Inapaixonável - Capítulo 4

4.

Gêmea?

- Cadu, por acaso você disse que iria me ajudar só por causa daquela 'cliente' em especial? - o padeiro parecia meio contrariado. Uma ruga tinha acabado de se se aprofundar ainda mais em sua testa.

- É claro que não, pai. Eu posso fazer tudo na padaria se quiser, como eu disse é melhor o senhor descansar, sabe como é tenho bastante trabalho a fazer...

- Sei... Até mesmo esquecer os clientes esperando impacientes na fila enquanto você fica aí de papo conversando com uma garota? Acho que eu posso tomar conta disso sozinho.

Caio Duarte (e não Carlos Eduardo como muitos pensam), ou como ele prefere ser chamado, Cadu, era o filho mais velho do padeiro. Tinha dezenove anos, mas era alto o bastante para algumas pessoas acharem que ele fosse um pouco mais velho.

Ele adorava o sangue italiano que corria por suas veias e um dia até pensou em ser um chefe de cozinha, como o pai tinha sido antes de ter caído na falência e, depois de um tempo, juntado dinheiro para abrir seus próprios negócios. Acontece que ele era péssimo com comida. Até mesmo pra cuidar de um caixa tinha sido tão distraído. Sorte que ninguém roubara nada.

Os amigos querem que ele seja jogador de futebol da seleção. Ele nem sabe o que gosta pra falar a verdade. Tem vontade de ser um cineasta como Tim Burton, mas nunca falou nada para ninguém. Era a típica vontade esquisita que logo desapareceria com o tempo se ele parasse de pensar sobre isso.

Era o mesmo que pensava sobre a garota morena que passava todo dia por ali na bicicleta vermelha provavelmente a caminho da escola. Ele não sabia ao certo o por que gostava de ficar no caixa mais próximo da porta automática, mas assim podia vê-la passar todo dia no horário da tarde. Era esquisita aquela vontade de falar com ela. De conhecê-la. Era tudo muito confuso. Só sabia de uma coisa. Ela não estava nem aí pra ele. Claro que isso não importava nem um pouco, já que milhões de outras garotas caíam aos pés dele só pelo fato de ter cabelos cor de mel e olhos azuis. Podia ficar com todas que quisesse.

Só que ele estava meio desanimado. Não queria pensar em garotas depois da vez em que sua ex namorada o tinha traído com um cantor de funk mais velho. Na época, aquilo o deixara com vontade de matar o cara só de pensar. Foi mais por esse motivo que deixou de lado essa idéia de conversar com a menina de olhos tristes que sempre passava por ali.

Pelo menos até aquela hora.

Podia sentir que havia alguma coisa errada.

Mas precisava conseguir a cofiança dela primeiro. E depois talvez entendesse porque ela parecia tão estranha mesmo não a conhecendo direito.

Lucy, a tal menina, não estava nada bem.

***

Lucy deixou os pães sobre a mesa da sala de jantar e gritou para que a mãe pudesse ter a consciência de que ela tinha chegado. O silêncio respondeu. Sua mãe não estava em casa. Era provável que tinha ido a uma festa beber até ficar maluca e voltar para a casa de noite. Estava acostumada com isso.

Tinha mais um resto de dia para "curtir" e no dia seguinte só iria à escola para pegar o boletim e finalmente dizer que estava livre daquela coisa horrenda chamada escola a qual foi forçada a entrar só porque a mãe disse que os filhos dos amigos dela estudaram lá e que ela deveria ser melhor do que eles para mostrar de quem é filha.

Sozinha passou a noite mais uma vez com um papel e suas histórias não interessantes. A não ser pelo fato de ter criado uma amiga imaginária. Aquilo nem fazia sentido, já que tinha passado da idade de fazer uma coisa dessas, mas mesmo assim Lucy se convencera de que era paranóica.

Teve um sonho ao qual ela mesma não se lembrava. A única coisa que fez foi acordar gritando algo que não entendeu. Estava suando. Pelo jeito tinha sido um baita de um pesadelo. O despertador velho fez um ruído ao seu lado. Levantou da cama, foi até o banheiro e jogou água bem gelada no rosto para acordar. Já era outro dia.

Sua mãe ainda não tinha chegado em casa. Já imaginava como ela passou a noite e até mais ou menos 'onde' ou com 'quem' mas preferiu nem pensar, era muito nojento. Sem contar que nada deveria estragar aquele dia. Era o último dia de aula! E na verdade nem tinha aula era só escola-boletim-aprovada-casa! Lucy não se sentia assim tão alegre a muito tempo.

A bicicleta vermelha rangeu um pouco quando saiu da área de serviço. Se ao menos ela conseguisse um emprego poderia ter algum dinheirinho para comprar uma nova. Não que não gostasse daquela, mas sinceramente não estava em tão boas condições desde que foi comprada!

