O CALIFA, ROMANCE JUDEU-ÁRABE
J B PEREIRA 29/04/2012
"Só a Ti adoramos e só de Ti imploramos ajuda!"
(Al Corão 1:5)
1. Será preciso que um “gentio” nos acorde para percebermos que Cristo está em minha vida ou em minha comunidade? Qual a implicação disso para meu viver diário?
2. E quanto à situação de nossos púlpitos hoje? Quando as pessoas querem saber sobre o Rei dos judeus (...) Paulo explicará (Romanos 11) que a situação de Israel faz parte do glorioso plano de Deus para salvação daquele que crê, tanto judeu quanto gentio (Rm 1.16,17). (...) devemos temer e tremer diante da santidade de nosso Deus, agradecendo a cada momento por seu plano glorioso incluir misericórdia sobre nós. Devemos nos unir aos magos na procura por um relacionamento vivo com nosso Rei e não ignorar a presença dele entre seu povo. Os misteriosos Magos do Oriente, por Joseías Jr, dez. 2009, em http://iprodigo.com/textos/os-misteriosos-magos.html
Já posso partir deste mundo. Vou despedir-me de todos: dos que me amam e dos que me desprezam. Devolvo à terra o que dela recebi. O genoma fica nas entrelinhas dessa obra. Não tentem me compreender e me reduzir às personae que elejo em meu lugar. Somos deveras paradoxais. Peço sua prece e uma mirada estrábica. Perdoem-me as fraquezas, sem as quais não se vê meu ser. Visite meu túmulo e leia minha obra. Se a lâmpada apaga; em outro lugar, seu candelabro está disponível a outra que vier. A ampulheta é visível e a areia do tempo se diminui com cada página que se Le: a última página qual grão de pó é levado pela ação corrosiva do tempo. Minha viagem aqui não será em vão se você ler e tirar algum proveito destas páginas como um toque de vida e de amor, de compaixão e crença. Faço minhas as palavras de Tagore na introdução da Bíblia que abri em casa de um amigo meu. E de outra sorte, minha leitura flui às páginas de Sobre a Morte e o morrer, de Elisabeth Kübler. Editora Martim Fontes. 1992.
PREFÁCIO
Outros empreenderam descrever as culturas do Oriente. Aqui proponho uma viagem ao Oriente e ao Islã, depois de me interessar sobre o assunto. É uma contribuição de um admirador dessas paisagens. Geografia e história se dão as mãos na compreensão do contexto vital em que as páginas desta obra se mergulham. É que tais páginas se propõem a penetrar de modo sutil e nem por isso mesmo nem mais profundo à idiossincrasias e modus vivendi do mundo islâmico. A personalidade de homens do Islã nos impressiona durante muitas gerações como Califas e seus mistérios. Nesse mundo, o calor e o exótico se fluem na consciência de nossa limitação de olhar o Oriente como nicho de culturas vivas e tão ricas quanto o viajor curioso por aprender e apreender o modo de vida de uma gente que não é a nossa e nem se reduz à vida ocidental. Deseja-se da leitura o apreço ao homem oriental e sua mística e militância que nos inculca um cuidado e respeito transcendentes. É que infelizmente reduziu a vida e literatura desse lado do planeta aos impulsos inescrupulosos de quantos que desejam ver-se projetado à custa do exotismo de lá. A ficção como um jogo de espelhos pode nos interpelar ao labiríntico sussurro da psique em seu contato inexpugnável com a cultura nativa, dentro da qual somos sempre estrangeiros e estranhos. E se construímos o figurino não a contento com sua expectativa é porque não tivemos a ousadia de que a alma confessa possa impregnar os meandros da vivência dos motivos mais profundos da viva ou de que você já os tenha sentido de alguma forma lá onde a paradoxal condição material nos prende por estarmos tão ingênuos e tolos e nossa visão talvez nos apareça tão rasa ou assoberbada pela torpeza dos nossos sentidos ocidentais. Viajar em companhia de tais personagens é sentir o pulsar de incógnitas de que a vida não polpa nenhum de nós. O sentido da vida está em dar sentido ao não sentido; o sentido não nos é dado simplesmente. Ele nos inquieta à medida que vivemos e sofremos. Damo-nos conta de nossa contingência e vida limítrofe. Porque estamos condicionados ao mundo e a ideologia que nos obceca e oprime. Gostaríamos de transpor o limiar de nós e ver para além desse nosso eu a que todos ao nos chamar nos impõem limites terríveis. Passamos uma vida breve ou de certo modo longa sem que tenhamos vivido no sentido mais pleno da vida. É doloroso sentir-se assim: somos presos ao nosso eu, ao nosso corpo, à nossa fome e ao instinto local da cultura que nos engendrou. Talvez, poucos talvez, tenham ido mais longe. E saber-se limitado por um lado, sem ter ido tão longe de nós mesmos, sem termos ousado mais...; de outro, termos sentido um eu-náufrago de que fala tão bem Ortega Y Gasset nos inclinaria a ter o risco diante de nós mesmos: sofreríamos por ser tão diferente dos outros, pagando um preço algo de nossos riscos, os erros cometidos, os tabus enfraquecidos, os preconceitos desbaratados como Galileu, Einstein, Marx, Hall, os místicos, os sábios, os santos, os heróis que a história, simplesmente, cultuaram sem os seguir os passos como um São Francisco de Assis, João da Cruz, Gandhi, Madre Teresa de Calcutá, cuja radicalidade coloca em cheque nossa visão comodista e puritana de religião... Chegará e talvez já tenha chegado o tempo em que religião e ciências compartilharam seus saberes; ética não se distanciará da política, visto que há homens que se tornaram eficientes na prática do bem e do compromisso com a comunidade. Haverá um mundo de mentalidade, cujos fins se tornarão objetivados na conduta pelo bem e da virtude, o político será ético e receberá um valor não exorbitante pela sua atuação. Haverá uma sociedade em que a idolatria será banida, extinguindo-se o culto do jogador acima dos profissionais de que se dispõe a sociedade como o educador. Não haverá corrupção dos poderosos neutralizando a ação das massas pela crença de que o bem compensa e o amor edifica. É doloroso querer a retidão dos povos quando seus líderes se tornaram corruptos. Disso e alguma mais, a leitura de O Califa poderá nos servir, relativizando o real que construímos até hoje, inclusive independente de nossa visão moralista e nossa religião cúmplice, sem o sentido do sagrado e o respeito pelas criaturas vivas que compartilham conosco a vida na Terra. O Califa não é outro senão o alter ego que nos subjaz à medida que confidenciamos nossos erros e desvios existenciais, nosso erros de julgamento e percursos, nossas inferências narcisistas, nosso pretenso desejo de punir ou de acovardar frente aos muitos desafios que a vida nos impõe. Sim, o califa, somos nós, é a nossa sombra e uma voz a ecoar ou ressoar lá no fundo de nosso ser quando a sociedade atual aposta na centralidade do lucro e do ter.
Preâmbulo
Romance de J B Pereira
Ninguém havia levado a sério um manuscrito encontrado no Porto da Arábia no século XIV, logo após a expulsão dos mouros da Península Ibérica. Amarelecido pelo tempo, mofado por outro lado, quase aos farrapos e de difícil legibilidade, o manuscrito me provocou náuseas. Tive que, com todo cuidado, recompor parte por parte, recompor o livro em frangalhos. O mau cheiro dominou o quarto e por dias me provocou náuseas terríveis. Contudo, valeu a pena o sacrifício, porque um tradutor do árabe o trouxe para mim depois de realizar algumas versões em línguas modernas.
Antigas tradições e lendas orientais representam de modo exótico a figura do califa e seus emissários no Islã. Como o xeque, ele domina um principado com sua autoridade e severidade, que, aos olhos ocidentais, é algo inadmissível e nada democrático. Por séculos, a tradição dos árabes perturbou nossa visão de mundo e o sucesso de sua militância incomodou o ocidente. O proselitismo é um dos cabedais desse empreendimento que os cruzados tiveram de enfrentar; contudo, não menos fundamentalistas se mostraram as cruzadas e seus seguimentos posteriores de modo ideológico e militar para dominar o antigo Oriente considerando-o torpe, infiel, desumano, exótico e paradoxal.
Depois de traduções do Al Corão, as Mil e uma noites estão nas prateleiras de nossas bibliotecas escolares aguardando leituras e incursões um tanto curiosas e silenciosas, capazes de mover nossa atenção, embora sejamos assépticos às leituras de impressão oriental.
