Tradução: desafio de dialogar com os textos de línguas diferentes - traição da forma e atração do conteúdo afim
TRANSCRIAÇÃO: A TRADUÇÃO EM JOGO
Cristina Monteiro de Castro Pereira (UERJ)
Temendo um novo dilúvio, os homens constróem uma torre de medidas transgressoras: queriam alcançar o céu. A hybris, ancestral tentação trágica do homem de ultrapassar seus limites, está presente na história da Torre de Babel do Antigo Testamento e provoca a ira não mais dos deuses gregos, mas de um onipotente e único Deus. Indignado com a pretensão dos homens, o Todo-Poderoso faz a torre desmoronar e os priva da língua universal: cria e dissemina entre eles diferentes idiomas, dificultando o entendimento entre os povos.
É nessa passagem da Bíblia que Walter Benjamin se inspira para falar sobre tradução em seu ensaio A tarefa do tradutor. A multiplicação dos idiomas afasta os homens – assim como a expulsão de Adão do Paraíso ou a queda de Lúcifer[1] – de sua origem divina (bem como da "língua original"). Seguindo essa linha de pensamento, a tradução, nos seus moldes mais tradicionais, estaria impregnada de uma enorme carga de melancolia, advinda da impossibilidade de recuperação total do texto original em uma outra língua: a negação do retorno à origem.
Quando lidamos com textos estéticos, cuja significação ultrapassa sua mensagem conteudística e se torna parte de um processo de interação entre o leitor e a obra; quando os significantes e a estrutura da obra deixam de ser meros instrumentos e são semantizados pelo autor: neste caso torna-se ainda mais difícil abarcar toda a riqueza de significados e transpô-la para uma outra língua. Devido a essa inegável constatação, admite-se ser a tradução uma tarefa que, a princípio, já se assume como lacunar.
Diante do impasse e de sentenças taxativas quanto à impossibilidade da tradução de textos literários, chega-se a uma saída possível: a tradução criativa. A idéia, que pode ser melhor entendida com Jakobson, é a de que um tradutor que lida com textos em que predominam a função poética da linguagem, tem que, necessariamente, se preocupar com os processos estéticos e estruturais da obra. Ou seja, de acordo com Jakobson, a forma é parte importante no processo de significação da obra literária, em que impera a função poética. Ora, a forma, a estrutura, o trabalho com os significantes: isso tudo não faz parte do "verbal" do texto – trata-se do "não-dito".
Assumir a falta e transformá-la em trampolim para a criação é a solução apontada e adotada por Haroldo de Campos. O "impossível de se dizer" do original se transforma em espaço para a criação artística. Opondo-se à visão tradicionalista, que colocava o tradutor e seu texto numa posição secundária e subserviente em relação ao autor e ao original, teóricos como Walter Benjamin e Haroldo de Campos conquistam, para a tradução, sua autonomia.
As lacunas não têm mais, neste caso, uma conotação negativa: a “falta”, que antes provocava a melancolia, transforma-se agora em impulso criativo para o tradutor. Haroldo de Campos utiliza esses vazios – potencialidades em latência – para introduzir, na tradução, criações poéticas que visam a uma nova obra (uma transcriação[2] da primeira) a partir da informação estética do original:
Então, para nós, tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela, autônoma porém recíproca. Quanto mais inçado de dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de recriação. Numa tradução dessa natureza, não se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma (propriedades sonoras, de imagética visual, enfiam tudo aquilo que forma, segundo Charles Morris, a iconicidade do signo estético, entendido por signo icônico aquele "que é de certa maneira similar àquilo que ele denota"). O significado, o parâmetro semântico, será apenas e tão-somente a baliza demarcatória do lugar da empresa recriadora. Está-se pois, no avesso da chamada tradução literal (CAMPOS, 1992: 35).
O transcriador, para muito além de nos proporcionar o texto traduzido, visa a transformar o passado em algo novo, seguindo a dica de Ezra Pound (make it new). O poeta reivindica para suas transcriações o estatuto de um novo original, ao dissertar sobre suas traduções de Dante: Sua [da tradução] mira é produzir um texto isomórfico em relação à matriz dantesca, um texto que, por seu turno ambicione afirmar-se como um original autônomo, par droit de conquête (CAMPOS, 1998: 67).
Não existe, nessa proposta, uma intenção didática, não se pretende uma tradução que apenas dê a conhecer o conteúdo do texto original. Trata-se de uma verdadeira transformação do texto traduzido em relação ao original, a partir de uma leitura crítica,[3] preocupada em detectar e traduzir não apenas o conteúdo, mas a estrutura, a informação estética da obra – aquilo que a caracteriza como arte. Manter ou mudar estruturas e significados são contingências, deflagradas pelo propósito maior de recriar, numa outra língua, a força da informação estética do original.
