[Original] Ela me faz - Capítulo 2

Capítulo 2 – Intoxicando

Como Iasmin chegava depois de mim em casa, eu que era obrigada a lidar com Lucas, que após o episódio da cozinha de dois dias atrás, falou comigo o mínimo que pode. Isso não me incomodou, ao contrário, pra mim era absolutamente ótimo, mas não durou muito.

Explico o porquê:

Era terça-feira, o dia em que aquele escritório está mais infernal do que nunca e o meu estresse é mais alto que o normal. Cheguei em casa louca para tomar um banho bem relaxante quando, numa intuição meio estranha decido ir até a cozinha. E eu raramente me engano quando isso acontece. Abri a geladeira e procurei por meus três iogurtes preferidos. Nada. Respirei fundo, tentando não gritar ou pegar a primeira faca na cozinha pra esfaquear aquele imbecil gaúcho. Abri a lata de lixo e estavam lá as embalagens.

- LUCAS!!!!!!!!!!!!!!! – Berrei, perdendo a compostura que eu nunca tive, mas sempre desejei ter. Joguei a mochila na mesa da cozinha e fui pra sala. Pra completar a cena circense, ele estava descendo as escadas com a minha vizinha, Kelly. Sorrisos, troca de olhares e roupas meio amassadas. O imundo já pegou a menina. – Kelly, querida. Já conheceu o novo morador da casa, né? Ele te contou que tem herpes genital?

Lucas congelou. Dava para ver o horror nascendo nos olhos da Kelly.

- Ela é louca, ignora.

A menina não sabia em quem acreditar.

- Já fui pra cama com ele, sei do que estou falando. – Se é pra botar pra quebrar, farei isso com classe.

- Kelly! – Lucas tentou segurar a mão dela, mas não conseguiu. Kelly correu porta a fora feito um rato assustado. – QUAL É O TEU PROBLEMA? – Lucas desceu as escadas e me encarou, muito bravo.

- QUEM MANDOU VOCÊ TOMAR MEUS IOGURTES?

- BAH!! TODA ESSA CENA FOI POR CAUSA DAQUELAS PORCARIAS SEM GOSTO? NÃO VI TEU NOME LÁ, TOMEI MESMO. – Taquei meu chinelo nas pernas dele e já o empurrei contra o sofá. Não sei discutir quando estou muito nervosa. E também não me importei por ele ser maior que eu e também mais forte. – Tu tá me machucando!!!

- EU BATO É PRA MACHUCAR MESMO! VOCÊ. NUNCA. MAIS. TOME. MEUS. IOGURTES!!!!!

Arranhei o pescoço dele, que em nenhum momento me agrediu, só se defendeu, mas quando minhas unhas fincaram em seu rosto, fazendo seu queixo sangrar um pouquinho a coisa ficou realmente séria e Lucas não ligou mais pro fato de eu ser uma mulher. Brigamos feito dois moleques. Rasgamos almofadas, derrubamos sofá, o rádio e quase que a televisão. Só não consegui me desviar do vaso em cima da estante que caiu sob minha cabeça, fazendo-me ficar tonta.

- Eu sei que tu está fingindo. – Ele disse, quando cai no chão. Aproveitei pra fingir um desmaio. – Rafaela!!! Bah, tu briga que nem homem e desmaia com um vaso na cabeça? - Senti seu pé cutucar minha barriga. Não me mexi. – Droga.

Puxei seu pé. Lucas caiu no chão e eu montei em cima dele, que se protegeu quando viu minha mão pronta pra bater nele novamente, porém, travei ao ver Iasmin parada na porta. Ela gritou tão alto que me fez tapar os ouvidos. O maldito gaúcho se aproveitou da cena toda e fez ela pensar que eu o estava agredindo. Ele gritou, fez um drama enorme. E como todos os sinais deixavam claro que eu que tinha iniciado a briga, Iasmin discutiu foi comigo. E pra botar mais pilha o desgraçado ainda disse que era por causa de iogurte.

Resumindo: Minha melhor amiga tá brava comigo, Lucas saiu vitorioso e eu tive que arrumar a sala sozinha.

Eu odeio esse garoto mais do que eu odiava quando ele tinha 15 anos. É sério.

(...)

Nossas noites funcionavam da seguinte forma: Segunda, quarta e sexta: cursinho preparatório para a faculdade. Nós ainda não iniciamos as aulas, mas já nos passaram os cronogramas e tudo mais. Às terças e quintas, aula de idiomas. Eu, Inglês e Iasmin Espanhol. Não sei como seria agora com Lucas em casa. Talvez ele faça o curso de como ser mais desprezível, isso é se não for o professor. Eu não me esqueci da vingança contra Conrado, só que agora quero me empenhar em fazer o gaúcho sofrer um pouco na minha mão.