São histórias de histórias que nos legaram o passado, narrativas exóticas dentro de outras, como é o caso de Malba Tahan, sem excetuar O Califa, que não podem ser lidas isoladamente, visto que trazem em seu bojo uma concepção de realismo fantástico e de mundo que estão, sublinharmente, ao nosso modo ocidental.
Personae fisgando mimeses de sucessivas fábulas e parábolas como se estivéssemos descascando camada por camada de uma cabeça de cebola e outra então rapidamente viesse a surgir.
O califa, a que me refiro, foi um homem que surgiu do seu povo e de seu mundo. Há todo um percurso da dinastia ou de um vizir para a posição de um futuro califa. Os califas se diferenciam uns dos outros como cada homem de outro.
Ele não era tão cruel e tirânico. Ele se tornara o ótimo administrador do Islã, até que sua mão injusta foi mostrada, e Alá se levantou contra seu orgulho pérfido.
CAPITULO I
Os poderes do mundo. Um pesadelo. Sultão desaparecerá em uma cruzada.
Desde sempre houve embates ente oriente e ocidente. Desde os tempos de Caim. O sangue guerreiro está entre povos vertendo sangue e misturando interesses políticos com os religiosos. A guerra enriquece alguns e empobrece uma nação inteira.
As cruzadas são páginas tristes de conflitos entre o ocidente e o oriente. Segundo os historiadores acontecem por motivos comerciais, domínios de poder e de influência, provocando fome, lutos, escravidão, doenças, violência, imoralidade, expansão de grupos hegemônicos egoístas.
O Jihad, ou guerra santa: é a batalha que atinge um dos objetivos do islamismo, que é reformar o mundo. o Islã vinha alargando suas fronteiras desde o século VII. Pela simples adesão à fé do profeta Maomé. Os muçulmanos estavam estabelecidos no sul da Espanha e na Sicília, de onde os cristãos já começavam a desalojá-los. Dominaram Jerusalém em 638.
No século XI, as tribos nômades de turcos seljuk invadiram toda a Ásia Menor (a moderna Turquia), reduzindo o Império Bizantino (a Grécia e a Constantinopla, hoje Istambul).
Bizâncio pediu socorro a européia. Em 1095, o papa Urbano II atendeu ao apelo do imperador com as Cruzadas para retomar Jerusalém e garantir a peregrinação à Terra Santa. Nas oito Cruzadas entre 1095 e 1291, morreram cristãos e islâmicos. Talvez, em torno de um milhão de pessoas morreram em cada lado. Hoje, o cristianismo, o islamismo e o judaísmo são religiões mundiais, cujos seguidores se mostram capazes de conviver de forma pacífica e proveitosa em vários pontos do planeta. Isso vem gerando interessante respeito entre cristãos, árabes e judeus, com bons resultados em diplomacia, respeito religioso, atividades comerciais, além da pesquisa acadêmica e científica.
Gostaria de que o Islamismo fosse uma religião de paz e não de guerras. “Islã significa submeter”, deveria no sentido etimológico submeter-se à Lei e à Vontade de Alá. Daí os muçulmanos serem os seguidores da vontade de Alá. Há muito o Islamismo vêm crescendo em todo o mundo. Cada nação ele apropria de valores e assume diferentes perfis, embora a tradição seja praticamente a mesma. A base de fé é a fé em um único Deus, criador de todas as coisas. O profeta Maomé é o unificador das tribos árabes, beduínos e árabes de outros lugares distantes e todos os que acreditam em Alá, segundo os princípios do livro sagrado, o Alcorão. Foi fundada na região da atual Arábia Saudita.
Ele nasceu em Meca no ano de 570. Filho de uma família de comerciantes, aos 40 anos de idade, recebeu a visita do anjo Gabriel que lhe transmitiu o monoteísmo, embora os clãs fossem politeístas. Casou-se com Khadija, a viúva rica. Perseguido, refugiou-se em Medina no ano de 622, inaugurando o Culto à Hégira. Retorna a Meca e organiza a religião e o Islã, como estado forte e unificado que vai se expandir pela Ásia, África e pela península Arábica. Faleceu no ano de 632.
O Al Corão tem 114 capítulos, com ensinamentos sobre: Deus, a Caridade, justiça e a vida social. Há pontos comuns com a Bíblia. Para os muçulmanos, os três locais sagrados são: Meca, onde fica Caaba (pedra negra), Medina, cidade e mesquita de Maomé; Jerusalém, lugar da subida do profeta ao Paraíso.
Os xiitas, partidários de Ali, marido de Fátima, filha de Maomé, zelam pela interpretação da Sharia. Os Sunitas seguem a tradição do profeta, conservada por All-Abbas, seu tio.
Como em qualquer religião, o fanatismo ou fundamentalismo fazem delas redutos de violência e perseguição a quem discorda deles e/ou seguem outras crenças.
Alá tem vários profetas ao mundo, Adão, Noé, Abraão, Moisés, Jesus, dentre outos.Como os cristãos, acreditam na ressurreição e julgamento do bem e do mal
No mês de Ramadã, há a celebração da primeira revelação do Alcorão a Maomé, fazem o jejuam desde o nascer até o pôr do sol. Zakat é o imposto anual de 2.5% da remuneração mensal. Peregrinação a Meca é celebrado no dia do nascimento de Maomé em Eid el Adh.
Calicut, Omar, Ceilão, todo o oriente louva Alá. Há califas que ficaram na história; outros foram arremessar dos ao esquecimento. Quando o Sultão de Shalita se ausentou para expandir seu império, Alidaláh se impôs como a testa de ferro, e o reino viveu momentos de terror. Ele apoderou-se dos títulos e domínios do sultão ao ponto de ser tão temido quanto ao sultão.
Lendas contam que o sultão desapareceu nas últimas cruzadas. Alidiláh defendeu as fronteiras do imenso império.
Era exímio administrador, porém impiedoso, usurpador, confiscador e temido pelos senhores do reino.
Três anos antes de sua morte.
Alidaláh contou a mim sua fiel camareira os segredos de sua vida e fortuna.
Certa noite, muito doente, acometido por dores e o cheiro horrível da lepra, chamou-me, às pressas:
- Sarah, o meu tempo está a findar, minha vida se consuma em dores e o nada é próximo. Meu coração está angustiado até a morte. Minha máscara caiu e o meu coração há muito se endureceu. A alma está definhando num purgatório de pesadelos. Sou o culpado de muitos erros e decisões efêmeras. O povo ficou à margem de minhas preocupações; sofreu com as injustiças que pratiquei.
Peque a pena, tinteiro e os papiros de que a vista alcançar, venha e escreva. Venha logo escrever a história de um déspota que quer reconsiderar.
Quando era criança, meu pai era um bom beduíno e sofreu ataques de saqueadores do deserto. Certa vez, ele perdeu tudo e chorou amargamente.
Agradeci a Alá a vida poupada. Tinha uns dez anos, prometi vingar-me da morte de meu pai naquela noite, cujo fogo tomava conta de nossa tenda. Aos doze anos, um dos saqueadores, misteriosamente, surgiu do nada. Caiu ferido em meus braços. Antes de morrer, disse que conhecia o que roubara meu pai. E o nome dele era Suacir, o Mão Negra, um dos guerreiros do Sultão, que havia participado de uma cruzada e sua mão havia queimado no óleo negro do deserto, o petróleo.
Aos 12 anos, em uma vila, próximo de Omar, fui trabalhar para um comerciante famoso. Fiquei com ele e adiantei meus estudos. Gostava de aritmética. Procurei escola local, tive muitas dificuldades, porque o estudo era para os ricos da vila. Mas, como era conceituado meu patrão. Ele, vendo meu esforço, quis me ajudar nos estudos com uma ajuda de custo para comprar livros e papiro.
Houve um dia, que estando em meu quarto ao fundo da casa do comerciante. Sua filha me procurou para ensinar alguma lição da escola. E eu a ajudei. Ela ficou grata. Isso a fez se aproximar comigo e me ajudar em outras matérias que eu tinha dificuldade como a gramática em árabe, história e ciências.
Contudo, sem perceber ela foi se apegando a mim. E eu não percebi que ela gostava de mim. Nunca procurei nada que fosse relativo aos estudos. E, no Al Corão, existe passagens sobre a convivência familiar. Minha família era eu e minha irmã, que trabalhava em outro comércio. Um dia, porém, a minha irmã foi para Bagdá e, por lá, fez medicina e se casou.
Agora me sentia tão só e a família do comerciante me ajudou nos momentos de solidão e procurei corresponder com a amizade, respeito e muito trabalho e estudo. Fiquei com eles até completar meus 20 anos.
