RETRATOS DE INFÂNCIA - CAP. 18

As tardes de maio são de um intenso amarelado ao lado oeste, de onde se pode ver em meio a uma atmosfera azulada a Serra da Saudade. Com esse cenário as crianças vestidas de anjo sempre desciam para a Matriz. Em bando. Gritando e cantando os cantos da coroação. Podia-se ver refletido em suas alvas vestes o brilho do sol, o amarelado encantador que como em outro não há. Era uma pincelada a mais de céu naqueles anjos. Anjos ainda naquele tempo em que havia infância e inocência no olhar das crianças. A infância nos permite determinadas loucuras e inocências próprias de quem ainda não entendeu que a vida é um recheio de preocupações. Maio já traz aquele ar fresco da tarde e permite que nossos corpos possam correr rua abaixo sem chegar escorrendo suor, o que, claro, não era um problema para nós.

Embora meninos não coroassem, eu acompanhava tudo. A celebração era perfeita. O corredor da Matriz repleto de crianças vestidas de anjos, cantando inocentemente e coroando a imagem de Nossa Senhora das Dores era como um vislumbrar do paraíso. Aquilo era mágico, sobrenatural, era uma ligação entre nós e o outro mundo. Naquela celebração parece que podíamos ver uma cena celeste.

Ficar parado na esquina observando o cenário me causa uma nostalgia e me remete a lembranças que poderiam, muito bem, estar congeladas no tempo ou pelo menos estar com o ponteiro de segundos na velocidade das horas.

Em cada esquina há uma lembrança e cada pedra do calçamento uma saudade. Os anjos voam para o infinito de minhas memórias e me ponho de novo a imaginar. Naquela velha calçada parecia me ver cantando, como sempre gostava de fazer até que ela, Helena, vinha me ouvir. Desenho com meus olhos fechados aquele delicado rosto e relembro intensamente aquele sorriso ao me ver. Onde estaria? A vida toda foi uma fuga daquele olhar. Crianças não se apaixonam, enamoram, se envolvem, se gostam e é só isso. Mas sempre fica aquele gosto no ego. Helena também se envolveu, e ficou nisso. Não tive mais notícias dela. Sei que ficou em lágrimas quando partimos.

__ Você volta? Perguntou ela.

__ Claro, nas férias eu venho pra gente se ver. Eu vou sentir muita saudade...

É claro que eu não voltei. Talvez ela ainda more nessas ruas e cultive lembranças do nosso passado. Ou talvez não.

As pessoas me olham e parecem me estranhar. Olho a casa de Amália e gostaria de conversar um pouco mais, falar de Helena. É tarde e o céu sem lua e sem estrelas anuncia uma chuva, com clarões ao longe e ventos que se intensificam. Saio e volto para o hotel, tão diferente do clima de nossas casas. Sempre com aquela frieza do bom tratamento técnico. Nada mais.

Sinto o calor da casa nesta noite. As janelas do hotel são um portal para as lembranças tantas que teimam em vir à tona sempre. Uma estrela me volta o olhar para Helena. Hoje sou casado, tenho dois filhos adolescentes e amo minha família. Havia deixado Helena num canto oculto de minha memória. Mas não estava apagada. Também não se trata de um amor, e sim uma lembrança apenas. Helena povoou minha imaginação durante a infância, sonhamos uma casa e crianças e juramos amor eterno. Como é intensa a vida das crianças, e pura, e saudável, e bonita, e bonita...

Helena tinha o sorriso mais belo da cidade. Era a gentileza em pessoa. Gostaria de vê-la, talvez nem precise conversar. Só queria ver se está bem, se vive ainda naquela rua próximo à esquina de minha infância. Pareceu-me sentir suas mãos quando tocavam meu rosto. Nisso um misto de nostalgia e de culpa, pois também me lembrava de minha esposa. Estela estava em casa com Higor e Mateus, a melhor família que um homem pode querer.

Volto-me ao trabalho e termino o relatório. Amanhã é dia de partir. Saio da minha Dores do Indaiá e volto para a capital. Saio de minhas lembranças e vou de volta ao barulho do trânsito e ao desassossego da cidade grande que nos impede de pensar e de repor as lembranças no lugar onde devem. Algumas xícaras de café me acompanham neste fim de noite e fim de relatório. Basta imprimir e colher as assinaturas e deixar para trás as lembranças boas.

Ligo para Estela nesta madrugada pra matar a saudade e livrar de mim pensamentos indevidos. Suo intensamente e adormeço sob a vigilância da lua e das estrelas, com a carícia do vento que entra pela janela do quarto.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 25/01/2014
Código do texto: T4664604
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