DEVAGAR SE VÊ AO LONGE
I
I
Ela fica comprimindo as pálpebras quando quer enxergar melhor um objeto. Pode estar com um probleminha de visão. Miopia, talvez.
A professora percebeu a anomalia desde a semana passada e comunicou à família: – "Importa levá-la a um especialista o quanto antes". . .
Mãe – também professora – muito envolvida no vaivém dos seus trabalhos, delega a tarefa ao pai, igualmente comprometido.
Consulta marcada para o último dia útil da semana. O pai utilizará uma folga para esse fim justificada.
A professora percebeu a anomalia desde a semana passada e comunicou à família: – "Importa levá-la a um especialista o quanto antes". . .
Mãe – também professora – muito envolvida no vaivém dos seus trabalhos, delega a tarefa ao pai, igualmente comprometido.
Consulta marcada para o último dia útil da semana. O pai utilizará uma folga para esse fim justificada.
Entusiasmada, Juju se prepara:
- Meu plano, agora, vai dar certo! – Pensa com seus botões, ao sair com o pai na aguardada sexta-feira. Ela, esperançosa da coisa boa que lhe vai acontecer. Ele, que não entende de plano de crianças, temeroso pelo que possa acontecer.
II
- Meu plano, agora, vai dar certo! – Pensa com seus botões, ao sair com o pai na aguardada sexta-feira. Ela, esperançosa da coisa boa que lhe vai acontecer. Ele, que não entende de plano de crianças, temeroso pelo que possa acontecer.
II
Sala de espera de um consultório quase em silêncio. Pessoas se entreolhando como estranhas. Parece que todas têm visão limitada. A atendente chama a cada uma pelo nome próprio. Juju se diverte com o estrambotismo de alguns: Anfilóquia, Esperantina, Balduina . . . Acha que todas as mulheres deveriam ter "Maria" no nome . . .
- Maria Júlia ! - Convoca a atendente, sorridente e em tom professoral.
- Sou eu: Juju - responde, confusa. Quase esquecia de que se chamava "Maria".
Agradece o tratamento, conforme orientação do pai. Adentram, os dois, na sala do médico - a meia claridade.
Os adultos se cumprimentam, como num reencontro de amigos. Juju - menos de cinco anos de inocência - sente-se saudada com os mimos.
. . .
Começam os exames.
Ela vai identificando as figuras que lhe aparecem:
- gato, elefante, cãozinho, leão, tatu... e
- maçã, banana, abacaxi, cenoura, uvas...
Acerta todas e se considera realizada:
- Como é fácil ! . . . Vou conseguir ! . . . – Torce, com convicção.
Senta-se, feliz, ao lado do pai para ouvir o tão esperado diagnóstico. Em sua imaginação – conforme planejara em surdina –, sairia dali direto a uma ótica, onde escolheria os óculos mais bonitos, ou tão bonitos quanto os de sua prima, Sarah.
III
- Parabéns, Maria Júlia, você tem uma excelente visão. E, com esses olhinhos, além de saudáveis, bonitos, fique certa de que nunca precisará de lentes . . . – informou o oftalmologista, sem saber que decepcionara sua inocente e mais nova consulente.
Com a notícia - inesperada - Juju perdeu a graça. Viu-se estendida no chão, como se tivesse caído de um balanço e lhe faltassem forças pra se reerguer.
- Mas eu acertei todas as figurinhas ! . . . – argumentou.
- Por isso mesmo, minha linda. Se você tivesse tropeçado em alguma dessas figuras, eu iria analisar melhor o seu caso. A notícia boa que lhe dou é esta: sua visão está perfeita, minha querida!
Para surpresa do médico, Juju choraminga. Diz que quer usar óculos pra ficar igual à sua prima . . . Quer ter a aparência de uma secretária, ou professora, ou . . .
E ele tenta desvanecê-la da ideia boba – muito repetida na mídia – de desejar-se outra pessoa, de vestir-se como a outra, de em tudo querer igualar-se à outra . . .