Aos 14 anos, fiquei sabendo que Suacir foi degolado pela vila de Samir, cujos inimigos o surpreendeu em emboscada.
Aos 20 anos, depois da educação de um jovem calculista do reino e que atuava na Mesquita de Juáh, apresentei-me à corte do sultão após a morte de um dos seus funcionários bem quistos. Aos poucos, em alguns anos de trabalho na mesquita e depois no tesouro real, o Sultão me escolheu entre dez melhores.
No final da vida do Sultão Sualdir Ziaral, dispusera-me a servir à corte de tal liberdade que tinha acesso aos documentos e arquivos reais. A honra e a liberdade de renomado funcionário davam-me a credencial de coligir as crônicas da Arábia e Omar. E os ricos mandarins se recorriam a mim em suas dúvidas e dívidas. Escritores árabes, alguns poetas, romancistas famosos confiavam a mim seus livros e atas de registros de seus tesouros.
Alidaláh vivera, pois, nos fins do século XIII; escolhido pela corte, mantinha-se íntegro e bondoso, era um homem honrado.
No Hamadã, na festa da pedra sagrada, fiel a Maomé, o profeta, e ao Poderoso Senhor dos Séculos. O general do Sultão morrera na cruzada e o Sultão desaparecerá talvez irreconhecível pela peste das guerras ou o fogo das investidas cristãs na Terra Santa.
O sultão era seu melhor amigo; isso explica em parte a preferência da corte e do povo pelo nome de Alidaláh. Depois de chorar muito aquela noite, uma visão do além me incomodou a noite toda. Um pesadelo. Corria atrás do Mão Negra. Gritava:
- Devolva-me os meus pais, seu sanguinário e serpente infernal.
E do abismo à minha frente, o cavalo empacara, ecoou uma voz inconfundível:
- O fogo o devorou e a ti, também, assolará! Abyssus abyssum invocat: O abismo chama outro abismo.
Depois, uma serpente apareceu e, enorme, me perseguia.
Até que o cavalo branco caiu entre as areias e acordei suando, aflito.
Lembro-me ainda que o deserto da Arábia era imenso, fiquei lá só, em disparada, por outro lado, meu cavalo se foi. E uma luz forte como o sol amanhecia lentamente.
Depois, para piorar, uma pedra rolou de uma montanha em minha direção.
E uma pedra veio-me à cama, quebrando um dos vidros da janela de meu quarto.
Quando ouvi o cântico da mesquita, bem à frente do castelo.
Várias noites, a visão ma acordava. Intrigado, curioso e ansioso pela decifração do sonho, procurei um sábio sacerdote. Ele me disse que o passado pesava-me à alma, e que os bichos tinham poderes como nas fábulas. O cavalo era meu ser guerreiro; a serpente, a ameaça; o abismo, uma questão da alma; a pedra, minha dificuldade de ver mais além de mim...
Mostrei-lhe que, junto à pedra que quebrava a vidraça ou o vitral colorido do minha alcova, havia um bilhete com um perfume de gente fina da corte, alertava-me ser eu a próxima vítima de inimigos e seita fanática, sedenta de sacrifícios humanos para aplacar a peste que assolava a cidade há alguns dias. E eu não desejava ser o Pharmakon desses holocaustos fanáticos. Havia alguém por trás disso tudo e eu querida descobri. Então, pus-me alerta e coloquei mais alguns guardas e vigias de segurança para perceber o movimento de quaisquer estranhos à vista e nas redondezas do castelo.
CAPÍTULO II
Califa conhece Atimar, a viúva de Suassutuba
O sacerdote, em segredo de seu ofício, me aconselhou cautela e que colocasse soldados de minha confiança e guarda pessoal a vigiar meu palácio. Também, de minha parte, avisei ao sacerdote que não passasse a quem quer que fosse meu sonho estranho.
Dias depois, um dos filhos indicados à sucessão real fora encontrado morto em sua mansão, quando caminhava pelos jardins à entrada do templo de sua residência.
Meu coração inquieto mantinha-se recluso ao palácio. Nem aventurava a ir à mesquita. O inimigo estava dentro do palácio, pois meus vigias de confiança tinham sido envenenados pela alimentação ou o vinho. Os soldados de plantão encontraram uma espada de prata, de rara beleza e brilho, arte de um bom artesão. Um símbolo estava na lâmina, uma águia de asas abertas.
Mas, depois de um mês de investigações, nada encontrei da espada e sua origem. A espada pesava sobre minha vida. De quem quer que fosse a espada representava a serpente de meu sonho. Um risco inadiável do destino sobre meu poder. Não dormia à noite; de dia, cismava a dormir à porta fechada e sob os olhares de meus fiéis soldados.
O sultão já havia viajado para longas terras; morrido então. Um ano havia. E o seu sucessor morto também. O próximo obstáculo a ser removido só pode ser meu ego ferido e ameaçado, pensei angustiado. O anel real estava em meu dedo, o que era o objeto de disputas violentas entre os da corte. O cavalheiro desconhecido da espada estava bem debaixo de meus narizes e do teto em que vivíamos e eu, em desvantagem, não o conhecia. Deve ter algum cúmplice desse atentado. E como consegui-lo.
Até que as palavras da pedra cujo perfume foi identificado em um jantar. Uma senhora não muito avançada em anos se colocou bem ao meu lado. O seu perfume era o mesmo; desconfiado, foi ao meu quarto. Abrindo a cômoda à direita da porta, vi a pedra e o pano que protegia o bilhete misterioso, em letras grandes e maiúsculas. E o perfume, sim, o mesmo da mulher que se assentava ao meu lado. Desci, rápido, olhei a todos os meus convidados daquela noite. Identificando-os um a um. Meu coração cético e preocupado fazia me contrair o rosto e o sobrecílios e a arfar ao ponto de sentir a palpitação no peito do coração acelerado. Era Atimar, a viúva de Suassutuba, o rico nobre que morrera em Sutramur. Outros senhores estavam à direita e à esquerda dela e conversavam tranquilos, mesmo depois da minha ausência. Eu alegara ir aos meus aposentos para tomar um chá e remédio por estar um tanto doente.
A madura mulher Atimar, após o banquete noturno, ficou, por último, ao meu pedido. Quando todos os convivas se retiraram, pude apresentar-lhe um perfume cujo substrato químico era semelhante à que usava. O que a deixou satisfeita por algum motivo, dizia que, depois da morte do marido, não fora impressionada por nenhum outro nobre com tamanha sagacidade. E me perguntou o motivo de minha atitude àquela hora avançada. Mentindo, falei que andava tão solitário, nem havia alguém a me ouvir e com quem confiar meu coração. Ela sorriu – se não fosse pela minha desconfiança e medo de morrer – sinceramente talvez. O pano e a inicial da letra, a deixou um tanto arredia quando reconheceu ser de seu conhecimento. E me perguntou:
- Como o perfume nesse tecido veio parar em seu poder, vossa majestade?
- Pelo que lembre bem, estava envolto em pedra que quase me atingiu à cabeça enquanto dormia em meu catre de ferro, após atravessar certeiro à janela de meu alojamento, lá em cima.
- Que horror! – emendou a Atimar. Ela parecia pálida e escondia alguma coisa a mais, talvez artimanhas de mulher, o artifício da Eva no Éden.
- Segurando-a pela mão, percebi que ela tremia. E a convidei a sentar-se ainda por um pouco. Contudo, pedindo desculpas, pediu para se retirar.
- Em princípio, aquiesci com o olhar discreto e firme; mas, logo que virou, pedi que a acompanhasse até a porta, o que ela consentiu, dizendo-me:
- Vossa majestade, não está desconfiando de que fui eu a lançar tal pedra sobre vossa janela, ameaçando-lhe a vida?
- Por que não estaria; talvez você ou alguém que usa o perfume me ameaçou e, desde então, estou à procura do culpado.
- Majestade, gostaria de dizer que o perfume não é tão igual ao meu, são parecidos ou bem próximos; alguém usou o pano de minha casa para incriminar-me e o perfume ligeiramente diferente está impregnando o pano que está em seu poder.
- O que devo pensar da sua pessoa, Atimar?
- Que sou inocente, o senhor não tem provas de que atentei contra vossa vida.
- Por que, então, se empalideceu e tremeu ante ao cheirar tal perfume, antes mesmo que eu a interrogasse?
- Majestade, em minha condição de mulher, não sou inquirida e nem desejada desde a morte de meu marido que servira ao reino. E o desejo de um homem como o senhor inquietou-me deveras, porque o lençol que envolve minha cama com a inicial de meu marido está em vosso poder com o perfume que não é o meu, mas de minha prima Sheramir.