Resolvi matar a aula de inglês e fiquei em casa. Lucas havia saído a tarde e não voltara até então. Comprei um bolo na padaria ao lado e o deixei na mesa com um bilhete escrito “Espero que goste, é de chocolate! Beijos, Iasmin.”

Se eu deixasse o meu nome certamente o bolo seria jogado no lixo, mas sendo “assinado” por Iasmin ele vai comer e até lamber os dedos. E não tem o por que desconfiar, já que ele nem deve conhecer a letra de Iasmin. Dito e feito. Lucas chegou em casa à noite (nem precisei criar muitas suposições pra saber que o imundo já estava iludindo outra vizinha) e comeu um pedaço de bolo. Desci as escadas silenciosa e agi normalmente. É um bolo bem decorado e parece estar uma delícia, seria uma pena se eu tivesse jogado laxante em altas doses por cima.

Eu o observei por cerca de 5 minutos. Nenhuma reação. Nenhuma dor na barriga. Seu rosto foi tomando uma cor vermelha e ele ofegava muito. Lucas colocou a mão na garganta e forçou a respiração, que não saia. Eu entrei em choque. Era pra ele correr pro banheiro e não perder o ar. Desajeitada, abanei seu rosto com as mãos. Só vi a gravidade da situação quando ele caiu no chão e foi perdendo a consciência aos poucos.

Liguei para Iasmin trêmula e tentei explicar o que havia acontecido, ela não entendeu muito, mas quando falei que ele desmaiou na cozinha, me orientou a chamar o vizinho para levarmos Lucas ao Santa Edwiges, o hospital mais nobre de São Paulo. Só mais tarde eu soube que tive que leva-lo diretamente lá porque Lennon transferira o convênio do irmão para esse hospital, talvez já imaginando que eu tentaria mata-lo. O que o torna mais sensato que Isabel.

Quando Iasmin chegou ao hospital eu estava na sala de espera. Ela me lançou um olhar do tipo “você fez merda, mas não vou brigar contigo agora” e foi falar com uma enfermeira para saber de Lucas. O que foi desnecessário já que o médico vinha logo atrás. Era um senhor de meia idade e sorriso sincero.

- Boa noite, meu nome é doutor Ramirez. – Disse polidamente. - Estão esperando notícias de Lucas Marquez, certo? – Iasmin ficou ao meu lado. Assentimos. – Ele foi intoxicado por um corante que é ingrediente de bolo industrializado. Foi importante tê-lo trazido o quanto antes, já que se o tempo tivesse corrido, a situação poderia se agravar e também já sabia todo o histórico desse paciente, pois conversei com seu irmão mais velho. Ele está bem, ficará em observação hoje.

- Ótimo! – Iasmin exclamou, aliviada. – Posso ir vê-lo, doutor?

- É claro. – Respondeu o médico. – A senhorita vai depois? - A pergunta fora para mim.

- Tanto faz. - Dei de ombros. Os dois saíram rumo ao longo corredor do hospital. Tentei não deixar a culpa me corroer ao lembrar das palavras do médico “a situação poderia se agravar”. Ele tá vivo. Isso é o que importa. Só.

A visita de Iasmin durou uns 45 minutos e quando saiu, mais risonha e relaxada, disse que Lucas queria falar comigo. Eu franzi o cenho, mas ela meio que me empurrou até o quarto e me jogou lá. Sem camisa, eu pude ver o verdadeiro estrago que fiz no corpo dele. Vários arranhões no rosto e barriga, um roxo no pescoço, como se tivesse brigado com um gato selvagem. Ele me olhou com uma frieza cortante e balançou a cabeça negativamente.

- Eu não vou pedir desculpas. – Murmurei, orgulhosa. Ele bufou, irritando-se.

- Tu quase me matou. – Relembrou, secamente.

- Dramático. – Rebati, impassível.

- TU ME INTOXICOU COM CORANTE!!!

- Na verdade eu usei laxante, mas pelo jeito sua alergia foi mais forte. Uma pena. – O fato de eu não demonstrar o mínimo arrependimento o indignou tanto que ele me puxou pela mão. – Você que começou, seu ridículo!

- Eu? Tu parece criança, qualquer coisa que eu faça já te irrita!

- VOCÊ LEVOU UMA GAROTA PRA MINHA CASA!

- TU ME TRATA COMO SE EU AINDA TIVESSE 15 ANOS!!

- VOCÊ FEZ A IASMIN BRIGAR COMIGO!

- TU.QUASE.ME.MATOU! - Disse, triturando cada palavra pra ver se eu me tocava do que tinha feito. Sou sem-noção demais pra avaliar isso agora. E até posso avaliar, mas me arrepender já é outra história. - SE EU TE INCOMODO TANTO ASSIM PORQUE NÃO ME DEIXOU MORRER?

- PORQUE CAIXÃO HOJE EM DIA CUSTA CARO, TÁ LEGAL? – Ele riu, sem fôlego para continuar a discussão aos berros. – E do que está rindo? Contei piada?

