' NÃO É PORQUE CAI A NOITE, QUE O SOL NÃO EXISTE MAIS'

Ele era bem diferente de outros rapazes de sua idade. Seu caminhar era vagaroso, na rua quase não olhava para os lados. Seu apelido era “ o pisa- mansinho”. E sua roupa era muito sem graça, como ele mesmo. Usava uns óculos com lentes tão fortes que eram chamados de “ fundo de garrafa”. Devia ser por ler muito. Na verdade, sua talvez única distração , quando não estava caladão e alheio, era ler. Não gostava de aproximações. Entendia-se bem com a solidão que elegera. Cultivava-a até!

Aquilo intrigou os pais durante algum tempo , mas depois acharam que fazia parte de sua natureza e não se preocuparam mais. Os outros filhos , duas moças e dois rapazes respeitavam o irmão do jeito que ele era.

Mas desde menino, de um certo tempo em diante, o Fernando apresentava um comportamento soturno. Não tinha amizades. Mostrava-se moderado em suas atividades, a animação própria da idade, sonegada por uma sombra de indiferença que crescia ...crescia.

Já rapaz, costumava sair e sentar-se em algum banco de uma pracinha do bairro. Ali permanecia por longas horas, imaginando que carregava alguma doença. Ou várias. Tinha sempre às mãos alguns remédios com que aplacar a sua hipocondria.

Era inteligente e, no entanto, os estudos não foram muito longe.

Em que meandros profundos de sua alma e do seu ser estaria incrustada a sua alegria ?

Por que só ele se tornara refém daquela angústia ?

Por que aquela vivacidade que ele já conhecera em criança , não emergia nunca?

Precisava, queria viver, sentir, queria a mente liberta, mas não conseguia.

Havia um rapaz, o Fred, com quem às vezes conversava, porque o tinha na conta de alguém inteligente. E, pouco a pouco, o recém- chegado ao bairro, se interessava também pela pessoa de Fernando como objeto de estudo, já que cursava Psicologia na Faculdade .

Às vezes ficavam os dois, longos períodos sentados lado a lado no banco da pracinha , sem dizer uma palavra. Olhavam os aposentados jogando dominó, as pessoas passando, crianças brincando. Até Fred quebrar o mutismo:

_Sabia, Fernando, que tem gente que acha bonito ser triste?

-Será?

-É sim! Eu mesmo tive uma namorada que dizia que achava romântico ter melancolia. Acho que era porque os poetas do século XIX sofriam disso , o mal do século. Mas aí eu disse que não queria ouvir dela nenhuma palavra pessimista. Que as palavras deprimentes deveriam sair de seu dicionário. Somos jovens e temos saúde. Isso é um bem sem preço. Logo , logo , ela entrou na minha.

- Fred, você me desculpe, mas eu acho ridículo aqueles homens nessa alegria toda com um joguinho de dominó.

- - Não é não. Eles estão fazendo o que Baudelaire, o poeta francês, aconselhou.

- -E o que foi?

- Que devemos nos embriagar de ( ... ) virtude ou de poesia pra esquecermos a passagem do tempo voraz. Eles estão se “embriagando” com o joguinho.

De minha parte , o que me diverte mesmo é mulher. Você não quer hoje ir comigo ver... umas “damas da noite”?

Aos poucos, ia Fred ganhando uma certa intimidade com o rapaz, que já lhe fazia algumas confidências. Na verdade aquele tipo era um desafio para o universitário. Entender os motivos de um comportamento tão estranho era realmente uma grande oportunidade de pesquisa.

Era entusiasmado com a possibilidade de percorrer as sinuosidades daquela mente, ou melhor, perseguir os fantasmas que povoavam aquele espírito e trabalhar o fim deles.

Numa das idas à casa de Madame Zenilda, Fernando saiu transtornado e acabou revelando para o amigo um segredo muito guardado.

Sentados à mesa de um bar, ele ia contando com certo constrangimento : “Tenho muita dificuldade nos relacionamentos, principalmente com “ mulheres da vida”. E o pior é que todas as vezes que tento uma aproximação carnal, a mulher desnuda, o convite exaltado....é como se eu estivesse olhando minha mãe e me invade uma repulsa...saio apressado e mais angustiado me torno.

- A que você atribui isso?

- - Não sei. Só lembro que , como eu sou o caçula, mamãe sempre teve um carinho especial comigo. Era uma mulher muito bonita. Até a minha pré- adolescência eu era um garoto muito religioso, mais do que todos de casa.

- - E isso não era bom?

- - Talvez não. Porque assim, os abalos e as vilanias assumem dimensões muito maiores do que para os outros.

- Acho que sofri muito mais que meus irmãos com os fatos que começamos a perceber sobre nossa mãe. Fiquei muito tempo chocado com o que presenciei um dia. Nunca tive coragem de relatar a ninguém. Aí, me tornei arredio, procurei o afastamento de quase tudo e você vê como é que eu sou. Ridicularizado.

- - Mas o que foi que você viu?

- - Nada mais nada menos do que minha mãe fazendo sexo com um homem que não era o meu pai. Ela nem percebeu que eu vi. E acho que havia outros ainda. Meu pai fingia não saber. Meus irmãos também. Mas eu me fechei. Desde então sou desmotivado para a vida.

- - E sua mãe procurava conversar com você e com seus irmãos?

- - Depois do que eu chamo “ mudança”, ela quase não conversava mais. Passou a sair amiúde, arrumada demais e com batom muito vermelho, coisa que até ali ela nunca fizera. Depois de algum tempo, ela sumiu , nós nem sabemos pra onde. Meu pai arranjou outra mulher e desde então, todos tentam fingir que está tudo bem.

- -Fernando, você deveria ter procurado ajuda. É certo que não é fácil essa situação, mas não é o fim do mundo. É preciso ter sabedoria para viver. Não podemos nos entregar, por mais complicadas que pareçam as circunstâncias. A vida é preciosa demais e única.

- Mas parece que estou mutilado. É como me sinto. Devo ser culpado por não ter forças pra me erguer.

- - Não. Seja como for, o que importa é estar vivo. É preciso lutar contra qualquer forma de aprisionamento, seja ele mental, emocional ou físico . É importante não se sentir tão culpado, porque há sentimentos que são involuntários. O que conta é o que a gente faz com esses sentimentos.

- -É. Será que ainda há esperança pra mim? Vou meditar sobre tudo o que você me disse.

- -Sim. E não nos esqueçamos de buscar Ajuda Divina. Quando quiser, podemos trocar idéias.

- E com um tapinha no ombro do amigo, Fred ainda concluiu:

- - A noite chega, homem, mas o sol continua a existir e aparecerá em seguida. É só esperar!

Esther Lessa
Enviado por Esther Lessa em 05/06/2013
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