- E onde está Sheramir?
- Ela está morta, seu corpo foi encontrado em Bagdá em sua chácara... E contou triste o paradeiro da prima.
- Isso me deixa ainda preocupado comigo e com a senhora.
- Por quê?
- Não vê que está envolvida até ao pescoço no atentado ao califa?
- Gostaria que me dissesse quem a visitou em sua casa nesses dois meses e se há culpados e pistas pela morte de sua prima.
- Majestade, acharam um corte na nuca dela com um filete e um punhal cujo dono foi encontrado e mora aqui no castelo.
- Não me diga! E quem é o dono do punhal?
- E o xeque Veriknah.
- Então, venha comigo, agora ao lado sul de meu castelo. Preciso de sua fala.
- Mas, se me identificar, serei ameaça como o senhor.
- Então, não a exporei ao fato. Quero que fique com dois guardas enquanto converso com Veriknah.
- Tenho outra escolha?
- Não, pois a vida de sua irmã foi ameaçada – é preciso fazer justiça – e a sua e a minha, idem.
Capítulo III
Perseguição ao novo califa
Em casa de Veriknah, Alá levara o jovem califa. Mas, os ventos já eram outros. Porque, ao entrar, seu corpo estava inerte ao divã e a sala aberta aos fundos, de onde sairá o culpado.
E os mistérios continuavam a rondar o castelo e o califa não teria uma prova contundente de autoria do crime.
- O Veriknah está morto, venha ver?
- Por Alá, quem fizera tal coisa?
- Os guardas cercaram a propriedade dele na esperança de podermos ainda prender o suspeito.
Depois de duas horas, os guardas só encontraram no sul da saída da muralha, as marcas de uma bota e mandaram chamar Alidaláh.
Quando este chegou, colocou os olhos na pista graças à iluminação dos lampiões segurados pelos soldados. Mais à frente, viu-se um dos botões caídos quando o suspeito tentava passar o portal da muralha às pressas.
Agora eram três pistas: a espada com o ícone da águia, a marca da bota no chão e o botão de uma das roupas do fugitivo. Mas, pistas sem nexo lógico e casuístico, algo coático e difuso.
Naquela noite, chorei muito! A solidão era profunda; a casa maior inda depois que conheci Atimar, sem saber o certo se era ou não culpada de alguma forma pela pedra lançada à janela de meu quarto.
Atimar foi orientada por mim a não arredar o pé de meu palácio até esclarecer os últimos episódios, cuja ameaça também a poderia atingir.
No dia seguinte, Alidaláh, depois da prece e de ouvir o chamado na mesquita, tomou o vinho com o centeio, o mel e as tâmaras, além de pão e ovos de avestruz, alguns chás. O cardápio variado para começar o novo e longo dia que pressentira.
Alidaláh chamou à sua presença Atimar, cujo encanto parecia desfalecer ante as interrogativas e conjecturas do sultão. E demonstrava uma inquietude serena. Aliada à fé em Alá e um jeito escorregadio de mulher, respondia as questões um tanto instável, deixando transparecer um ar de cumplicidade. O tom de voz não era firme, igual ao dia anterior. O que incomodava Alidaláh era seu modo um tanto frio não mais cooperativo da noite anterior do banquete noturno.
- O que tem e por que não diz tudo que precisa?
- Desculpe-me, Alidaláh, é porque quem diz tudo pode ser que diga o que não pode e nem deve?
- Porque não diz o que deve sobre a vida que está em jogo e não dever afirmar que quem nos ameaça ou me ameaça?
- Alidaláh, há um Boduah, o genioso, cuja riqueza sobrepuja aos califas e não a sua. Ele é que possuía a adaga que perfurou as costas e a nuca de minha prima.
- Por que não o disse a mim, Atimar?
- Hoje ele virá me fazer audiência.
- Você o conhece bem?
- Sim, desde menina. E um xeque hipócrita e ganancioso. Ameaçara meu pai quando era funcionário do antigo sultão.
- Por quê?
- Negócios, majestade. Porque meu pai o devia uma quantia pela terra adquirida por meus avós. E meu pai pagou com duas aias, que maldiçoavam Boduah.
Quando foi às nove horas do canto de Maomé na Mesquita, o sino tocava quando Boduah e a comitiva entrara no palacete do Sultão. Alidaláh deixou entre os cômodos internos do recinto ou na antessala Atimar para ouvi a conversa dos dois mandarins. Uma entreliça de orifícios pequenos entre madeiras entrelaçadas a separava da antessala e da sala das audiências do califa, de modo que ambos não podiam vê-la a observá-los atentamente. O desejo de Alidaláh era que ao ouvir o parecer dela depois, chegasse a uma visão mais firme de que lado a Atimar realmente está. Seu plano era temerário e ousado, porque não sabia quem mentia ou mentiria para salvar a própria pele. Mas, quis ariscar o califa para dirimir suas dúvidas atrozes de meses.
A conversa transcorreu tranquila até o ponto em que Alidaláh indagou sobre o desaparecimento de Verikinah e Sheramir nos últimos dias.
No começo, Boduah se saiu bem e com o fim da conversa demonstrou um tom inseguro e suspeito na voz, dizendo que viajara à noite e ficara um tanto fanhoso. Ele escondia sua perplexidade ou algum fato novo ou antigo não demonstrado pela impostação de voz.
Segundo sua opinião, não sabia do desaparecimento de ambos porquanto os vira há duas semanas em Medina e depois no Ramadã. E inquiriu ao sultão achar estranho se Verikinah morava bem perto e no interior do castelo.
Dias depois, os meus investigadores trouxeram notícias de que Boduah havia se encontrado em Meca com Verikinah e Sheramir. No castelo de Boduah, uma serva comentou com os investigadores que Boduah pagara um bom dinheiro para ver o sultão do Sul morto, no caso, Alidaláh.
Diante da conversa e dessas notícias dos investigadores, Alidaláh conteve-se ante as lágrimas de Atimar. Poderiam ser lágrimas de crocodilos – aqueles que estão no Ganges ou no Rio Amarelo. Mas, só Alá podia ver o interior das almas, antes de puni-las ao inferno.
Atimar disse que quando estamos sobre o véu da desconfiança e do medo não enxergamos correto. E que o pior adversário pode estar acertando e somente entendemos a maldição e a hipocrisia. Era o que ela via em Boduah em todo momento. Por certo, sua impressão sobre Boduah era condicionada pelo passado e pelos traumas antigos. Não é fácil desvencilhar-se dos fantasmas do passado!
O Sultão, então, a levou ao quarto dos hóspedes e ao se despedir dela, a mesma o firmou a mão e disse que quisera que fosse tudo diferente e que nenhum sangue pudesse ser derramado. E ela confidenciou que a prima estava envolvida com uma gangue de falsários e malfeitores de pior espécie.
CAPÍTULO IV
Alidaláh, o novo sultão.
Por um ano, não se conseguiu provar nada e nem descobrir o autor do atentado ao Sultão. Mas, no poder, ele se tornara mais forte e governava o Islã com certa aceitação por parte de seus ministros. O povo ia vendo obras e atitudes que ajudavam a melhorar a qualidade de vida de todos. Contudo, Alidaláh continuava a ficar mais recolhido ao castelo e afastava-se da vida pública.
Como brasa que queima a mão, o coração do Sultão alimentava o ódio e sem saber onde canalizá-lo. Debaixo das cinzas, a qualquer vento podia irritar Alidaláh. A nação crescia e o comércio se tornava o mais movimentado por aquelas regiões. As guerras continuavam, porém os tratados de paz eram mais convidativos à rota de diamantes e ouro. Todos ganhavam e a paz era o negócio lucrativo. A loucura das guerras se afastava e era vistas como lepras a ser isolada de vez com receio de um contágio comprometedor. Os soldados distantes voltavam muitos deformados e estropiados. Um corpo sem reconhecimento era tido pelo general como o do antigo sultão, o que consolidou o poder do atual. O anel real já estava em mãos de Alidaláh. O funeral e orações aconteceram até a marcha militar ao cemitério, em que parentes não se conformavam perder o status e serem tidos como inferiores e viverem à custa do novo sultão.
Alidaláh estava se consolidando no poder e Magmoura era a cidade perfeita e visitada por estrangeiros o ano todo. Mas, o coração de Alidaláh não se esquecia das ameaças. O conselho de sábios era escolhido com cuidado e o califa não tinha nenhum sucessor, se morresse.
