Inapaixonável - Capítulo 7

7. Dia de se mudar

Lucy não estava se sentindo muito bem quando acordou de manhã com o sol batendo no seu rosto. A janela estava toda aberta. Havia papéis rasgados e espalhados pelo seu quarto. A porta também estava aberta. Algo tinha acontecido. Enquanto ela dormia.

Sim ela voltou para casa na noite passada, pois não tinha outro lugar para ir apesar de tudo. Não tinha como ligar para Luna ou o pai sem saber os números de seus celulares e não tinha como ficar na padaria, seria pedir demais para passar um dia na casa de Cadu, alguém que ela mal conhecia - e que não era um parente. Só que nada aconteceu.

A mãe dela não estava em casa. Com certeza fora beber. Tudo continuava naquela bagunça, vinhos quebrados no chão, almofadas rasgadas e roupas jogadas por todo lado. Mas seu quarto estava basicamente intacto por incrível que pareça, então voltou lá e foi direto dormir, sem querer fazer nada, nem mesmo escrever em seu diário ou repensar em tudo o que tinha acontecido. As lágrimas já tinham praticamente secado.

Acontece que a mãe não foi exatamente direto para as bebidas. Antes disso, ela passara na casa de uma amiga desabafar sobre o acontecido. Chorosa, com a maquiagem borrada e as roupas horrorosamente amassadas ela contava tudo tim-tim por tim-tim, sem esquecer nenhum detalhe. E então pegou um copo de vinho na geladeira branca da cozinha, sem nem menos pedir licença, alegando que não conseguiria mais ficar sem beber, porque era como a sua única maneira de se libertar e se esquecer da sua própria dor. A amiga, por outro lado, continuou observando-a, do sofá da sala, andar até lá cambaleando, e fez uma ligação importante jurando para si mesma que seria para o próprio bem daquela mulher.

No outro lado do telefone estava uma psicóloga renomada, a qual era também amiga da amiga da mãe de Lucy. Foi marcada uma consulta - diz-se consulta, mas foi apenas um encontro na casa dela para que conversassem informalmente por um tempo - e Susana teve de aceitar que precisava de ajuda.

Por uma ironia - ou até porque tinha de ser assim - do destino descobriram que havia algo mais errado no cérebro dela além dos seus conflitos internos, vicio em bebidas e vidas noturnas e péssimas hábitos diários. Ela estava com um transtorno no cérebro. Um transtorno que havia mudado a mulher completamente. Antes ela era alguém, mas depois de um tempo passou a ser outra. Primeiro a dor da perda do marido e uma de suas filhas teria abalado seu coração, depois sua filha que restara não parecia ser tão importante, logo mais os dois que ela achava que tinham falecido aparecem em seu apartamento anos depois dizendo estarem vivos e seus vícios estranhos e obsessões complexas a estavam deixando louca. Louca de verdade. Seu cérebro já não reagia de forma normal e tudo o que pensava não era exatamente pensado era só feito, como se uma parte de seu cérebro não reagisse mais aos estímulos dos neurônios. Não era só o estresse como ela achava, era doença. E precisava de tratamento.

Caso contrário havia, sim, um certo risco de morte.

Enquanto tudo isso ocorria, Lucy sentia uma dor de cabeça ainda mais forte. Tomou uma aspirina na cozinha e resolveu escrever. Pegou seu diário e não prestou atenção direito em quantas páginas tinha virado. Era incrível, porque nunca tinha escrito tanto na vida. Foram 7 páginas de coisas sobre si mesma que descobrira nos últimos dias. Sobre a vida dela que ela jurava não ser poeira da poeira das vidas importantes.

Como a mãe não estava em casa, ela já tinha idéia do que tinha acontecido. A mãe foi beber. De novo. Era uma vergonha pela qual ela sempre passaria. Sua mãe era alcoólatra, saia toda noite com roupas curtas demais e chegava cansada e cheias de hematomas em casa. Era sempre a mesma coisa. E ela odiava saber disso. Odiava ter uma mãe daquele jeito. Até poderia entender quando as pessoas diziam que mãe é mãe e que sempre a sua mãe vai ser a melhor do mundo. Mas a dela? Ela não achava . Na verdade, ela simplesmente gostaria de dizer que não tinha mãe. Era do um fantasma que a vinha assombrando. Um fantasma rabugento e irritado.

Foi aí que ela teve uma ideia que julgou ser brilhante. Ela podia não acreditar que tinha uma mãe daquele jeito, mas tinha um pai que considerava bom. Um pai que ela tinha conhecido a poucas horas depois de tantos anos, mas era alguém que mesmo por um tempo a tenha "abandonado", tinha voltado e estava ali em carne e osso transbordando sua paixão e carinho pela filha. Era aquele tipo de pessoa que ela precisava estar perto. Sem contar que ela ainda tinha uma irmã. Uma irmã maluca, mas ainda sim uma irmã. E gêmea ainda por cima. Aquela era a família dela. E seria a partir de então.

Lucy escreveu um bilhete razoavelmente grande e o deixou pregado na porta da geladeira, mesmo sabendo que ele poderia ficar ali por dias até quem sabe a mãe dela ler, mas não fazia tanta diferença, porque ela precisa fazer outra coisa. Era preciso finalmente juntar coragem para seguir em frente.

Tomou um copo d'água, comeu uma maçã, trocou de roupa e se aprontou para sair com duas malas grandes nas mãos em direção a um destino. Encontrar Luna. E ela sabia exatamente onde ela estaria naquele momento. Ensaiando para sua apresentação de ballet no teatro velho. O mesmo em que de viram pela primeira vez.