- Além de eu estar sem fôlego sei que isso não me levará a nada.

- Vou embora pra você fica em paz e sem perigo de morte.

- Eu adoraria, mas Iasmin foi buscar roupa em casa e tu terá que ficar aqui.

- Me dê bons motivos. – Forcei um sorriso.

- Bah, tu não queres chateá-la mais né? Acho que ouvi também um “vou ver se entro em contato com a Isabel”, mas não é certeza. – Eu trinquei a mandíbula, tentando engolir a seco os palavrões na ponta da língua. – E isso vai ter volta.

- Ah, é?

- Vai sim.

- Vou aguardar.

Sentei-me na poltrona branca do quarto e cruzei os braços. Não sei quanto tempo passou, mas, sei que acabei cochilando ali mesmo. Acordei com a coluna torta e o braço dormente. Lucas dormia sereno com aquele monte de aparelho o prendendo. Deixei os pensamentos assassinos e meu ódio por ele de lado quando percebi que dormindo, o metido parecia um menino de 5 anos. O cabelo claro e liso (outra mudança ao longo dos anos, ele tinha o cabelo ondulado aos 15) todo rebelde, a boca um pouco aberta e as pernas dele estavam dobradas.

Ao abrir os olhos, ele me olhou mal-humorado e depois se virou para o outro lado, ignorando completamente a minha presença. Só as 4 da manhã que ele acordou inquieto e falante, mas aí eu não estava afim de conversar. Então nós brigamos novamente aos berros, mas a enfermeira entrou no quarto e deu um sermão na gente, o que nos fez parar.

- Viu o que tu faz? – Ele perguntou, como se a culpa fosse toda minha. Eu o ignorei, sentando-me na beira da cama. Preciso esticar minhas pernas. – Ei!

- Cala a boca. Eu preciso deitar um pouco.

- Precisa é? Olha minha cara de quem se importa!! – E empurrou as mãos contra minhas costas, eu fiz o que qualquer pessoa adulta faria numa situação dessas, mordi seu braço. – Ai sua...!!!

- Olha a boca!

Lucas desistiu de me tirar da cama e dividiu o espaço comigo. Deitei a cabeça em seu braço e fui me ajeitando de lado. Ele me detesta mas não se negou a me abraçar de uma forma bem protetora. Eu poderia tê-lo mandado a merda quando o senti respirar de forma profunda sob minha cabeça, porém meu sono era maior do que a vontade de discutir. Dormimos juntos até as 7h30. E não sei como mas acordei deitada em cima dele e tá, tudo bem, não posso reclamar de desconforto.

- Tu é pesada. – Ele disse, mexendo em meu cabelo que caia sob seu rosto. – Tão magra e MUITO pesada.

- Cala a sua boca. – Pulei da cama, abruptamente. – Que merda, eu preciso ir trabalhar.

- Bah. Pega um atestado de acompanhante. – Lucas quer a minha companhia ou eu estou só imaginando coisas? Talvez meu cérebro não esteja funcionando direito pela manhã.

- É o jeito. Até eu pegar o ônibus vai demorar muito.

- Isso. – Assentiu, tranquilamente. Eu olhei o canto do quarto e vi uma mala azul. – Eu acho que a Iasmin mandou por alguém, sei lá. - Cerrei as pálpebras, desconfiada. – O que? Tu não estares achando que eu a vi entrar no quarto e não te avisei porque queria continuar dormindo ao seu lado, né?

- Não disse nada até o momento. – Murmurei, seca. - Vou ver se acho uma escova de dentes e você se troca pra irmos embora.

- Tá bom!

Sai do quarto e procurei uma enfermeira pra me dar uma escova de dentes, após conseguir, fui para o banheiro e escovei os dentes, dei uma ajeitada no cabelo e lavei o rosto pra mudar a cara amassada. Quando voltei, Lucas calçava seus tênis. Iasmin arrumou toda a roupa dele mesmo? Meu Deus.

- Como vamos embora? Aliás, quem era aquele cara que nos trouxe?

- Pai da Kelly.

- Ah... – Ele franziu o cenho e sorriu. – E como vamos agora?

Olhei meu celular e no visor tinha uma mensagem de Iasmin. Abri rapidamente.

“Rafa, pedi pra enfermeira deixar uma bolsa de roupa pro Lucas no quarto, não deu pra ir por causa do serviço. Não fica brava, te amo!!”

É claro que sobrou pra mim o bagaço da laranja. Entrei em minha agenda de contatos e procurei pelo único número que me salvaria sem hesitar. Mesmo sabendo que me arrependerei disso ao ver a cara do cidadão.

Tamiris Vitória
Enviado por Tamiris Vitória em 07/04/2014
Reeditado em 25/06/2022
Código do texto: T4759189
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