As histórias do vô Theodoro.

As histórias do vô Theodoro.

Fábio Oliveira Santos.

Stephanie Efstathiou.

Agnes Rafaella Efstathiou.

Chamo-me Theodoro Teosino da Silva, tenho 109 anos e moro em Osasco desde criança. Nasci onde hoje se conhece como Jardim Aliança, próximo à antiga fazendinha onde comprávamos leite fresco para bebermos. Meus pais foram escravos libertos em 1888, sou o filho mais novo de cinco filhos. Somos o elo perdido entre a monarquia brasileira e a república que, de acordo com meu pai, foi um golpe dado ao imperador. Mais ainda, nós nem sabíamos o que estava acontecendo, olhávamos de maneira bestial ou bestializados os acontecimentos. Deixa isso pra lá. São apenas histórias que são carregadas de rancor e descaso.

Quero retomar minhas memórias dos aspectos que me reconfortam. Vero! Nós seres humanos sempre procuramos isso. Assim, não se incomodem se a realidade que contei não é a realidade que vemos. Lembrem-se sou idoso e algumas coisas não sei precisar se é verídico ou invenção. Bom lembrar que a literatura também é assim. Ela não é a realidade, mas a representação. Eu sou real!

Éramos uma família de sete pessoas, soma-se mais duas: os cachorros, pois meus pais consideravam-nos quase gente. Havia dias que imaginava que realmente os animais falavam comigo. Nossa casa era simples, tinha 2 quartos um banheiro (nem tanto, o banheiro, se me lembro bem não existia, tínhamos que ir ao mato) e um imenso quintal. A dureza era acomodar as crianças em apenas um quarto, mas, família do interior e que não tinha televisão, se arranjava muito fácil. Eu e meus irmãos vivíamos em paz, veja bem, a paz do Afeganistão.

Memórias!

Minha vida transcorreu sem maiores incidentes. Hoje com o poder da maturidade, consigo observar com mais serenidade os eventos que passei e a vida que vivi, sem sombra de dúvida, como todos nesse mundo que vivemos, tive oscilações no percurso, ora estive bem, ora nem tanto.

Ainda vivo na mesma casa que cresci e onde meus pais construíram nossas vidas, meus filhos cresceram aqui, estudaram aqui e foram para a Universidade Pública. Afinal é um bem social, além de estudar com os melhores de todo o país. Costumava dizer as minhas garotas e meus rapazes:

- Filhos, somos pobres, porém isso não determina quem somos, mas apenas é um sinalizador do que devemos fazer! Meu filho mais novo nunca entendeu o que eu queria dizer com isso. Ainda hoje, aquele moleque dá diversas risadas com isso, só que sempre diz que agora ele entende o que queria dizer. Sabedoria que se tem aos sessenta anos. Não consegui atingir meu desejo, pois ele deveria entender isso mais jovem. No entanto conseguiu o que queria: tornou-se médico cardiologista muito bem conceituado e trabalhou no famosíssimo HC.

Outro aspecto que gosto de recordar, principalmente quando meus garotos veem a minha casa, sem contar a pequena Agnes, minha bisneta, é sobre minha infância, não canso de contar o que fazíamos, dos meus amigos e colegas, tinha até um amigo imaginário. O nome dele era Blue. Dei esse nome, porque adoro essa cor. Parece-me que fizeram um desenho animado que tinha um personagem parecido que vivia em uma casa. Acho que se chama Mansão Foster. Uma casa repleta de amigos imaginários.

Às vezes, entre um momento e outro de história, era assim que papai contava-nos as histórias de nossa terra, perdia-me em leves observações. Ter o privilégio de contar com a idade que tenho, lúcido e com toda a família, era algo que me deixava muito feliz. De repente, observava por toda a sala e todos estavam lá, cada qual a sua maneira conversando sobre assuntos de jovens, política, medicina, direito entre outras. Enchia-me os olhos de lágrimas. Viver para ver isso! Tudo que fiz valeu cada vintém. Já sei, não é mais esse nome! Reformulo: valeu cada real e cada momento vivido. Mamãe Zelina nos vê lá do céu. Fiz o que me ensinou. Nesse teatro que é a vida, cumpri meu papel de maneira magnifica.

Relembro, mas só de maneira silenciosa. Esse momento é só meu.