Com um pouco de dificuldade para entrar com aquele trombolhão no elevador, ela seguiu seu caminho de sempre. Obviamente essa coisa de ter de subir com a bicicleta até o andar do apartamento era ridículo, mas sua mãe a proibia de colocar na vaga ou no estacionamento, e digamos que em realação a isso ela era influente até mesmo para o síndico, que de certo modo teve de aceitar a proposta, o dinheiro do suborno lhe interessava. Então, Lucy desceu a rua sentindo o vento forte jogar seus cabelos para trás, passou pela padaria a qual havia almoçado no dia anterior e até pensou em comer de novo no restaurante de lá. Ainda sobrara dinheiro suficiente. Ela nunca gostou muito da comida congelada que sobra para ela comer em casa. Ali pelo menos, eles não a faziam se sentir mal.

Mal chegou ao colégio, "estacionou" sua bicicleta no bicietário que ficava na parte ao lado da escada principal do bloco do ensino médio e saiu correndo em direção a secretaria.

Sempre soube o quanto aquele lugar era desorganizado. Teve de esperar uma fila enorme para no fim, em pouquíssimos segundos, a secretária dizer que tanto as últimas provas corrigidas quanto o boletim não estavam ali e sim nas salas em que o aluno estudasse. Não era mais fácil colocar uma placa gigante ali na frente dizendo sobre as salas ao invés de criar aquela muvuca toda? Lucy definitivamente não entendia a cabeça do pessoal que comandava aquela escola.

Saiu indignada do prédio velho em que estava e foi para o prédio mais novo, reformado no início do ano, aonde ficavam as salas dos alunos do primeiro ao terceiro ano do ensino médio. Lá era até legal, se pudesse considerar somente o local. Tudo bem limpo, com bebedouros espalhados por todo canto e tinha até uma saída para o estacionamento só daquele lado, que no caso era a que sempre usava, já que era ali perto que sua bicicleta ficava guardada.

O movimento por ali era grande. Pelo menos todos estavam preocupados com as notas e não com o fato da roupa de Lucy ser horrível sendo que ela usava exatamente o mesmo uniforme escolar que as outras meninas. Subiu um lance de escada e respirou fundo antes de empurrar a porta da sala e falar com o homem que estava distribuindo o boletim e esperando todos que os pegaram assinarem em uma ficha para ter certeza de que estavam em suas mãos.

Ok, mais fila. Quando chegou a vez de Lucy o cara deu uma olhada nas folhas grampiadas enquanto ela assinava a lista. 'Ai meu Deus' pensou 'Será que fui tão mal assim?'. A expressão que o mais velho fazia era de surpresa. Que fosse uma surpresa boa.

Era boa. Muito, mas muito boa. Ela tinha conseguido passar em tudo com todas as notas acima de 8 durante o ano todo! Com certeza ouviria uma reclamação da mãe de que tinha que tirar dez em todas as outras matérias também, mas sempre fora assim. Pelo menos estava super contente de si mesma. Pelo o que entendeu o seu foi o melhor boletim que o cara tinha entregado até aquela hora.

Dobrou o papel em vários pedacinhos para que coubesse no bolso da calça, já que achava que não tinha sentido algum levar uma bolsa, e foi até o bicicletario pegar o trombolhão vermelho.

Mas para sua surpresa, dessa vez uma ruim, a bicicleta não estava mais lá. E o pior é que tinha certeza de que tinha colocado o trinco e um cadeado ao qual só ela tinha a chave. Não era possível que alguém tinha a roubado! Ela estava mais em choque pelo fato de quererem uma bicicleta daquelas caindo aos pedaços do que de ter sido roubada.

- Está procurando isso aqui? - ouviu uma voz bem familiar.

Não podia ser. Lucy mal conseguia respirar quando viu que sua amiga "imaginária" estava ali parada na sua frente, com a sua bicicleta parecendo muito 'real'. E se ela tinha conseguido o cadeado e estava tocando na vermelha, estava óbvio que aquilo não era um delírio de uma imaginação fértil. Ela era real. Mesmo.

Lucy tinha uma irmã gêmea de verdade.

- Digamos que esse cadeado é meio velho, mas papai ainda tinha a cópia da chave. Acho estranho que mamãe tenha te dado uma coisa dessa de bicicleta já que pelo o que eu sempre ouvi ela é bem rica.

- Não sou sua irmã - contrariou a morena - e será que poderia devolver a bicicleta? Tá sem almoço lá em casa e eu preciso dela para ir até a padaria para comer alguma coisa.

