ELIMINAÇÃO ADIADA: O OCASO DAS CLASSES
LUIZ CARLOS DE FREITAS*
RESUMO: Neste estudo faz-se uma crítica às formas de implementar
políticas de avaliação baseadas em “responsabilização”, em curso no
MEC-INEP, bem como se propõe uma forma alternativa de lidar com
o problema, baseada em “qualidade negociada” com envolvimento
bilateral do Estado e da escola. Propõem-se elementos iniciais para
uma política de Estado no campo da avaliação e localiza-se o processo
de avaliação institucional da escola como o elo entre a avaliação externa
de sistema e a escola e seus profissionais. Alerta-se para o fato de
que as políticas de responsabilização unilaterais conduzirão à configuração
de escolas para pobres e escolas para ricos, bem como se alerta
para o risco de que os sistemas de avaliação externa centralizados
na Federação ocultem, em indicadores estatísticos como o IDEB, as dificuldades
que as classes populares estão tendo para aprender no interior
da escola, legitimando estratégias que somente conduzem ao
adiamento da exclusão destas – apesar do discurso da transparência
e responsabilidade.
Palavras-chave: Eliminação adiada. Avaliação institucional. Avaliação
de sistema. Responsabilização. Qualidade negociada.
______________
Prova Brasil, SAEB e IDEB
devem ser instrumentos de monitoramento de tendências e não instrumentos
de pressão.
aumento de aprovados não é o mesmo que aumento da aprendizagem.
Se um grupo de bons alunos for melhor ainda,
a média subirá, mesmo que os piores continuem onde sempre estiveram.
Nesta ordem: primeiro a política educacional,
depois a política de avaliação.
O que fazer então? Em primeiro lugar, abandonar a visão autoritária
típica da época da ditadura brasileira, quando se acreditou que
gestão verticalizada e treinamento de professor resolveriam o problema
da escola brasileira. Nascia aí o tecnicismo (Saviani, 1982). Estamos
agora diante de um “neotecnicismo” (Cf. Freitas, 1992), em que
acordos de gestão com prefeitos (em cascata para dentro dos sistemas),
responsabilização e treinamento do professor via CAPES e Universidade
Aberta do Brasil são a estratégia.
Há de se reconhecer as falhas nas escolas, mas há de se reconhecer,
igualmente, que há falhas nas políticas públicas, no sistema socioeconômico
etc. Portanto, esta é uma situação que, à espera de soluções
mais abrangentes e profundas, só pode ser resolvida por negociação e
responsabilização bilateral: escola e sistema. Os governos não podem
“posar” de grandes avaliadores, sem olhar para seus pés de barro, para
suas políticas, como se não tivessem nada a ver com a realidade educacional do país de ontem e de hoje.
_______________
A estratégia liberal é insuficiente porque responsabiliza apenas
um dos pólos: a escola. E o faz com a intenção de desresponsabilizar o
Estado de suas políticas, pela responsabilização da escola, o que prepara
a privatização. Para a escola, todo o rigor; para o Estado, a relativização
“do que é possível fazer”. Em nossa opinião, uma melhor relação
implica criar uma parceria entre escola e governo local (municípios),
por meio de um processo que chamamos de qualidade negociada, via
avaliação institucional.
Qualidade negociada é um conceito que nos chega por intermédio
de um estudo de Anna Bondioli (2004). Ele reforça uma certa tradição
de se conceber a avaliação educacional no Brasil que tem ancoragem
em autores como Lüdke (1984), Saul (1988), Dias Sobrinho
(2002a; 2002b), entre outros.