A morte corresponde ao final de uma jornada. Tanto é, que queremos tudo, menos saber que o final de tudo está próximo. Creio que é próprio do ser humano. Meu pai, ao final, disse que não fez nem metade do que pretendia. Ainda abriria uma empresa de construção, foi-se com 63 anos, a idade do meu filho Fábio. Por um instante distraio-me com vó Fany chamando-me à realidade. Chamo-a de Fany, pois seu nome é muito difícil de se pronunciar. Quando namorávamos, há alguns anos atrás, faz 70 anos que estamos juntos, contou-me que se pai, negro africano, esteve na Grécia e conheceu uma namorada por lá, seu nome era Stephanie, o resto explica-se por si. Veio para o Brasil, casou-se e por lógica, sua primeira filha ganhou esse nome.

Retorno ao saudosismo.

Ainda criança, enquanto dividia o tempo correndo atrás de vacas e a escola, Dona Jandira, professora de português, (chamavam-na de Coroca, pois de tão inteligente confundia algumas coisas, principalmente os nomes das crianças) lia livros, e, em uma de suas leituras, contou-nos sobre a história de um moço que na sua morte desceu ao inferno foi guiado por uma alma que em vida escrevia poemas, acho que o poeta chamava-se Virgílio, até o purgatório e depois para um tal de campos Elíseos, ou algo assim. Impressionou-me o que esse homem viu, todo o sofrimento que os mortos têm no inferno até chegar ao céu, coisa que só ele conseguiu, inclusive no purgatório encontrou uma antiga namorada que em vida chamava-se Beatriz, foi ela quem conduziu-o pela jornada final.

Depois dessa história comecei a pensar na vida e principalmente na morte. O que acontece? Sabe-se lá! É só uma história. Mas tenho certa idade, e depois?

Naquela época, comecei a interessar-me mais por histórias de livros, pois me faziam sentir algo que não sentia, comecei a vê-los com outro olhar. Coisa estranha!

Não sei precisar se tinha mais ou menos, mas quando comecei a compreender o que lia já tinha entre doze ou catorze anos, vindo de uma família simples, recém libertos, para não dizer outra coisa. Ler era algo raro e difícil, bem diferente de agora, onde minhas netinhas leem e fazem tudo na internet. Naquele tempo, para conseguirmos material de leitura, era de doação ou quando escutávamos os maiores lerem para nós. Engraçado. Minha neta sempre diz algo semelhante antes de dormir: “leia para mim”.

Os tempos mudaram, mas a necessidade não. Ler é conhecer o mundo, pois todo conhecimento da humanidade foi escrito para que as próximas gerações pudessem tomar posse e avançar rumo à plena potencialização da humanidade. Algo que só é possível através dos livros. Certa vez disseram, acho que foi Monteiro Lobato, “um país se faz com homens e livros”. Certo. O conhecimento humano está guardado a espera das pessoas que o chamem. Meio que os super-heróis modernos, eles estão lá esperando um chamado, é assim com o Batman, é assim com os livros, estão lá a espera do chamado.

Desde muito cedo aprendi isso, velho e bom Amâncio, meu pai, não teve instrução nenhuma, apenas força de vontade e persistência, fez por nós todo o seu sonho. Agora dou continuidade aos seus sonhos por meio das gerações de nossa família. Ensino-os o que nos ensinou, na verdade apenas oriento.

Quando Agnes completou 7 anos dei-lhe de presente uma bicicleta, os pais ficaram contrariados, mas isso é coisa de avô, mimar e estragar os filhos. Depois eles voltam para casa e revolucionam, pelo menos no sentido de desobediência aos pais. Era uma Monark.

Na sua primeira, diga-se desajeitada andança de bicicleta, Agnes empolgada com o brinquedo novo, resolveu descer à colina onde hoje encontra-se a escola que se chama Professora Francisca Lisboa Peralta, conheci-a em vida. Na rua não havia muitas casas, apenas muitos barrancos e diversos buracos. Conclusão dessa peripécia. Exato. Saiu ilesa depois de um tremendo tombo, porém a bicicleta. Somente outra.

Depois que seu pai começou o sermão de duas horas, foi o tempo necessário para eu fugir alegando que visitaria minha irmã Raimunda, afinal, não foi totalmente mentira, pois lhe devia uma visita, assim só aproveitei a situação. Depois voltei e a fera já tinha sido amansada.

Vou contar! Crianças são protegidas mesmo. Todas são meio que quixotescas e, só não dão a mesma triste sorte, quase sempre conseguem sair bem da situação. Creio que mesmo eu sou o Cavaleiro da Triste Figura, mas é por outro motivo. Outra hora conto isso, pois já consigo enxergar Morfeu.