- Luna? - ela disse com a voz fraca, mas ao mesmo tempo animada que quase se esqueceu de deixar a bicicleta encostada do lado de fora do teatro.

Apesar da irmã loira não ter escutado nada, ela viu. Exatamente no momento em que virou para o lado da porta enxergou sua Lucy e parou o que estava fazendo no mesmo segundo. Saiu correndo do palco gritando parecendo bastante animada, mesmo sabendo do que elas haviam passado na noite anterior. Logo depois de Lucy ter saído as pressas de casa, o pai delas levou Luna até o carro correndo o mais rápido que pode com ela no colo e verificou se tinha se machucado. Só tinha uma arranhões no braço, mas nada muito sério. Ficaram quase o resto do dia todo procurando Lucy pela cidade inteira e não encontraram. Estavam preocupados e quase não conseguiram dormir naquela noite.

- Lucyyyyy! Não acredito!!! Procuramos você por toda a parte e não te achamos em lugar algum! Meu Deus! Que bom que você está bem! O que aconteceu?

Antes que a irmã morena pudesse responder a professora de Luna apareceu para reclamar com ela e acabou observando as duas pela primeira vez. Eram tão idênticas que quase desmaiou. Lucy teve de ficar o tempo do ensaio sentada em uma das cadeiras confortáveis para poder terminar de conversar com a irmã. Mas não importava, o mais importante mesmo era que ela concordasse com sua ideia.

- Eu tenho que te contar uma coisa. - Lucy disse assim que a dança da irmã tinha acabado. Estava meio ansiosa. - Queria saber se eu podia viver com você e o papai de agora em diante... Não que eu acredite totalmente que somos da mesma família - ela sorriu se lembrando da discussão que tiveram na primeira vez que se encontraram - mas acredito que vocês me tratam melhor que a mamãe. E eu não posso ficar em casa. Tenho medo de ela voltar e tentar fazer alguma coisa contra mim. Eu preciso de um lugar pra ficar nem que seja por um dia. É só que...

- Que ótima idéia!!! Quer dizer... Não pela mamãe, mas sabe vai fazer bem melhor pra você estar conosco e ser tratada como merece. Eu ainda não acredito que durante todos esses anos você passou assim sendo maltratada e com uma mãe como essas. Ela não pode ser minha mãe... Mas e as suas coisas? Você quer que a gente peça um caminhão de mudanças? Talvez o papai possa pagar, mas você sabe... Hum... Nós não somos assim tão ricos quanto você deve estar acostumada. Nossa casa é bem legal até...

- Não to nem aí com relação ao dinheiro. Eu só quero que me dêem a atenção que eu preciso. Faz tanto tempo que fico sozinha em casa que não sei exatamente o que é viver. A mamãe era a base de tudo o que eu fazia, mas agora eu quero se independente dela. Quero viver minha própria vida. Quero ser alguém. E não vou precisar de muita coisa. Separei todas as roupas importastes, cremes e coisas do tipo, livros, materiais e tudo meu daquela casa em duas malas grandes. Deixei lá na portaria do prédio. Espero que mamãe não tenho chegado. E bom... Eu sei que é bem de surpresa que eu peço isso, eu posso dormir no chão se você quiser até podermos comprar uma cama ou algo assim pra mim. Está tudo bem.

Era a primeira vez que Lucy falava tudo atropelado e bem rápido. Ela falou muito. Queria que a irmã soubesse de alguns detalhes. Era importante que soubesse, porque estava precisando de ajuda, e ela sabia que Luna e o pai iriam ajudar.

Assim foi. O pai das duas decidiu que, mesmo sendo uma idéia um pouco rápida demais, ajudaria na mudança. Foi até o prédio e ajudou com as duas malas. Depois ele subiu e percebeu que Susana ainda não estava lá em cima e pegou tudo mais que ele achava que Lucy iria precisar, como a pequena televisão que tinha no seu quarto e um abajur em forma de flor que ela usava para escrever no diário de noite. E logo depois eles pegaram um caminho diferente, o qual Lucy veria pela primeira vez. Um caminho que continuava passando pela padaria, mas de outro ponto. Um caminho que seria o novo caminho dela. Um passo para frente para o seu novo futuro.

Demorou um tempo para que a mudança fosse percebida. A mãe de Lucy estava resolvendo seus problemas pessoas junto com as amigas que ainda tinha. E passou quase uma semana longe de casa.

Susana chegou em casa cansada e destruída depois de alguns dias fora em casas de amigas para tratar de suas coisas. Quando voltou para casa encontrou um bilhete quase voando com o vento que batia na janela da cozinha.

"Não importa quem você tenha sido, mesma que tenha dito que era minha mãe, eu preciso ir embora. Não é aqui que devo ficar. Esse não é o meu lugar. Vou encontrá-lo junto das pessoas que me amam e que me acham importante. Mas talvez não faça tanta diferença assim ora você. Talvez você algum dia mude e seja uma pessoa melhor, porque é o que nós todos queremos. Por favor faça isso pelo menos por você mesma. E eu preciso achar o meu destino, apesar de eu achar que nunca vou ser importante pra você. Então adeus.

Com o amor que eu ainda acho que tenho em algum lugar por você,

Da pessoa que você chama de filha, Lucy"

E não teve outra a não ser desabar. Ela estava chorando de verdade. Havia perdido a única pessoa que achava que amava. Os sentimentos estavam mais fortes. A parte defeituosa do seu cérebro parecia estar dando respostas. E ela estava ativa apesar de tudo.

O ar estava pesado. Seu peito estava doendo. Deitou no sofá e só deu tempo de ligar para o número de emergência e pedir uma ambulância antes de ter um ataque cardíaco.

Bec
Enviado por Bec em 18/04/2014
Código do texto: T4773157
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