Efeitos Simbióticos.

Efeitos Simbióticos.

Amanheceu, eram sete horas, e todos os visitantes já se foram, ficaram apenas nós três, eu, minha velha e a casa. Passamos muito tempo dentro dela que às vezes conversávamos, na verdade sussurrávamos casos esquisitos. Não sei precisar se Fany tinha essas conversas, pois a casa é tímida. Talvez conversassem também, afinal nós conversávamos pouco. São muitos anos de convivência. Muitos assuntos encerrados e enterrados. Mortos!

Levantei-me e olhei ao redor. Errei, eram apenas duas pessoas. A casa não queria falar e Fany ainda dormia. Dirigi-me em direção à cozinha, passei pelo corredor, reparei que a televisão passou a noite ligada, atravessei a parede e fui ao quarto. A barata olhou-me e sorriu. De início senti-me uma. Logo não liguei mais e continuei. Novamente atravessei a parede, fui inconscientemente ao quarto onde dormiam meus filhos, lugar onde permanecem apenas as lembranças.

Parei por uma hora rememorando os acontecimentos que ocorreram naquele quarto, antes deles, foi meu. Agora vazio! Olho para àquela parede retangular de quatro metros de comprimento onde riscava com meu dedo e escrevia os acontecimentos. Quarto grande, se compararmos com os prédios de hoje. Muitas coisas. No quarto predominava-se a cor vermelha, meio desgastada com o envelhecimento natural, ainda me lembro porque fiz isso, algo do momento, real e assustador, com o tempo parte do vermelho mesclava-se com o verde, não sei explicar de onde veio, mas todo o quarto está se tornando outra essência, devido a cor. Verde como os olhos de Fany. Verde.

Transpasso a parede, vejo o cachorro, pede-me água. Coloco um pouco em uma tigela, olho-o um pouco. Iniciamos um diálogo. Contou-me que deveria cuidar da saúde e da família, pois é tudo que é válido nessa vida. Ele tinha 12 anos. Aconselhou-me, ele tem a idade da minha bisneta. Sabedoria de criança, mas não era criança, era um velho com idade de criança. Cachorros são assim. Logo morrem.

Deixei-o.

Retomei meu objetivo, na verdade não lembrava mais o que deveria fazer. Não preciso fazer nada, já consegui minha aposentadoria faz quarenta anos que vivo desse jeito. Faz quarenta anos que me aposentei. Antes só pensava em conseguir a alforria, agora quero meu mundo de volta, quero atividade, quero viver. Morrer!

Passei trinta anos trabalhando e sonhando com o momento que iria parar, agora se pudesse voltaria no tempo, parar é sinônimo de morte. A vida é movimento, é atividade, é luta é combate. Lutei pouco, queria mais combates. Vi a crônica daquela casa, dos meus pais, dos meus filhos e a minha própria. E a que se resume tudo isso? Não sei dizer, tenho impressões...

Continuo atravessando as paredes manchadas e, percebi agora, faz muito tempo que não fazemos uma reforma em nossas vidas, nossa vida é essa casa, essa casa é nossa vida. Somos uno, nos imbricamos e nos transformamos em um organismo simbiótico. Nossos pensamentos são os pensamentos desta casa, Fany e eu.

Cheguei à cozinha, o fogo do fogão estava aceso. Eu fiz isso? Não importa, enchi a caneca de água e coloquei no fogo. Apagou. Foi o vento que entrou por baixo da porta, ou seria outra coisa? Sempre me disseram que foi construída em território indígena, os feitiços eram realizados ali. Nunca acreditei. Agora. Tenho dúvidas. Olho para o relógio são sete horas e um minuto.

De repente toca a campainha, com o susto desperto. Tudo que havia acontecido foi meramente um sonho, coisas da idade. Quando se dorme perde-se a dimensão da realidade, mais ainda quando não se tem nada para fazer.

Vou atender a porta. Era minha bisneta Agnes.

Oi vovô!

Respondi da maneira mais feliz que sabia, afinal ela era minha preferida, a mais inteligente, a mais perspicaz e acima de tudo a mais companheira. Mas nem tudo são flores no reino de Theodoro, sua mãe veio junto. Como todo belo presente vem embrulhado, o meu também, mas com papeis de jornal. Não que jornal seja algo ruim. Apenas não serve para embrulhar presentes, serve para saber de algumas informações, às vezes serve também para socorrer em momentos de extrema urgência, mas é só isso.

Agnes pulou em cima de sua vó, no meu sofá, na minha cadeira, no quintal, no cachorro, por cima do muro do vizinho. Quase não dá para descrever o que ela fez. De tão ativa, lembra-me a juventude. Minha.

- Vovô sou pesquisadora. Disse.

- Muito bem! Sempre me orgulhei disso, gabava-me para meus amigos sempre que podia, todos os meus filhos são pesquisadores, cada qual a sua maneira. Sai-me bem como pai. Minha neta não negou isso.

- Vovô, vou descobrir o que tem dentro da minhoca!

- Muito bem! Em minha cabeça formava-se diversos pensamentos, queria dizê-los, mas não era esse momento, era dela a descoberta. Parece que não é só a infância que ganhamos com a velhice, e a condição de babão, pois como ficava impressionado com aquilo.

Disse-me isso e já foi correndo para o quintal, mas antes separou um prendedor de roupa, um copo e um pouco de água.

Observei sem dizer nada.

- Vovô já peguei meus equipamentos de pesquisa, vamos.

Segui bem distante. Logo que chegou começou a cavar. Há algum tempo também fazia aquilo, mas era com outro objetivo. Pescaria. Poucos minutos encontrou a primeira minhoca, pegou-a com o prendedor e colocou-a dentro do copo com água. Mais outra e mais outra. Foram três. Perguntei, por que só aquelas?

Para testes, uma para amostra, uma para experiência e outra para reprodução. Se pegar mais pode desequilibrar a natureza.

Não quis dizer nada. Saímos.