- Não queira ser na sua vida uma "Maria vai com as outras" ! - Aconselhou-a, meio amargurado, porque sabia da aflição de vários dos seus clientes pequeninos, míopes, que sofriam revezes dos seus colegas, na escola, exatamente pelo fato de usarem óculos por necessidade.
E, numa conversa a dois, comentou com o pai os problemas sérios de “bullyng” de que tomou conhecimento em seu próprio consultório.
- Cenas de tortura entre estudantes, e no âmbito da escola, já nos assustam - disse, contrariado.
- E que motivos impelem os jovens a maltratarem os seus semelhantes indefesos? - interrogou o pai.
- Primeiramente, meu caro, o preconceito - um comportamento aprendido. Em situações menos graves, ele se estabelece em forma de apelidos censuráveis, menosprezos e zombarias. Crianças e jovens que não têm culpa de ser negros, ou gordinhos, ou baixinhos, ou deficientes visuais, ou portadores de qualquer deficiência física aparente, são humilhados, detratados e até não tolerados nos seus próprios grupos de ‘amigos’.
- Depois vem a falta de criatividade ou de uma causa justa que possam defender com entusiasmo. Preenchem essa lacuna com atos de violência, às vezes iniciada no próprio lar.
- Finalmente, tudo pode derivar da carência no aprendizado do amor. Amar é um ato difícil, exige razão e compreensão. Já o odiar, o detestar, o destruir... são bem mais fáceis de ser aplicados. Dependem, simplesmente, da força e do instinto.
- Portanto, saia desta "clínica de olhos" de olhos bem abertos. Cuide com delicadeza do ainda não-entendimento de sua filhinha. Faça-a consumir da melhor forma o amor dos seus pais e a usá-lo em atitudes defensivas. Não a deixe se cuidar sozinha, isto é, não a deixe consumir o desamor que se tornou modismo no âmbito "educacional". Ajude-a na formação do seu caráter e da sua personalidade. Ela, com certeza, aprenderá a não simular uma deficiência visual apenas para mudar o seu visual.
- Sejam vocês, os pais da Juju, as lentes de que ela reclama - concluiu.
Volta-se para a sua cliente pequenita, que, aparentemente, nada entendeu da conversa, e sussurra baixinho em seu ouvido:
- Te amo ! . . . Até breve, linda!
IV
Ainda no elevador, o pai resolve fazer uma pequena surpresa a Juju. Leva-a ao Parque da Jaqueira, a alguns passos dali, onde predomina o verde e se respira ar puro.
E tem mais: do outro lado das pistas de passeio, ou de corridas, há uma ampla área de lazer para crianças . . .
. . .
Ah, fosse somente o parque ! . . . Juju pede pipoca, lambuza-se com sorvete e – por que não? – experimenta os balanços, escorregos, pula-pula e todos os brinquedos que encontra à sua frente. Quase duas horas de folguedo e relaxamento.
Farta-se. É hora de voltar.
O sol já não brilha. O relógio aponta quase seis da noite. Tudo bem. Pelo menos, um fim de tarde de gostosos corre-corres e de mãos livres.
Num dado momento, um susto.
O pai a sustenta, firme, pelos dois braços, e aponta:
- Aqui é uma pista de corridas. Muitas pessoas estão em movimento – alerta-a – e só podemos atravessá-la com segurança . . .
–, Assim, de mãos dadas . . .
V
Na pista de corridas resfolegam suados atletas:
- homens e mulheres, de todos os corpos, de todas as raças, de todos os pesos, de variadas alturas, gorduras, finuras, belezas, feiuras . . .
- homens e mulheres, doentes ou sadios . . .
- homens e mulheres, idosos, levados por seus cuidadores, e até cegos, guiados por seus cães amestrados.
Antes de atravessar a pista, Juju pergunta:
– E aqui não tem bullyng, papai? – dando a entender que assimilara muito bem a última conversa dele com o seu médico. "Não deixariam livres, assim, tanta gente feia, troncha e desarrumada - é o que ela deve ter imaginado. O pai, a partir dessa pergunta, já desconfia de um tênue fio de preconceito na filhinha em crescimento. Nada responde. Ocupa-se da travessia com segurança.
