorização nas áreas desconhecidas ou pouco exploradas do Brasil. Criadores de gado

paulistas es¬palharam-se pelo Nordeste, penetrando no Vale do Rio São Francisco até chegar

ao Piauí. No Sul, o atual Paraná - onde ocorreram algumas tentativas de mineração - tornou-se

uma extensão de São Paulo. O gado esparramou-se por Santa Catarina, o Rio Grande do Sul e a

Banda Oriental (Uruguai).

Iniciativas individuais combinaram-se com a ação da Coroa, interessada em assegurar a

ocupação da área e estender o mais possível a fronteira com a América espanhola. Imigrantes

trazidos do Arquipélago dos Açores e paulistas fundaram Laguna em Santa Catarina (1684).

Alguns anos antes (1680), os portugueses haviam estabelecido às margens do Rio da Prata, em

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frente a Buenos Aires, a Colônia do Sacramento, pretendendo com isso interferir no comércio

do alto Peru, especialmente da prata, que transitava pelo rio, no rumo do exterior.

As bandeiras tomaram as direções de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e as regiões onde

se localizavam as aldeias de índios guaranis organizadas pelos jesuítas espanhóis. Dentre elas,

destacava-se o Guaíra, situado no oeste do Paraná, entre os Rios Paranapanema e Iguaçu,

região onde os bandeirantes empreenderam seguidas campanhas de saques, destruição e

apresamento de índios. Algumas bandeiras realizaram imensas viagens, em que a atração por

uma grande aventura se mesclava aos objetivos econômicos. Já veterano, Raposo Tavares

percorreu, entre 1648 e 1652, um roteiro de 12 mil quilômetros: caminhou em direção ao

Paraguai até os contrafortes dos Andes, seguiu depois no rumo nordeste atravessando o atual

Estado de Rondônia, para depois descer os Rios Mamoré e Madeira e, pelo Amazonas, chegar

afinal a Belém.

A SOCIEDADE DAS MINAS – p. 63

Não foi apenas de Portugal que gente de toda condição afluiu para Minas. A partir da

chegada dos paulistas acompanhados de seus escravos índios, houve migração de várias partes

do Brasil. Nasceu assim uma sociedade diferenciada, constituída não só de mineradores como

de negociantes, advogados, padres, fazendeiros, artesãos, burocratas, militares. Muitas dessas

figuras tinham seus interesses estreitamente vinculados à Colônia e não por acaso ocorreu em

Minas uma série de revoltas e conspirações contra as autoridades coloniais.

Embora os setores mais ricos da população fossem às vezes proprietários de fazendas e

investissem na mineração em locais distantes, a vida social concentrou-se nas cidades, centro

de residência, de negócios, de festas comemorativas. Nelas ocorreram manifestações culturais

notáveis, no campo das artes, das letras e da música. A proibição de ingresso das ordens

religiosas em Minas incentivou o surgimento de associações religiosas leigas - as Irmandades e

Ordens Terceiras. Elas patrocinaram a construção das igrejas barrocas mineiras, onde se destacou a figura do mulato Antônio Francisco Lisboa - o Aleijadinho -, filho ilegítimo de um

construtor português e de uma escrava.

Na base da sociedade estavam os escravos. O trabalho mais duro era o da mineração, especialmente quando o ouro do leito dos rios escasseou e teve de ser buscado nas galerias

subterrâneas. Doenças como a disenteria, a malária, as infecções pulmonares e as mortes por

acidente foram comuns. Há estimativas de que a vida útil de um escravo minerador não

passava de sete a doze anos. Seguidas importações atenderam às necessidades da economia

mineira, inclusive no sentido de substituir a mão-de-obra inutilizada. O número de cativos

exportados para o Brasil cresceu entre 1720 e 1750, apesar da crise do açúcar. Os dados de

população da Capitania de Minas, levantados em 1776, mostram a esmagadora presença de

negros e mulatos. Dos cerca de 320 mil habitantes, os negros representavam 52,2%; os

mulatos, 25,7%; e os brancos, 22,1%.