Atimar foi liberada e se dirigiu às montanhas do Líbano, onde vivera quando criança e agora em uma nova vivenda, passava grande parte de sua vida e viuvez nos pomares e tendas de conhecidas senhoras, suas amigas ricas.
Com a coroação, depois da nova festa do Ramadã, o sultão se embriagara em sua prepotência e o êxito de sua administração calara até os ânimos de revolta popular e os inimigos, por enquanto. E isolado e infeliz, Alidaláh mergulhava-se em uma vida pérfida e os pecados capitais dominava a corte. A temeridade e a sua vida regrada foi lentamente substituída pela soberba, luxúria, cobiça e a dançarinas eram contratadas a ida à corte, vindas dos quatro lugares do mundo.
A cúpula respirava obediência cega ao sultão e os guardas inspecionavam todos que entravam nos cômodos e jardins do califa. O mesmo empreendia algumas viagens aos reinos vizinhos; o povo se mantinha a distância nos negócios dos mandarins.
“Fechei-me nos meus aposentos, e as imagens da infância vinham-me à lembrança”, interrogava-se, a todo momento, Alidaláh. E a tentativa de esconder-se de passado, levou-me a paragens subterrâneas e noturnas da vida. Cabarés e cassinos eram comuns em que o sultão se deliciava.
Ao chegar ao palácio, Alidaláh sentia-se a solidão e a frustração; e o bilhete daquela noite vinha-lhe à imagem como presságio que desconsolava. Temia traições noturnas e de dia era sua indiferença ao que se passava no reino. Tudo era entregue aos seus competentes administradores, escolhidos cuidadosa, vigiadamente. A neurose da perseguição se tornara uma realidade da vida palaciana. Media, atos e palavras, evitando qualquer excesso, exclusão e paradoxo. Nunca tomava decisão sozinho, repentina, vigiava contra toda possibilidade e tormenta.
O poder é instável, mesmo quando somos súditos reais do sultão, pensavam seus ministros. Porque, eram cobrados a todo instante. E poderiam perder seus postos. Quando mais poder, mais solitário se sentia, o Califa!
Desejava Alidaláh descobrir quem matara seu pai e quem queimara sua casa de campo. Antes de morrer, meu pai perdoara a todos pelo mal. Só eu que achava aquilo uma fraqueza e ignorância. Não aprendi a fazer isso, julgava tudo estranho. Tinha-me esquecido que a vida me dera muito mais. Enquanto uma maioria vivia privações e muita peleja, o sultão desperdiçava as oportunidades de ser útil, feliz e capaz de entender a vida e compadecer-se dos pequenos.
E não conseguia superar o trauma da infância e a morte dos pais. Para ele, só a vingança, irmã do ódio, vinha destilar o veneno na alma do sultão.
CAPÍTULO V
O poder nos confere poderes, máscaras, torna-se superior aos outros. Há sempre alguém que sabe mais e não admitimos. Isso deixa os que estão no poder inseguros. A vaidade e a soberba dominavam meu coração, impedindo-me de me encarar como um mortal e infeliz. E o que sabe mais o incomodava ao ponto de o invejar ou tentar eliminar. E se tornando cada vez mais poderoso para os outros, havia um estranhamento no meu modo de pensar e agir. Como é difícil conviver com o próprio ego, quando se tem uma imagem deformada de si. Somos o que imaginamos ou edificamos: ou sobre a areia ou sobre a rocha. Eu me temia, não sabia até onde meus atos me conduziriam. Como todos os outros antes de mim, era o mesmo. Repedia a opressão, objeto de meu ódio e minha perversão, o poder me cegou. Tornava-me obtuso e injusto, arrogante e temerário. Se Deus nos criou para ser feliz e livre, eu me transformava em infelicidade e torpeza. Deixei-me escravizar por meu eu escravo. Ignorava a religião e a moral. Os ensinamentos do passado ficaram para trás. Meus sonhos de crianças se eclipsaram e os projetos caducaram e meu ser se envelheceu precocemente.
Estou velho aos quarenta anos e pareço um retrato escalhavado de uma imagem horrenda, esquecida em algum lugar. Meu lugar no mundo vai findar-se. Tudo que amava morreu. Ficaram as cinzas de um momento defunto. Amei pouco e recebi demais. A máscara deixara cicatrizes ao destampar o verdadeiro ego que escondi a muito. Sou todo ressentimento e medo. A miopia e a lealdade se opunham como reinos rivais. Alá deixou-me seus avisos de paciência e me perdi na estrada da vida. Tropecei em meu defeito e maldade. Pequenas pedras me fizeram vir ao chão e as montanhas me distraiam as vistas anuviadas pela soberba. Estou doente espiritualmente. Quando galgava os píncaros da glória, meu tombo foi ruidoso.
Um dos vizires me entregou a filha para desposar-me. Ele temia pelo futuro dela. Ela era jovem, bela e vaidosa. Ele, um ganancioso homem. A mãe morrera há quinze anos. Mal se lembrava da mãe, a Xamires, a atrevida. Talvez assim fosse, porque aprendera o mal de si para se revelar contra os que a queriam subjulgar. Mas, o meu coração não a queria e a entreguei a um dos meus ministros, que a conduziu ao seu harém. Xamires sempre queria que eu a desposasse, mas eu sabia que ela queria apenas aparecer como mulher centrada na estratégia do pai, ou seja, conquistar as oportunidades dos melhores lugares como jogo de poder.
A solidão aumentara sobremaneira. O que me levou a repensar minha vida de celibatário ou solteirão. Eu precisava de sucessor. Foi até que, na mesquita interna do Castelo, pedi a Alá um novo sucesso, porque temia morrer ou ser envenenado...
- Deus é único! Não há outro poder divino além d’Ele. Sendo onipotente, ouve minha prece e dá ouvido a minha oração. É o que nos pode salvar do mal e da desgraça. E Ele seja a glória eternamente pelos séculos sem fim. Quando meus pais voltaram ao pó, eu roguei e Alá me trouxe até aqui. Não existe outro ser sobre o qual se pode confiar. Maldito o homem que confia no outro, ambos como cegos cairão na vala funda. Ouve, meu coração, o Eterno e todo poderoso é Alá. O único Deus verdadeiro, ainda suplico que me ajude a levar minha existência pesada e sem sentido. Eu me abandono em Alá, todo o Islã inclusive. Somos resignados à vontade soberana que nos guia como a estrela no deserto aos beduínos. Maktub, tinha que acontecer conforme seu designo santo que passasse minha vida por aqui sem que eu escolhesse ou suplicasse. Já estava escrito no santo livro e nos cânticos. Tristezas do inferno me cingiram os laços mortais, e o deserto armará ciladas ao escolhido de Alá. Na angústia invoquei os seus preceitos e a minha arrogância me obcecou o espírito e não soube aproveitar os ensinamentos de meus antepassados. No palácio me afastei dos escritos da mesquita mais sagrada e, no entanto, Alá não é vingativo como meu coração. E sua face tornou-se serena como o véu da noite estrelada que me faz sentir apequenado; se conto as estrela, fico sem concluir a contabilidade de tudo que Alá tem feito ao seu escolhido. E meu coração está triste até agora diante de sua face inconfundível. Quem dera que eu o escutasse como os humildes de meu reino e a lei do Al Corão fosse a regra de minha conduta como os puros de coração. Estou ficando velho e sem herdeiro. Consultei o velho sacerdote como a corda da areia a ligar o passado da velhice ao presente de minha geração a fim de não colocar o reino em mãos erradas. laich raçak ia malek ozzmã! Alham-bufalec! Graças a Alá. Era em Meca, na terceira lua do mês de Rajeb-aul do ano 1222 da Héjira. Depois que a grande caravana de mercadores chegaram ao reino. Mahissalemá! Podem ir à cidade, que Alá os proteja! Nosso Deus é visível em suas obras e poder; invisível como Deus oculto no coração do Islã, mas presente em qualquer tenda que o invoque com serena sinceridade. Peço a Alá uma mulher para ter meu sucessor. Sei que quando Deus criou a mulher criou a obstinação. E a verdade afastou-se do palácio do sultão, cujas portas lhe fecharam à suave formosura. Mas, com o tempo, a Verdade se cingiu de áspera roupagem e exigiu uma audiência especial. E o sultão concedeu. Mas, era a verdade vinda com a vestimenta da acusação, que obrigou ao grão-vizir a abrir o portão do palácio. Eles haviam proibido de entrar a Verdade porque estava vestida com vestes rudes dos beduínos. Mas, quando Deus criou a mulher instituiu o capricho, com trajos suaves e adornos cujo brilho e realce abririam as portas do coração do Sultão. Coloca-me, Alá diante de uma mulher que me seja preciosa e prudente, pois sou o homem mais solitário e infeliz na face da terra.