Esse processo vai além do e volta para o texto. Ou seja, participam da formação do novo texto duas forças que – apesar de muitas vezes serem consideradas antagônicas – acreditamos complementares: a histórica e a estética. Para identificar os recursos de construção do original, para fazer escolhas conscientes em relação à tradução da micro e da macroestrutura do texto, é preciso que o tradutor tenha um grande conhecimento da visão de mundo da época: o que está no horizonte do poeta é sempre um modo de trans-historicizar a linguagem da poesia, fazendo da tradução uma forma elevada de resgate cultural.[4]
Depois de um mergulho na Itália medieval e de identificar as estruturas paradisíacas do poema, o poeta-tradudor materializa aos nossos brasileiros e contemporâneos olhos uma visão que acreditaríamos perdida. Ressalta, criando em cima do original, informações que, mais imediatas para leitores de dantes, poderiam ter seu efeito estético enfraquecido em um outro contexto espaço-temporal. Essa tarefa, por meio de uma tradução aos moldes tradicionais, muito provavelmente, só conseguiria proporcionar uma imagem desbotada. Haroldo de Campos, através de sua transcriação, emparadisa nossos olhos: recria a partir da matriz dantesca, acrescentando-lhe novas cores.
Encontramos um belo exemplo do que expomos acima na transcrição do verso 13, Canto I do Paraíso:
O buono Apollo, all’ultimo lavoro
Apolo, eis-me a lavrar o último ouro
(CAMPOS, 1998: 85)
A tradução criativa de Haroldo decompõe o lexema “lavoro” e ilumina suas potencialidades latentes: o verbo “lavrar” e o substantivo “ouro”. Trabalhar o metal mais reluzente, esculpir a luz: (pa)lavrar Deus. Tarefa para a qual Dante não se sente capaz sem a ajuda de um outro deus – antigo, mas ainda presente em seu imaginário, Apolo, a quem recorre nos versos desse Canto. Haroldo de Campos, através de sua brilhante in(ter)venção criativa, aproxima seus leitores do ouro que Dante começa a lavrar na terceira parte de A Divina Comédia. Apresenta aos olhos desauratizados de seus contemporâneos, a magia e o esplendor daquilo que Dante pretende relatar: a visão do Paraíso.
Um outro exemplo do processo de tradução criativa: o Canto XXXI do Paraíso:
E a quel mezzo, com le penne sparte,
vid' io più di mille angeli festanti,
ciascun distinto di fulgore e d'arte.
Na transcriação de Haroldo de Campos:
E no centro, mil anjos no esplendor
das asas plumiabertas vi, dançantes,
cada um diverso em arte e no fulgor (Idem: 147)
As imagens construídas através do trabalho concreto com os significantes é de extrema importância para a fruição estética dessa passagem do Paraíso. A festa dos anjos se materializa no terceto, através da profusão da vogal “i”, capaz de trazer para o segundo verso, por sua sonoridade e por seu aspecto visual (assemelham-se a riscos), a impressão de agitação e de movimento: vid' io più di mille angeli festanti. Em português, o “i” não é uma marca do plural, como o é em italiano. Eis o exemplo de um impasse na tradução: perdendo parte de sua funcionalidade, o “i” não encontra mais sua relevância nem sua possibilidade de multiplicação no verso. E a tradução perde a chance de proporcionar ao leitor o efeito estético decorrente de sua profusão.
Haroldo constrói o verso a partir da repetição da vogal “o”: E no centro, mil anjos no esplendor. A partir do “centro”, a materialidade visual da letra “o” se assemelha a ondas que reverberam o sagrado. Haroldo não deixa também de colocar em relevo em sua tradução a materialidade sonora do “o”, vogal ligada ao espanto frente a uma cena divina. Destacamos também a assonância em “a”, que, contrastando com a solenidade do “o”, abre-se em festa de asas plumiabertas e dançantes. Ainda encontramos a relevância da aliteração em “s”, insinuando o barulho das asas em movimento. Haroldo de Campos constrói, através de outros recursos, um efeito análogo, inundando os versos em português, por uma outra via, do movimento angélico.
Le penne sparte, literalmente “as asas abertas”, transformam-se, na transcriação de Haroldo de Campos, em “asas plumiabertas”. A palavra-valise, ou palavra-montagem[5] aponta para a suavidade das asas abertas dos anjos em sua dança. Com uma única palavra – duas superpostas – Haroldo forma uma imagem concentrada, rica, que intensifica o efeito do terceto sobre o receptor. Coloca em relevo, para seus leitores contemporâneos, as potentes imagens-dançantes apresentadas por Dante em seu Paraíso.
Dante Alighieri tem – assim como Haroldo de Campos, em seus poemas e em suas traduções – uma preocupação extrema com a forma na composição de sua Commedia. Olhemos mais de perto o Paraíso (Canto XXXIII):
Ó luce etterna che sola in te sidi,
sola t'intendi, e da te intelletta
e intendente te ami e arridi!