A sociedade das minas foi uma sociedade rica?

Aparentemente, como associamos ouro à riqueza, a resposta pareceria fácil. Mas não é

bem assim. Para começar, devemos distinguir entre o período inicial de corrida para o ouro e a

fase que se seguiu. No período inicial, isto é, na última década do século XVII e no inicio do

século XVIII, a busca de metais preciosos sem o suporte de outras atividades gerou falta de

alimentos e uma inflação que atingiu toda a Colônia. A fome chegou a limites extremos e

muitos acampamentos foram abandonados. Com o correr do tempo, o cultivo de roças e a

diversificação das atividades econômicas mudaram esse quadro de privações. A sociedade

mineira acabou por acumular riquezas, cujos vestígios estão nas construções e nas obras de

arte das hoje cidades históricas.

Lembremos porém que essas riquezas ficaram nas mãos de uns poucos: um grupo

dedicado não só à extração incerta do ouro mas aos vários negócios e oportunidades que se

formaram em torno dela, inclusive o da contratação de serviços com a administração pública.

Abaixo desse grupo, a ampla camada de população livre foi constituída de gente pobre ou de

pequenos funcionários, empreendedores ou comerciantes, com limitadas possibilidades

econômicas. Certamente, a sociedade mineira foi mais aberta, mais complexa do que a do

açúcar. Mas nem por isso deixou de ser, em seu conjunto, uma sociedade pobre.

Se não cabe falar em um ciclo do açúcar, podemos falar de um ciclo do ouro, no sentido

de que houve fases marcadas de ascenso e de decadência. O ouro não deixou de existir em

Minas, porém sua extração se tornou economicamente pouco atraente. O período de apogeu

situou-se entre 1733 e 1748, começando a partir daí o declínio. No início do século XIX, a

produção aurífera já não tinha maior peso no conjunto da economia brasileira. O retrocesso da

região das minas foi nítido, bastando lembrar que cidades de uma vida tão intensa se

transformaram em cidades históricas com o sentido também de estagnadas. Ouro Preto, por

exemplo, tinha 20 mil habitantes em 1740 e apenas 7 mil em 1804.

Mas o retrocesso não atingiu toda a Capitania de Minas Gerais. Nela, nem tudo era

mineração. Mesmo nos tempos de glória do ouro, a fazenda mineira muitas vezes combinava a

pecuária, o engenho de açúcar, a produção de farinha com a lavra de ouro. Graças à pecuária, aos cereais e mais tarde à manufatura, Minas não regrediu como um todo. Pelo contrário, no correr do século XIX iria expandir essas atividades e manter um constante fluxo de importação de escravos. A província mineira representaria uma curiosa combinação de regime escravista com uma economia que não era de plantation, nem estava orientada principalmente para o mercado externo. P. 65

O entrosamento entre a elite local e a administração da capitania sofreu um abalo com a

chegada a Minas do governador Luís da Cunha Meneses, em 1782. Cunha Meneses

marginalizou os membros mais significativos da elite, favorecendo seu grupo de amigos.

Embora não pertencesse à elite, o próprio Tiradentes se viu prejudicado, ao perder o comando do destacamento dos Dragões que patrulhava a estratégica estrada da Serra da Mantiqueira.

10. Imagem de Tiradentes associada à figura feminina da República. Revista Illustrada. 1892.

A situação agravou-se em toda a região mineira com a nomeação do Visconde de Barbacena para substituir Cunha Meneses. Barbacena recebeu do ministro português Melo e Castro instruções no sentido de garantir o recebimento do tributo anual de cem arrobas de ouro. Para completar essa quota, o governador poderia se apropriar de todo o ouro existente e, se isso não fosse suficiente, poderia decretar a derrama, um imposto a ser pago por cada habitante da capitania. Recebeu ainda instruções no sentido de investigar os devedores da

Coroa e os contratos realizados entre a administração pública e os particulares. As instruções

faziam pairar uma ameaça geral sobre a capitania e mais diretamente sobre o grupo de elite,

onde se encontravam os maiores devedores da Coroa.