Muitos anos se passaram e Alá deu uma mulher segundo o coração do Califa, capaz de ajudá-lo na governança do reino e na sucessão de seu poder.
CAPÍTULO VI
Uma proposta da mulher – entre o Evangelho e o Al Corão
Leilah, a pérola do Islã, era perfeita, olhos tímidos e agir prudente, até que a vi no Ramadã e ela me conquistou só no olhar. Fiquei preocupado se podia confiar, ela era mais jovem que eu uns dez anos.
No mercado, depois do Ramadã, eu a encontrei com o pai Harum al-Raschid, um dos cadis de minha cidade. Ele me contou que ela fora adotada, sua origem era plebeia. Ela tinha seus dezessete anos. Tivera vários pretendentes ricos e alguns remediados, mas a todos dispensara porque se dedicava aos estudos da medicina, algo raro para uma mulher no século XIII.
Em meus sonhos, o pesadelo viera a atormentar-me. Ela ficara do meu lado, ouvindo-me. Eu não os entendo e ela diz serem sinais do além, mensagens do Alá ou de um de seus anjos. Talvez os pesadelos fossem os vestígios de meu passado. Não queria decifrá-los como enigmas e deles, eu fugia...
Ela também tinha suas sombras interiores e um calabouço de medos e fantasmas, que a incomodavam. Todos os temos de alguma forma ao longo da vida. Evidencia que não somos tão potentes e nossa fragilidade se manifesta na busca do sentido da vida social e interior, pela meditação, pelo respeito pelas formas de vida que Alá adotou o universo e as vidas da Terra, nosso oásis universal diante do deserto do não sentido das coisas que não explicamos e nem sabemos por que temos de atravessar como o beduíno pelas tempestades e o calor do deserto.
E ela me olhou nos olhos e disse uma prece:
- Que Alá dilate tua esperança e seja como uma árvore do oásis cujo viço e sombra sejam sua alegria entre os espinhos que encontrar. Seja um regato de sombra e sereno, em que possas passar seu inverno e os frutos possa colher, mesmo os fora da estação de colheita. A árvore é silenciosa, discreta e firme. Enfrenta ventos e as tempestades como pode. Acolhe os andarilhos do deserto e se inclina para receber todos os seres vivos – insetos, aves, animais e homens e mulheres, amados de Alá. “O Todo-poderoso seja louvado, sempre!”
E eu, meditativo, respondi que ela já era a árvore de Alá em minha vida. Sentia-me pequeno; grande era o mundo...
Leilah respondeu:
- Por pequeno que seja, o oásis faz a diferença para o beduíno cansado e sedento...
Então, os beijamos e vi que era agora feliz, esquecido de minha infelicidade e vingança. A luz brilha nas trevas, o lenitivo vem à ferida aberta, purulenta, a beleza destaca-se na praça agitada e a joia é recompensada depois da fadiga da mineração...
E ela foi ao quarto e retirou da estante, um opúsculo do Evangelho que encontrara de uma tenda de um cristão morto e o deu a mim. Disse que encontrara ali força para vencer sua dor interior. Era tão pequeno como uma estrela no firmamento de Alá; um pedaço de um Al Corão inacabado... E leu para mim: “Onde está teu tesouro, ali estará seu coração...”
Pensei que havia dedicado tanto tempo aos tesouros da minha vida e do reino, despojos de guerras entre mouros e cristãos. Esquecera o essencial. Meu pai havia buscado o tesouro de Alá e deixara terras e riquezas para outros usurpadores; eu, o legítimo herdeiro nada recebera. A casa e mobília, junto com documentos, foram queimadas pelos vândalos do deserto a mando de um sanguinário, que queria descobrir. Ele salvara a mim e a minha irmã, enquanto aguardara a morte.
O tesouro oculto está diante de mim, a vida ainda pulsava em mim: poderia mudar minha vida. Não sei se as palavras de Leilah e do texto à minha frente – o Evangelho – poderia me ajudar. Estava dividido entre as exigências de um Califa e as vinganças de um filho magoado pelo passado, sem vontade de perdoar.
Agora estava mais tenso, aliviado pelo amor à uma mulher mais nova do que eu e as demandas de guerreiro mouro.
CAPÍTULO VII
Um perigo próximo – conjecturas sobre a guerra e a possível vantagem da paz
Quando fui às terras do Norte do reino, alguns mongóis, normandos e romanos incomodavam minhas fronteiras. Eram nada amistosos. Em nome de Alá, jurei detê-los.
Queriam expandir seus impérios e religião, armas e dinheiro para pagar os soldados. Por isso, faziam incursões pelas terras árabes. Roma era uma ameaça! As cruzadas e a religião cristã vinham contra os interesses dos mulçumanos por dividir a Terra Santa.
Os despojos da guerra são tão antigos quanto os clãs primitivos. Eles representam a rapina de um povo e o enriquecimento de outro. Os vencidos são reduzidos a escravos. Nada lhes pertence mais. O vencedor tira as vantagens dos despojos: primeiros, os militares de patente separam o melhor para o rei, em segundo lugar, para si o material que veem, depois o resto fica com os soldados, que entregam às suas famílias roupas e dinheiro. Aos grandes, ouro, prata e às joias: aos pequenos, o chumbo e cobre. Nada se perde com os despojos; os corpos ficam nus e entregues aos abutres, as roupas intumescidas de sangue e bem rasgadas, senão forem incinerados e enterrados logo a seguir.
Os povos circunvizinhos e distantes da Arábia praticam a guerra como seus antepassados; as técnicas variam de povo para povo. A Bíblia e Al Corão contêm cenas inteiras de combates, inclusive fratricidas. Elas devem ser vista dentro de uma divisão de poder e são justificadas em nome de Deus, infelizmente. Não há mais nada sagrado e divino como a vida. A morte é outra fase e outra face da vida. Tudo tem um propósito no mundo, queiramos ou não. Não sou a favor da guerra; nem a morte do inocente. Meus pais foram injustamente mortos. A pena de morte é antiguíssima, o pior dela é a morte de inocentes.
As guerras decorrentes de políticas de expansão visão dominar povos, escravizar outros, dominar rotas de mercados e rios, impor uma ordem de grupos hegemônicos, ruir poderes, pagar exércitos, testar dominações, projetar mitos... Há homens que acreditam que honram seus deuses.
Hoje, choro, minha alma está triste, quando percorro o deserto depois de cruzadas, guerrilhas, emboscadas, campos de combates entre árabes e cristãos. Como é triste para ambos os lados, seus reis e povo, ver os mortos deixados ali. Para os outros, nós somos bárbaros, porque não participamos de sua cultura, língua e religião. Nós também os reduzimos a estranhos, infiéis, forasteiros, outsiders. Havia pessoas cujo rosto não conseguimos reconhecer a não ser pelo uniforme, medalhas, insígnias, espadas e outras armas ou roupas e botas. Havia rosto mutilado. Havia partes separadas por diferentes lugares. Parecia que houve um furacão, cuja explosão de fúria amontoou corpos como montes de dunas. O ódio é igual e pior que as forças brutas da natureza. Há batalhas de um dia ou horas, enquanto outras duram semanas e dias. Os embates são abismos de sangue e horror, parece que o chão se abriu em inferno. Não chamem isso divino.
Quando começa não se sabe quando se há de terminar, a não ser que o outro seja em maior número e está em seu território e conhece bem seus combatentes. A guerra foi vista por muitos como uma arte e um jogo, dele nasceram brinquedos como o dominó e o xadrez que encantam infantes e adultos.
O oriente é tão terrível quanto ao ocidente. Se o amor nos aproxima e as diferenças deixam de serem ameaças; o ódio nos mortalha, e o diferente deve ser extirpado. A lei de Hamurabi e do talião, endossadas pela Lei de Moisés e pelo Al Corão, recomenda a prática da misericórdia e dominar os infiéis em nome de Alá, muitos viram nisso o desejo de vingança e acobertaram a morte aos infiéis. No Evangelho, há passagens de perdão aos inimigos e orar por eles, veja o quanto ainda somos primitivos e egoístas, ajuntando tesouros aqui para traça destruir: inclusive, nossos corpos ficaram reduzidos à cinza da morte.
Houve fugas e reforços e, por fim, desta vez, a vitória pertenceu aos árabes. Certamente, eles voltaram e haverá revanche. Toda vitória é provisória! O deserto é um lugar inóspito ao europeu; ele não entende nosso modo de vida.