Haroldo de Campos comenta sobre o terceto acima no ensaio que precede suas traduções dos Cantos: (a) parequese, a variante etimológica da paranomásia, permite a tautologia teologal do mesmo que se ensimesma: veja-se a configuração verbal da luz eterna que a si, a sós, se entende, intelecta e entendente (CAMPOS, 1998: 82). E o poeta-tradutor, encarando – como Dante, mas semiologicamente – a perfeição, mantém o máximo possível do jogo "teo-tautológico" em sua tradução:
Ó lume eterno, a sós em ti sediado,
só te entendendo e de ti intelecto,
e no entender-te amante deleitado!
(CAMPOS, 1998: 159).
Ressaltamos a permanência, na tradução, do jogo construído a partir do pronome te/ti, que nos apresenta, concretamente, o lume eterno imbricando-se em si mesmo, apontando para si mesmo – ensimesmado.
Comparemos a tradução de Haroldo com a de Ítalo Eugenio Mauro:
Ó eterna Luz que repousas só em Ti;
a Ti só entendes e , por Ti entendida,
respondes ao amor que te sorri! [1]
(ALLIGHIERI: 2001, 233).
Ao utilizar o pronome "ti" com letra maiúscula, como é usual em se tratando de uma referência a Deus, o tradutor quebra o jogo instaurado por Dante e mantido por Haroldo. Em prol de reforçar a força conteudística do pronome (referir-se a Deus), o uso da maiúscula corrompe o movimento auto-referente alcançado através da proliferação da consoante “t”. O entrelaçamento perde o sentido, quando impedem sua eterna circularidade através do uso da maiúscula, provocando pausas e cortes no fluir do verso.
O último verso do terceto é onde Haroldo mais se afasta do original e cria uma nova forma, que acaba por se revelar profundamente condizente com a circularidade intrínseca da estrofe: e no entender-te amante deleitado! Além de manter o jogo aliterante do "t", Haroldo reforça a circularidade presente nesse terceto ao valer-se das palavras "amante" e "deleitado" pela conotação, nessa montagem, ao mesmo tempo ativa (amante) e passiva (deleitado) da expressão.
Aproximando-se ou afastando-se do original, Haroldo de Campos não abre mão da mobilidade do diálogo: é a partir dele que faz suas escolhas, pensando sempre em potencializar ao máximo o efeito estético da obra e mantê-lo funcional para o presente, através de uma recriação do passado. Fica claro, com a ajuda dos exemplos acima, que o método da transcriação de Haroldo de Campos não se resume a uma postura pré-determinada de recuperar o texto de Dante. A ruptura com a origem é bem-vinda. A queda é desejada. A tradução é luciferina[6].
BIBLIOGRAFIA
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. 3 vol. Ed. Bilíngüe. Trad. Ítalo Eugênio Mauro. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2001.
BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. Cadernos do Mestrado, vol. 1. Rio de Janeiro: UERJ, 1992.
CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. 4ª ed.. São Paulo: Perspectiva, 1977.
––––––. Metalinguagem & outras metas. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
––––––. O arco-íris branco. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
––––––. Pedra e luz na poesia de Dante. Rio de Janeiro: Imago, 1998.
––––––. Signantia quasi coelum – Signância quase céu. São Paulo: Perspectiva, 1979.
LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2002.
[1] O magno pecado do Anjo rebelde ("il primo superbo", PAR. XIX, 46) foi a sua tentativa não auspiciada pela graça (e portanto transgressora) de transpor os limites sígnicos: il trapassar del segno, culpa semiológica (paradigma, depois, do "pecado original" dos pais edênicos, Adão e Eva (cf. PAR XXVI, 117). (CAMPOS, 1998: 79)
[2] Transcriação é um neologismo cunhado por Haroldo de Campos para nomear um tipo de tradução que ultrapassa os limites do significado e se propõe à fazer funcionar o próprio processo de significação original numa outra língua.
[3]Se a tradução é uma forma privilegiada de leitura crítica, será através dela que se poderão conduzir outros poetas, amadores de estudantes de literatura à penetração no âmago do texto artístico, nos seus mecanismos e engrenagens mais íntimos. (CAMPOS, 1992: 46).
[4] BARBOSA, João Alexandre. “ Um Cosmonauta do Significante: Navegar é Preciso” in CAMPOS: 1979, 20.
[5]Termo joyceano para designar uma palavra formada por uma combinação de outras, como “plumiabertas”.
[6] Tudo isso o tradutor tem que transcriar, excedendo os lindes de sua língua, estranhando-lhe o léxico, recompensando a perda aqui com uma intromissão inventiva acolá, a infratradução forçada com a hipertradução venturosa, até que desatine e desapodere aquela última húbris (culpa luciferina, transgressão semiológica?) que é transformar o original na tradução de sua tradução. (CAMPOS: 1998, 82)