Saborizar ou saborear: língua viva mantém-se em ação (e renovação)
A criação de uma palavra, por mais que se trate de um mecanismo legítimo e “saudável”, ainda incomoda muita gente. Saiba como isso ocorre e por quê.
Na semana passada, um conhecido colunista de uma revista semanal comentou, em seu artigo, um fato que o incomodou: a criação de uma palavra, “saborizar”. Ao apreciar (saborear ou saborizar?) seu café da manhã, encontrou, em um texto do jornal diário, a palavra “saborizar”. Veículos de imprensa vários atribuem o neologismo a uma apresentadora de TV de conhecida emissora de TV.
Esse fato, que poderia passar despercebido por e para muitos, confirma o que tantos temem, outros condenam e os puristas mais execram – a língua está viva, se transformando e sim: as pessoas (qualquer pessoa!) estão criando palavras. Ainda que não sejam reconhecidas, que soem estranhas ou que pareçam "aberrações”, novos vocábulos são incorporados ao léxico de uma língua com frequência e atestam que o idioma está literalmente vivo e pulsante – em oposição a línguas ditas “mortas” como o latim ou o grego antigo.
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"Saborizar" um café: assim, a língua vai confirmando que está viva e seus usuários são criativos e conhecem muito bem, por vezes, os mecanismos gramaticais responsáveis pela formação das palavras
Essas frequentes “criações” e “aquisições” (vale lembrar que as línguas também se valem de <empréstimos linguísticos>) atestam que seus usuários – ou seja, os falantes, principais interessados no funcionamento e uso efetivo das palavras e na construção do sentido dos enunciados – estão atentos e têm necessidades diversas que, por vezes, não são supridas (daí a necessidade de cunhar novos termos ou pegá-los “emprestados” de outras línguas) ou, ainda, que a “criatividade linguística” existe e está aí para ser colocada em prática.
Muitos professores, especialistas em língua e linguagem, por mais que defendam os mecanismos legítimos de formação de palavras estranham “criações” como “saborizar”. Argumentos para tal recusa não faltam: o léxico do português já têm palavras como “saborear”, “apreciar” e não seria necessário criar outra. Ou ainda: “saborizar” parece “doer no ouvido”. Entretanto, vale analisar e perceber que o processo de criação da palavra que tanto incomodou alguns é muito razoável e segue uma lógica impecável dos mecanismos gramaticais da língua. Todas as palavras do nosso vocabulário são formadas por radicais, que podem receber sufixos e prefixos. Nesse caso, o autor (ou autora) do novo termo acrescentou ao substantivo “sabor” o sufixo “izar”, o mesmo que forma outros verbos como estatizar, burocratizar, valorizar. Vale perceber, nesses exemplos, que o sufixo “izar” sugere a ideia de um processo, de uma “construção” gradativa de alguma atitude ou ação. Assim, “saborizar” sugere que há de se provar ou consumir um alimento, bebida, gradativamente, durante algum tempo, de modo prazeroso, mais lento e tranquilo. Trata-se de um processo legítimo e muito lógico de criação de palavras e que atesta que os usuários de uma língua – até mesmo os menos habilitados (pois não são professores ou acadêmicos) têm competência de sobra para interferir e enriquecer o léxico. E fazem isso com maestria – ainda que não agrade a todos.
Enfim, o termo “saborizar” é ainda muito recente, apareceu há pouco e, por enquanto, não é possível dizer que se tornará uma palavra digna de integrar os dicionários da língua. Cabe aos falantes consagrarem pelo uso – em suas conversas, papos virtuais, comentários e textos – a palavra. Quem sabe, ela passe a integrar de modo definitivo o léxico e aí poderemos “saborizar” com mais tranquilidade um café, um doce, sem medo de professores, acadêmicos, e mais cientes da criatividade e propriedade dos falantes do idioma.