Um dos mais sangrentos, senão todo combate é sangrento. Cada filho de meu povo quando morre somos obrigados a repensar nossas estratégias de guerra e paz. Como vencer? E como celebrar a paz. Esta é vem do pacto entre partes opostas, que aceitam a condição de que todo esforço de guerra é menor e é em vão comparado com os benefícios limitados da paz. A paz compensa o progresso e o respeito entre povos de línguas, religiões e culturas antagônicas.
Andando agora entre os mortos e o mau-cheiro, moscas e zunidos de mosquitos inquietavam meu espírito, não sou mais deles e eles não mais estão aqui. Apenas seus cadáveres. Morreram pela causam que lhos ensinaram e eles acreditaram talvez porque morreram pelo seu povo, em nome de Alá.
Ria, chorava, estava louco... A guerra é uma loucura de todos os lados; o ódio está acima de tudo... Perde-se o bom-senso, a moralidade, o respeito pela vida e pelo outro. É um vale-tudo de cada lado. Os despojos serão de quem mais matar e vencer.
Haveria marcas profundas em cada guerreiro vivo, suas famílias ficarão com cicatrizes até o último membro vivo. Se o guerreiro sobreviver, será uma bênção de Alá; contudo, muitos voltarão para seus lares decepcionados, loucos, amedrontados, revoltados, inseguros, descrentes do mundo e da sociedade... Uma sociedade que preferiu a morte à vida.
Meu coração tudo tinha em mente e emocionado via a terra em sangue; ao lado de guerreiros meus os de outro lado... Todos mortos e feridos. Poucos vivos. Os prisioneiros são vistos com ironia, fracasso, ódio, capazes de negociação ou tortura se não colaborarem. Nem todos ficarão vivos ou morreram de angústia, sentindo-se abandonados ou dados por mortos pelo seu povo. Talvez, não haverá interesse de que voltem ou que sejam trocados por outros. Nunca voltaram, talvez. Nem verão pais, esposas, filhos, casa...
À noite, muitos comemoravam a vitória. Meu coração se isolou. Muitos preferiram voltar às suas famílias e terras. Outros com vontade de novos postos e soldo melhor, vieram apresentar votos de fidelidade para próxima carnificina. Há gente de todo tipo: os corajosos, sem eles não existiriam conflitos; os medrosos, cuja prudência nos faz pensar, porque poderão continuar vivos. Os corajosos morreram!
Ali estavam sonhos e medos, cansaço e coragem, futuro e presente instável, meu coração assombrou-se com tais reflexões. A cidade estava quieta, nem por isso segura, se Alá não a protegesse independente de meu recurso e vontade. Oravam, festejavam, temiam, dormiam, vigiavam... Estavam com os despojos, com a trégua efêmera, com o luto de seus mortos...
Vários anos de combates, muitas perdas para ambos: árabes e cristãos. Um inimigo do outro! Embora acreditassem em um único Deus, conforme a acepção de cada povo. O ocidente não dorme, enquanto não nos domina.
A única consolação que tinha era Leilah. Estava como podia ao meu lado. Preocupada com o futuro de nosso povo. Meu coração estava dividido, entre a esperança da paz e a urgência da guerra.
CAPÍTULO VIII
Sem posteridade, o rei fica triste.
Todo rei depende do futuro. Seu futuro é um herdeiro. Não leguei minha condição a nenhuma prole e nem meu nome a um filho. Do tumulo, poderei me orgulhar de que não deixei ninguém como eu, tão paradoxal e mortal, para aqui sofrer, gozar, amar, odiar - brincar com os caminhos de Alá, enriquecer, matar, governar, comandar, ser comandado, ser traído, ser ofendido, ser destronado, ser pobre, ser vencido... Nem vencer!
Leilah deseja ter filhos e morreu sem os ter.
Eu era estéril. Que decepção; não sei por quê. Há sempre um quê de mistério que nos escapa em nossa vida e na vida futura. Depois de muito sofrer, pensei que Alá era justo e sábio. Tinha fortes motivos para não ter filho e herdeiro. Pensei várias vezes até me adotar um. Mas não tive coragem. Não tive coragem de roubar um filho de um beduíno no deserto. Não gostaria de que ninguém me tirasse meu filho, seja rico ou pobre. Nem sei se o filho roubado corresponderia ao meu reino. Ele poderia ser desmascarado com impostor: novas lutas sangrentas aconteceriam nos clãs pela posse do poder e o trono comigo e em minha falta.
Não era hora de ter um herdeiro; isso me martelava minha cabeça. A solução estava do lado; permitir a esposa dormir com um dos meus homens de confiança. Mas isso era expor minha fragilidade, minha mulher, meu reino a alguém que poderia reclamar direito ao reino e à posteridade de seu herdeiro, não meu. Como ficaria minha mulher, embora possa obedecer e sofrer com uma decisão de minha parte. Ela nunca reclamou comigo, a não ser que gostaria de ter um filho. Nem exigiu que tivesse um filho, ou que dormisse com alguém indicado por mim, segundo as leis do Islã. Não seria justo cobrar um filho dela se problema era comigo, porque nunca tive filhos com outras mulheres. Preferi me calar a cobrar dela, pois estava angustiada por não dar-mo. Diante disso, os súditos faziam simpatias, promessas, sugestões de todo tipo. Nada. Não dei crédito a essas crendices e absurdos. Recorremos aos sábios e médicos do reino e tudo que tentamos não teve o resultado esperado: um filho ao califa.
“A natureza supõe a graça” e não poderia nos dar o que não temos em nosso sangue. Orei a Alá para me dar uma luz. Durante anos, até envelhecer prossegui tendo uma fé. Havia relatos de casais que tiveram filhos na velhice. Algo ariscado. Poderia perder a minha esposa em um parto tardio. Esqueci. E ela não falou mais nisso. Os espelhos anunciavam a chegada dos cabelos brancos. Ficaria, pois, sem herdeiro. Com minha morte, outros disputariam o trono. Não sei da sorte de minha esposa. Velha e abandonada se eu morresse primeiro. Com minha morte, ela teria que fugir e se manter, Alá sabe com que dificuldades e cuidados que estão na velhice de uma mulher nesta sociedade terrível, que inventamos. Renunciamos o desejo e o futuro de ter filho ou filha. Não seríamos pais, nem mãe e nem pai. Seríamos nos dois – a solidão radical, sem continuação e poder. Ninguém é de ninguém. Nascemos com nossa mãe e morreremos sós! Ninguém morre no nosso lugar: isso é desesperador.
Às vezes, à noite, ao dormir, cabeça ao travesseiro, em prece, decepcionado com meu projeto de vida pessoal. Parece ter ganho muito com tanto poder e pouco colheita. Chegara até aqui por graça de Alá. Talvez, o filho meu continuaria as atrocidades e meu mau exemplo. Ou me superaria em bondade e justiça, segundo o coração de Alá.
Toda essa ambiguidade me mergulhava em insegurança, angústia, medo do futuro: ignorava os comentários do povo e dos da corte... “Há aqui um rei que não tem até hoje um herdeiro!” Se, de uma lado, o filho é uma gratuidade, uma bênção; de outro lado, é uma necessidade de impérios. Inveja os que tinham seus filhos. Sabia que minha família existia no meu sangue enquanto vivesse. Muitos têm filhos facilmente, enquanto eu não. Alegrava-me de ver as crianças nas ruas e no castelo. Mas pensava sempre: “não são meus!”
Assim, era melhor, ignorar para não agir e sofrer... Dizia-lhes:
- Alá seja louvado, sabe Ele o momento de ter novo herdeiro... Para Ele, nada é impossível. Ele está acima de mim. Eu sou o servo de Alá.
CAPÍTULO XIX
Uma doença, de repente.
Um dos mandarins do antigo rei foi enviado a mim. Dizem-no: homem sisudo, pouca fala. Não sabia nem ele que estavam infectado pela lepra. As capaz lindas e novas escondiam a doença na pele com manchas brancas e sem dor.
Quando soube, era tarde. O contato com a doença, desfigurou-me e me revoltei. Do ósculo, veio a vergonha da humanidade. Uma doença sem cura. Antiga quanto a ambição e a solidão do homem em primitivo clã. Sua origem some na noite dos tempos remotos. Miséria e doença dominam os seres humanos para sempre, desde o início dos tempos.
