Biscoitos Portugal

Eram bonitas aquelas latas. Quatro delas, e foram parar lá em casa, levadas por papai. Vazias, mas pouco importava que forma ou gosto teriam os tais Biscoitos Portugal. Confesso que até hoje ainda não vi um deles ou quem de seu sabor me falasse.

As latas também não falam, e o tempo a lembrança dilata. O que mostravam era, sob um fundo beige-ocre, ou coisa assim, uma caravela singrando o mar e aquela cruz-de-malta rubra, ao vento a se estufar. Singelo? Mas belo. Na parte lateral superior dessas latas tinha a inscrição do nome do fabricante. Pergunto-me, meio descrente, se não seria a União Fabril Exportadora. É o nome que guardo nas referências escassas de coisas de Portugal. Mas o que tenho certeza é que tinha um LTDA de que, encabulado, perguntei a papai o significado. Ele me disse: é Limitada.

Por que raios não botavam aquilo por extenso, até hoje penso. Caber cabia, cabimento não havia. E tinham tampas, todas elas. Comportavam uns vinte quilos, ou litros e uniformemente foram pintadas a óleo - aqui é que já me embaralho quanto a cor, que creio ser azul escuro - para se transformarem em latas de mantimentos, pois papai gostava de comprar tudo por atacado, desde que o preço fosse descontado. Também, para alimentar aquele punhado! Arroz, feijão, farinha e açúcar. Cada uma com sua inscrição, feita a ponta de pincel, tinta branca, em uma mesma fileira de prateleira.

Por causa desse "açúcar", tive uma vez uma discussão com Dona Zinha, professora de meu segundo ano escolar. Assim que ela botou no quadro "assucar", protestei com a autoridade de um lexógrafo: professora, é com c cedilha e com acento no u. A consequência não me foi das mais doces. Contra-protestou a mestra, mas descobrindo-se ultrapassada na ortografia, disse que com dois esses também, da forma antiga, escrever se podia. Ao menos, ela se consentia. Mas os trocou pelo c cedilha. E

se troco não me prometeu, um dia, sem maior aviso, mo deu: pegou-me dias depois no ato, dando uma bolacha no colega e companheiro Edinho.

E como jorrara sangue de seu nariz, fez-me apanhar um pano molhado e limpar o assoalho (aqui não ousei contestá-la sobre dois esses ou cê cedilha) na presença de todos os colegas. Já o Edinho não chorou e, tampouco, parece-me, se incomodou. Havia sido chumbo trocado, e nisso a gente tava meio acostumado.

Voltemos às latas: antes de ganharem suas cores definitivas, pus uma delas na cabeça: fora buscar água na casa de dona Corina, em tempos de muita seca e pior serviço de águas. Tinha meus onze anos se tanto. A distância a ser coberta era de não mais que trezentos metros. Duas esquinas, uma subidinha. Mas aqueles quase vinte litros, foram gradativamente pesando mais à medida que minhas pernas fraquejavam e o pescoço parecia se achatar. Uma senhora, Dona Sinhana Salvador, que parecia que já fora escrava, contudo não me salvava, mas da janela de sua casinha, aflita é que me mirava.

Mal a primeira esquina dobrei, fez água o meu sonho de aguentar todo aquele peso, ombreando-me com minhas tias, bambambãs com um pote na cabeça: foi pá, e a lata na calçada derrubei. E a marca do amasso, numa delas deixei. Provalmente chorei, mas com as águas afogaram as lágrimas.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 27/09/2013
Reeditado em 16/01/2024
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