- Pode falar o que você quiser, Lucy, mas você é sim minha irmã. Gêmea. Quando contei para papai sobre ontem, você não sabe o quanto ele ficou feliz em poder te ver depois desses anos todos! Ainda bem que tenho memória fotográfica e lembrei do símbolo na camisa do uniforme da sua escola!

- Eu estou falando sério. Preciso almoçar. Será que poderia devolver a minha bicicleta? - ela esperou que a menina risse da cara dela. Mas ela apenas sorriu de modo dócil. Algumas pessoas ao redor estavam espantadas por ver 'duas' de Lucy. Uma loira e outra morena discutindo por causa de uma bicicleta velha.

- Acha que vou deixar você andar nisso aí? Temos almoço em casa, mas já que você quer ir na padaria que é logo aqui, papai pode levar a gente. Ele tá logo ali no carro. Por favooooooor! Você vai adorar conhecê-lo, ele é super legal! Ah... - A loura já estava empurrando Lucy para o carro preto brilhante e colocando a bicicleta em uma aste pendurada na traseira do veículo - A propósito, meu nome é Luana, mas as pessoas me chamam Luna. Já percebeu? Até nossos nomes são parecidos! Lucy e Luna!

Lucy suspirou e uma mecha de seu cabelo caiu em cima dos olhos. Se tinha mesmo uma irmã gêmea por que sua mãe não tinha falado nada? E por que ela tinha dito que o pai estava morto, sendo que ele estava vivinho da Silva?

- Filha? - ouviu uma voz grossa de dentro do carro e assim que entrou automaticamente reconheceu o rosto daquele homem. Não que tivesse visto antes, mas era familiar. Talvez tivesse visto em seus sonhos, afinal ela queria muito conhecer o pai. - Ai meu Deus, Lucy! Minha menininha! Nem acredito que é você. - ele se virou no banco e quase apertou o freio de mão tentado abraça-la. Ele estava chorando. Um homem chorava a sua frente. Ela nunca tinha visto um homem chorar de verdade.

- P-Pai? - ela acabou dizendo. Seus olhos já estavam lacrimejando. Ele era seu pai de verdade, aquela hora conseguia sentir isso. O pai que tanto quis conhecer não estava morto. Estava ali abraçado com ela demonstrando o maior carinho que nunca recebeu na vida. Aquele era o pai dela! E isso significava que sim, Luna era mesmo sua irmã gêmea. Não sabia mais se estava chorando de tristeza ou alegria ou os dois ao mesmo tempo. - Pai!!

Todos estavam chorando e felizes. Quem diria que dentro de um carro podia caber tanta emoção? Lucy foi na parte de trás do veículo ao lado da então gêmea. As duas não eram tão diferentes em questão de personalidade como imaginava. A música favorita delas era a mesma e estava tocando na rádio naquele exato momento que a família se dirigia ao primeiro almoço juntos na padaria da quadra mais próxima. Lucy nunca se sentiu tão emotiva na vida.

Assim que chegaram, todos foram andando juntos para dentro da loja.

- Oi? - O menino do dia anterior estava no caixa novamente. Lucy o reconheceu, estava com Luna ao seu lado enquanto o pai dava uma olhada dentro do refeitório - Gostou tanto da comida que voltou hoje? Falei que ninguém resiste aos pratos do meu pai - ele sorriu. - Quer que eu te acompanhe de novo?

- Ah olá - Luna abraçava a irmã como se quisesse a qualquer momento puxá-la para algum canto para dizer alguma coisa importante.

- Ah... Não sabia que você tinha uma irmã gêmea, Lucy! - ele encarou as duas com um sorriso ainda mais branco - Apesar de que eu prefiro as morenas... - nessa parte o garoto sussurrou, só a que estava mais perto pode ouvir, ou seja, a própria Lucy.

Lucy tinha mais coisas com o que se preocupar do que com o que o menino tinha dito. Que bom que ele gostava mais das morenas, porque ela nunca entendia o fato da maioria preferir as loiras.

Cadu, que estava no caixa, pediu a um outro funcionário que estava ali ao lado para ficar em seu lugar, mas claro que conferiu o dinheiro que havia antes, e então foi atrás das irmãs gêmeas procurando uma boa mesa para os três se sentarem. Ou os quatro, parece que o pai delas estava ali também.

Lucy sentiu uma cotovela na costela. Como pensou, a irmã (não que ela tivesse se acostumado a isso, mas pelo menos estava tentando ser mais receptiva) a puxou para um canto enquanto os homens conversavam.

- Lucy! Meu Deus você é cega ou o quê?

- Como assim? - perguntou não entendendo absolutamente nada.

- Você não vê que esse garoto tá caidinho por você?

Bec
Enviado por Bec em 08/08/2013
Reeditado em 19/04/2014
Código do texto: T4425865
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.