Aqui, abrindo um parênteses, é preciso explicar a origem dessas dívidas. Elas se originavam, muitas vezes, de contratos feitos com o governo

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português para arrecadar impostos. Na época colonial, era comum conceder essa função pública a particulares com boas relações na administração. Eles pagavam uma quantia à Coroa pelo direito de cobrar os impostos, ganhando a diferença entre esse pagamento e o que conseguiam arrecadar. Mas, freqüentemente, os contratadores nem sequer chegavam a completar o pagamento à Coroa, daí resultando dívidas que iam se acumulando.

Os inconfidentes começaram a preparar o movimento de rebeldia nos últimos meses de 1788, incentivados pela expectativa do lançamento da derrama. Não chegaram, porém, a pôr em prática seus planos. Em março de 1789, Barbacena decretou a suspensão da derrama, enquanto os conspiradores eram denunciados por Silvério dos Reis. Devedor da Coroa como

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vários dos inconfidentes, Silvério dos Reis estivera próximo destes, mas optara por livrar-se de seus problemas denunciando o movimento. Seguiram-se as prisões em Minas e a de Tiradentes no Rio de Janeiro. O longo processo realizado na capital da Colônia só terminou a 18 de abril de 1792.

A partir daí, começou uma grande encenação da Coroa, buscando mostrar sua força e desencorajar futuras rebeldias. Só a leitura da sentença durou dezoito horas! Tiradentes e

vários outros réus foram condenados à forca. Algumas horas depois, uma carta de clemência

da Rainha Dona Maria transformava todas as penas em banimento, ou seja, expulsão do Brasil, com exceção do caso de Tiradentes. Na manhã de 21 de abril de 1792, Tiradentes foi

enforcado num cenário típico das execuções no Antigo Regime. Entre os ingredientes desse

cenário se incluíam a presença da tropa, discursos e acla-mações à rainha. Seguiram-se a retalhação do corpo e a exibição dc sua cabeça, na praça principal de Ouro Preto.

Que pretendiam os inconfidentes?

A resposta não é simples, pois a maioria das fontes à nossa disposição é constituída do que disseram os réus e as testemunhas no processo aberto pela Coroa, no qual se decidia, literalmente, uma questão de vida ou morte. Aparentemente, a intenção da maioria era a de

proclamar uma República, tomando como modelo a Constituição dos Estados Unidos. O poeta e ex-ouvidor Tomás Antônio Gonzaga governaria durante os primeiros três anos e depois disso haveria eleições anuais. O Distrito Diamantino seria liberado das restrições que pesavam sobre ele; os devedores da Coroa, perdoados; a instalação de manufaturas, incentivada. Não haveria exército permanente. Em vez disso, os cidadãos deveriam usar armas e servir, quando necessário, na milícia nacional.

O ponto mais interessante das muitas medidas propostas é o da libertação dos escravos, que só excepcionalmente aparece em vários movimentos de rebeldia não só do Brasil Colônia como do Brasil independente. De um lado, no plano ideológico, é incompreensível que um movimento pela liberdade mantivesse a escravidão; de outro, no plano dos interesses, como é que membros da elite colonial, dependentes do trabalho escravo, iriam libertá-los? Essa contradição surge no processo dos inconfidentes, mas é bom ressalvar que nem sempre depoimentos derivados de interesses pessoais predominaram nas declarações. Alvarenga Peixoto, um dos maiores senhores de escravos entre os conjurados, defendeu a liberdade dos cativos, na esperança de que eles assim se tornassem os maiores defensores da República.

Outros, como Alvares Maciel, achavam, pelo contrário, que sem escravos não haveria quem trabalhasse nas terras e nas minas. Segundo parece, chegou-se a uma solução de compromisso, pela qual seriam libertados somente os escravos nascidos no Brasil.

A Inconfidência Mineira é um exemplo de como acontecimentos históricos de alcance aparentemente limitado podem ter impacto na história de um país.

Fausto, Boris. História do Brasil. Edusp e 1996. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2014.
Enviado por J B Pereira em 21/06/2014
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