Atravessam.
Juju – ainda protegida – não entende o motivo de tanta correria daquele montão de pessoas, ali, numa pista estreita:
- homens e mulheres que não param pra uma conversa, nem mesmo para um cumprimento . . .
- homens e mulheres suados, necessitados de um banho, de alguma bebida ou comida, de algum remédio . . .
Larga-se do pai. Para. Permanece parada a dois metros da pista. Polegar apertando o lábio inferior contra os dentes. Parece estarrecida. Olhar para cima, à altura das cabeças dos passantes . . .
O pai se aproxima. Aí, ela lança outra inocente e mais contundente pergunta:
- Só vejo eles correndo, correndo . . .
E pra onde é que eles tão indo ? ! . . .
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Nota: Nova versão do texto "QUO VADIS", do mesmo autor.
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- Maria Júlia ! - Convoca a atendente, sorridente e em tom professoral.
- Sou eu: Juju - responde, confusa. Quase esquecia de que se chamava "Maria".
Agradece o tratamento, conforme orientação do pai. Adentram, os dois, na sala do médico - a meia claridade.
Os adultos se cumprimentam, como num reencontro de amigos. Juju - menos de cinco anos de inocência - sente-se saudada com os mimos.
. . .
Começam os exames.
Ela vai identificando as figuras que lhe aparecem:
- gato, elefante, cãozinho, leão, tatu... e
- maçã, banana, abacaxi, cenoura, uvas...
Acerta todas e se considera realizada:
- Como é fácil ! . . . Vou conseguir ! . . . – Torce, com convicção.
Senta-se, feliz, ao lado do pai para ouvir o tão esperado diagnóstico. Em sua imaginação – conforme planejara em surdina –, sairia dali direto a uma ótica, onde escolheria os óculos mais bonitos, ou tão bonitos quanto os de sua prima, Sarah.
III
- Parabéns, Maria Júlia, você tem uma excelente visão. E, com esses olhinhos, além de saudáveis, bonitos, fique certa de que nunca precisará de lentes . . . – informou o oftalmologista, sem saber que decepcionara sua inocente e mais nova consulente.
Com a notícia - inesperada - Juju perdeu a graça. Viu-se estendida no chão, como se tivesse caído de um balanço e lhe faltassem forças pra se reerguer.
- Mas eu acertei todas as figurinhas ! . . . – argumentou.
- Por isso mesmo, minha linda. Se você tivesse tropeçado em alguma dessas figuras, eu iria analisar melhor o seu caso. A notícia boa que lhe dou é esta: sua visão está perfeita, minha querida!
Para surpresa do médico, Juju choraminga. Diz que quer usar óculos pra ficar igual à sua prima . . . Quer ter a aparência de uma secretária, ou professora, ou . . .
E ele tenta desvanecê-la da ideia boba – muito repetida na mídia – de desejar-se outra pessoa, de vestir-se como a outra, de em tudo querer igualar-se à outra . . .
- Não queira ser na sua vida uma "Maria vai com as outras" ! - Aconselhou-a, meio amargurado, porque sabia da aflição de vários dos seus clientes pequeninos, míopes, que sofriam revezes dos seus colegas, na escola, exatamente pelo fato de usarem óculos por necessidade.
E, numa conversa a dois, comentou com o pai os problemas sérios de “bullyng” de que tomou conhecimento em seu próprio consultório.
- Cenas de tortura entre estudantes, e no âmbito da escola, já nos assustam - disse, contrariado.
- E que motivos impelem os jovens a maltratarem os seus semelhantes indefesos? - interrogou o pai.
- Primeiramente, meu caro, o preconceito - um comportamento aprendido. Em situações menos graves, ele se estabelece em forma de apelidos censuráveis, menosprezos e zombarias. Crianças e jovens que não têm culpa de ser negros, ou gordinhos, ou baixinhos, ou deficientes visuais, ou portadores de qualquer deficiência física aparente, são humilhados, detratados e até não tolerados nos seus próprios grupos de ‘amigos’.