Dias depois, estava com a mancha... Achava que nada era. Um dos emissários do mandarim regressou avisando-me do mal. O leproso havia procurado o extremo oriente à busca de um milagre. Era idoso e provavelmente desaparecerá no deserto. Outras comunidades não o aceitarão, morrerá de fome e frio, talvez abandonado no calor infernal do deserto. Ou em preces e na solidão de cavernas e grutas no mar morto com o sal ou algum medicamento...
Agora, sim, estava eu desesperado. Isso me obrigou mudança de planos. Ter filho já não era importante. Desejava minha cura. Três coisas, eu pensei: teria que acrescentar à minha orfandade indesejada e a morte de meus pais, agora a lepra; não poderia continuar a governar como antes. Teria de abdicar ao que mais me alegrava: a companhia de minha esposa, para não contaminá-la. De meu quarto, não a quis receber mais: dei-lhe casas no campo e na cidade para viver e guardas de minha confiança para protegê-la, junto com suas servas e pertences pessoais, joias, roupas e móveis.
Durante um ano, fiquei com sua serva, mais velha, Cibele Haaf. Esta me preparava os alimentos, o vinho e o pão noturno, e fazia a limpeza do meu quarto. Com o tempo, dispensei-a e escolhi um servo para isso.
Várias vezes, com insônia, eu acordava à noite com sonhos e gritava de medo em meu quarto. Comecei a dormir tarde e ficava a olhar a cidade e a resmungar minhas loucuras. Eu era o meu único companheiro. O monólogo intenso e inquieto durava até às quatro da manhã. Levava comigo meu manto ocre aveludado, que me lembrava de minha mulher. A torre virou um observatório privilegiado, uma alcova improvisada, um reduto fantasmagórico de meus medos e pertences mais íntimos: pinturas, vasos, talheres, copos, cama, armário, mapas, Evangelho e o Al Corão. De lá, via a cidade, os campos, os guardas, a muralha, a mesquita, as estrelas e o anoitecer. Muitas vezes, a alvorada. Fiz experiências de alquimia na esperança de cura. Ponderei conjunturas e redimensionei meu destino. Uma angústia dominava meu coração.
Anos de solidão, dor, ostracismo, autocomiseração e revolta impregnavam meu agir e pensar.
Houve uma mudança radical no meu viver e meu estilo. Minha visão de mundo ficava cada vez mais pessimista e revoltante. Isolei-me na torre de meu castelo. Tornei-me um fantasma. Mantive minha imagem de são e saudável como pude. Julgava os casos do reino atrás de cortinas. Ninguém mais me via. Ameaça os meus conselheiros se contassem a quem quer que fosse meu estado. Chegou ao ponto de não mais julgar e elegi novos juízes e conselheiros. Não aparecia em lugar nenhum. Mas, não poderia manter uma imagem e nem meu estado de saúde. Pois, alguém e em alguém lugar descobririam.
Nova medida, pois, tomei, finalmente. Ausentar-me-ia em viagem para as terras do nascer do sol. Buscaria milagre. Haveria em algum lugar ter a solução para meu mal. Não morreria ali e não esperaria a lepra me desfigurar tanto.
Contratei artistas para construir máscaras, nariz de cera, roupas largas, usaria peruca, sapatos para ocultar os sinais da doença.
Os espelhos não eram bem-vindos ao meu quarto. Só meus camarins para sugerir roupas e cintos...
A viagem, no começo, alegrou-me com novidades e outras paisagens. Contudo, cansou-me e nem podia permanecer tanto tempo com meus guardas. Todos também cansados. Poucos suportariam tal empreitada. Dias e dias longe de suas famílias, sujeitos a contaminação. Foi que dispensei alguns; outros me seguiram por muito tempo. Por fim, só três ficaram comigo. Mas, o medo e o horror a seus olhos estavam claros. Não podia manter gente comigo. Era já um insulto, um trapo, uma vergonha ambulante, um doente horrendo e nojento.
Todos se foram. Em uma noite, acordei e os vi partir. Não os impedi. Haviam ido bem longe. Agradeci a fuga deles ao Altíssimo Alá. Fiz uma prece para morrer ali mesmo e que eles não se contaminassem comigo.
Comecei a andar por lugares isolados, noturnos, ermos, a cata de alimentos e roupa. O dinheiro acabara. Virava mendigo agora. Mutatis mutandis , era meu próprio fim. Não havia em quem confiar e nem me divertir. Não havia mais amigos e conhecidos. Era o fim! Minhas forças e amor-próprio se esgotaram. A vida não tinha mais sentido; viver não era mais preciso.
Não sabia que o destino me reservava tamanha autodestruição, parecia um destino e um karma em minha ignorância de mortal. Havia atrás da arrogância, um coração carente, uma alma confusa, uma mente perversa, um olhar rebelde, um homem descentralizado, dividido, vingativo e deslocado no tempo e no espaço. Um conflito existencial em coisas fúteis do mundo, da efemeridade, vaidades e injustiças sem fim, mesmo com toda a doença.
Pedi que minha esposa não me visitasse e nem escrevesse mais cartas. Isso me fazia sentir inútil e apoquentava-me o espírito de revoltas e melindres. Minha escrita se deformou porque não podia mais firmar a mão. As cartilagens despenderam-se. Os tocos de um monturo de homem ficaram no esboço do esqueleto. Era a escória do mundo. Um tolo ambulante.
Minha vida passava lenta como areias abundantes do Saara ou águas de Madiã ou cântaros noturnos. Pedia o findar de meus dias. A luz era evitada e, com ela, a vida e o movimento das ruas e a curiosidade do povo. Já não confiava em ninguém. Encontrei caricaturas e pilhérias em folhetos anônimos espalhados à noite e ao vento das praças. O anonimato era uma forma de audácia e covardia de alguém desgastando a imagem pública do califa. Era visto como um monstro e uma criatura vinda das profundezas. Havia criatividade nas trovas e piadas para desmascarar o califa. Atrás do conluio ultrajante estava raiva e desejos de outros no poder. Isso me fazia sofrer e enraivecer. Com o tempo, aprendi a conviver com a mediocridade e o figurino da oposição anômala e anônima. A prudência era a melhor arma contra a extravagância e pilhéria. Os anos se passaram e com eles vinha velhice se aprofundava em melancolia e desconsolo. Vários funcionários morreram, outros fugiram de mim e foram a outros reinos.
A minha torre, minha câmara secreta e causa patológica, condividia-se à distância o destino cruel e sombrio da vida com outros mundos góticos e enfermos da cidade - que eu nunca havia visto ou imaginado. À noite, vinha à tona, uma multidão de maltrapilhos, gente de toda espécie de doentes, marginalizados, soturnos abandonados pelas suas famílias. Com eles, não me solidarizei e nem me circunstanciei – temia que descobrissem o califa leproso. Desejava para mim, esposa, amigos, servos e a cidade toda conservar a imagem do belo califa que viram há muito tempo.
Era um mentecapto e transloucado à procura de milagre. Uma hipótese temerária e distante que me fazia ainda viver. O ser humano precisa de miragens e vitrines para projetar seus desejos mais profundos de vida e de vaidade. Mas, tudo é vaidade e morte.
Era uma figura do Hades, um prometeu errante, um árabe arruinado, um mito arruinado, um arconte, um espantalho esquecido na lavoura, um boneco velho de cera se derretendo ao calor do deserto.
Os olhos se confundiam com outros orifícios da orelha e do nariz e boca que nem um morto-vivo ou um zumbi. Consumia absinto, drogas e vinho para fugir de meu dia, abreviar a vida, tapear a solidão, driblar meu senso crítico e emendar o destino cruel e mesófilo, aqueles organismos encontrados em alimentos, especialmente em queijos, iogurtes, cerveja e vinho.
Caia entre garrafas, vômitos, fezes e o azedume do quarto intrigava a mim pela imundície a que me reduzira. Um tonto, brincando de mímica, alucinado como um mico, leão, porco...
Um quadro de depressão e autodepreciação se instalaram irremediavelmente. A ignomínia havia chegado ao ápice de um anacronismo e nível crônico de aberração humana. Os funcionários da corte houveram por bem contratar uma mulher do povo e desejosa de trabalho para ajudar sua família. Isadora Murah limpava o quarto uma vez por semana. Admirada de um dinheiro que não conseguia se trabalhasse no mercado o dia todo. A desgraça de uns e a alegria de outros. Tudo e em tudo há um benefício. Mesmo do gato morto há quem veja os bons dentes. A única condição e era de morte se falasse sobre a imagem do califa.
E ela se manteve firme por anos, até que não pode mais. A saúde dela estava ruim e a condição de mulher e mãe fez tomar novos rumos. Não a censurei. Não podia estragar sua vida e nem exigir mais.