Para a autora, definir qualidade implica explicitar os descritores
fundamentais da sua natureza, ou seja: seu caráter negociável, participativo,
auto-reflexivo, contextual/plural, processual e transformador. A
qualidade, em seu aspecto negociável, é vista da seguinte forma:
A qualidade não é um dado de fato, não é um valor absoluto, não é adequação
a um padrão ou a normas estabelecidas a priori e do alto. Qualidade
é transação, isto é, debate entre indivíduos e grupos que têm um
interesse em relação à rede educativa, que têm responsabilidade para com
ela, com a qual estão envolvidos de algum modo e que trabalham para
Mas os meios e as formas de se obter
essa qualidade não serão efetivos entregando as escolas à lógica
mercadológica. A questão é um pouco mais complexa. Deixada à lógica
do mercado, o resultado esperado será a institucionalização de escola
para ricos e escola para pobres (da mesma maneira que temos celulares
para ricos e para pobres).
É importante saber se a aprendizagem em uma escola de periferia
é baixa ou alta. Mas fazer do resultado o ponto de partida para um
processo de responsabilização da escola via prefeituras leva-nos a explicar
a diferença baseados na ótica meritocrática liberal: mérito do diretor
que é bem organizado; mérito das crianças que são esforçadas; mérito
dos professores que são aplicados; mérito do prefeito que deve ser
reeleito etc. Mas e as condições de vida dos alunos e professores? E as
políticas governamentais inadequadas? E o que restou de um serviço
público do qual as elites, para se elegerem, fizeram de cabide de emprego
generalizado, enquanto puderam, sem regras para contratação
ou demissão? O que dizer da permanente remoção de professores e especialistas
a qualquer tempo, pulando de escola em escola? O que dizer
dos professores horistas que se dividem entre várias escolas? O que
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dizer dos alunos que habitam as crescentes favelas sem condições mínimas
de sobrevivência e muito menos para criar um ambientambiente propício
ao estudo? Sem falar do número de alunos em sala de aula.
Boa parte dos problemas que estamos enfrentando com a educação
básica nacional advém do próprio formato ideológico do projeto
liberal hegemônico, agora “sob nova direção”: ele reduz qualidade a
acesso – supostamente como uma primeira etapa da universalização.
Mas, antes de ser uma etapa em direção à qualidade plena da escola
pública, é um limite ideológico, como bem aponta Alavarse (2007).
Os liberais admitem a igualdade de acesso, mas como têm uma ideologia
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baseada na meritocracia, no empreendedorismo pessoal, não podem
conviver com a igualdade de resultados sem competição. Falam de igualdade
de oportunidades, não de resultados.3
Como a progressão continuada já demonstrou,
ausência de reprovação não é sinônimo de aprendizagem e qualidade
(Cf. Bertagna, 2003).
A idéia completa dos republicanos de
Bush (iniciada com Reagan) ou dos conservadores de Thatcher implica,
no momento seguinte à divulgação dos resultados por escola, transformar
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o serviço público em mercado (ou mais precisamente em um quasemercado),
deslocando o dinheiro diretamente para os pais, os quais escolhem
as melhores escolas a partir da divulgação desses resultados, de
preferência estando as escolas sobre administraadministração privada. É a política
dos “vouchers”, que dá o dinheiro aos pais e não à escola. Paralelamente,
tende a criar um mercado educacional para atender ao fracasso escolar.
No Brasil já se criou o mecanismo para iniciar a privatização: Organizações
da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) que podem
administrar escolas antes públicas. Para os liberais, a ação do mercado
forçaria à elevação da qualidade de ensino.
Todas estas ações encobrem o pano de fundo mencionado antes:
nossa sociedade produz tamanha desigualdade social que as instituições
que nela funcionam, se nenhuma ação contrária for adotada, acabam
por traduzir tais desigualdades como princípio e meio de seu funcionamento
(Bourdieu & Passeron, 1975; Baudelot & Establet,
1986).5 Todos concordamos em que isso não é desejável, mas meras
políticas de eqüidade apenas tendem a ocultar o problema central: a
desigualdade socioeconômica. Não é sem razão que os melhores desempenhos
escolares estão nas camadas com melhor nível socioeconômico,
brancas (Cf. Miranda, 2006, entre outros estudos disponíveis).
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