- Depois vem a falta de criatividade ou de uma causa justa que possam defender com entusiasmo. Preenchem essa lacuna com atos de violência, às vezes iniciada no próprio lar.
- Finalmente, tudo pode derivar da carência no aprendizado do amor. Amar é um ato difícil, exige razão e compreensão. Já o odiar, o detestar, o destruir... são bem mais fáceis de ser aplicados. Dependem, simplesmente, da força e do instinto.
- Portanto, saia desta "clínica de olhos" de olhos bem abertos. Cuide com delicadeza do ainda não-entendimento de sua filhinha. Faça-a consumir da melhor forma o amor dos seus pais e a usá-lo em atitudes defensivas. Não a deixe se cuidar sozinha, isto é, não a deixe consumir o desamor que se tornou modismo no âmbito "educacional". Ajude-a na formação do seu caráter e da sua personalidade. Ela, com certeza, aprenderá a não simular uma deficiência visual apenas para mudar o seu visual.
- Sejam vocês, os pais da Juju, as lentes de que ela reclama - concluiu.
Volta-se para a sua cliente pequenita, que, aparentemente, nada entendeu da conversa, e sussurra baixinho em seu ouvido:
- Te amo ! . . . Até breve, linda!
IV
Ainda no elevador, o pai resolve fazer uma pequena surpresa a Juju. Leva-a ao Parque da Jaqueira, a alguns passos dali, onde predomina o verde e se respira ar puro.
E tem mais: do outro lado das pistas de passeio, ou de corridas, há uma ampla área de lazer para crianças . . .
. . .
Ah, fosse somente o parque ! . . . Juju pede pipoca, lambuza-se com sorvete e – por que não? – experimenta os balanços, escorregos, pula-pula e todos os brinquedos que encontra à sua frente. Quase duas horas de folguedo e relaxamento.
Farta-se. É hora de voltar.
O sol já não brilha. O relógio aponta quase seis da noite. Tudo bem. Pelo menos, um fim de tarde de gostosos corre-corres e de mãos livres.
Num dado momento, um susto.
O pai a sustenta, firme, pelos dois braços, e aponta:
- Aqui é uma pista de corridas. Muitas pessoas estão em movimento – alerta-a – e só podemos atravessá-la com segurança . . .
–, Assim, de mãos dadas . . .
V
Na pista de corridas resfolegam suados atletas:
- homens e mulheres, de todos os corpos, de todas as raças, de todos os pesos, de variadas alturas, gorduras, finuras, belezas, feiuras . . .
- homens e mulheres, doentes ou sadios . . .
- homens e mulheres, idosos, levados por seus cuidadores, e até cegos, guiados por seus cães amestrados.
Antes de atravessar a pista, Juju pergunta:
– E aqui não tem bullyng, papai? – dando a entender que assimilara muito bem a última conversa dele com o seu médico. "Não deixariam livres, assim, tanta gente feia, troncha e desarrumada - é o que ela deve ter imaginado. O pai, a partir dessa pergunta, já desconfia de um tênue fio de preconceito na filhinha em crescimento. Nada responde. Ocupa-se da travessia com segurança.
Atravessam.
Juju – ainda protegida – não entende o motivo de tanta correria daquele montão de pessoas, ali, numa pista estreita:
- homens e mulheres que não param pra uma conversa, nem mesmo para um cumprimento . . .
- homens e mulheres suados, necessitados de um banho, de alguma bebida ou comida, de algum remédio . . .
Larga-se do pai. Para. Permanece parada a dois metros da pista. Polegar apertando o lábio inferior contra os dentes. Parece estarrecida. Olhar para cima, à altura das cabeças dos passantes . . .
O pai se aproxima. Aí, ela lança outra inocente e mais contundente pergunta:
- Só vejo eles correndo, correndo . . .
E pra onde é que eles tão indo ? ! . . .
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Nota: Nova versão do texto "QUO VADIS", do mesmo autor.
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