RETRATOS DE INFÂNCIA - CAP. 16
Naquele dia trabalhei com menos concentração, mas consegui finalizar o relatório. Eram já três da manhã quando pude enfim deitar-me para descansar. Antes, porém, vou até a janela do hotel para respirar um pouco e vejo a cidade inerte, como na minha infância. Nenhum carro, nenhuma pessoa, barulho algum. Dores do Indaiá dorme silente e calada no frio da noite iluminada pelo brilho da lua no zênite tal qual nos meus tempos de infância. A cidade parece que dorme também no tempo e continua sua vida miúda ao redor das praças e ruas antigas, sendo seu silêncio quebrado apenas nos dias de festa e pelo badalar dos sinos das igrejas nos dias santos. Daqui posso ver a matriz, distante da rua das minhas memórias. Com o olhar fixo, parece que vejo as pessoas transitando como nas procissões da semana santa, um evento surreal por estas bandas. Parece que ouço as rezas, os cantos, os choros e lamentos pelas dores de Nossa Senhora, cuja bela imagem se encontra no interior da igreja ao lado da imagem do Senhor dos Passos, vestido com uma túnica roxa e uma peruca grande, com olhos tão profundos e que me causavam pesadelo à noite. Meu cansaço ainda me impede de dormir.
Fico com os cotovelos na janela respirando o ar do sertão e remoendo as histórias tantas desse dia. Vejo mamãe caminhando atrás do esquife do Senhor Morto na procissão do enterro. Ela ficava envolvida com a tragédia da Paixão de Jesus e com sua vela na mão, que às vezes queimava com a cera que escorria até suas mãos enrugadas e ela nem percebia, tão imersa na oração pelas tragédias de nossas paixões. Vejo seus cabelos brancos e longos enrolados e seu rosto envelhecido pela vida em profundo êxtase e mergulhada no mistério da morte de Cristo. Sinto saudade. É quando abro o velho livro e continuo a ler.
Enquanto vou relembrando tantas coisas, vou sentindo as pálpebras pesando-me no rosto e o sono traiçoeiro se aproxima. Resisto ainda por um breve tempo. Neste, revejo o dia que minha vizinha sofreu acidente, o dia que um outro foi ao hospital. Relances que ela guardava com cuidado. Nas suas memórias pessoais emocionei-me com os casos sobre escravos que ela ouvira. Revivi procissões e badaladas dos sinos da matriz e da igreja do Rosário, quase cantados em versos por Dona Francisca. Os acontecimentos da nossa pequena e escondida rua ia passando por entre memórias falhas que se completavam com a leitura. E tantas outras histórias de sua família, como a morte de seu marido e a dor que ela sentira nos dias e meses que se sucederam. Pude ver uma Francisca diferente daquela que só víamos sorrindo. Lágrimas e dores ela guardava para a noite, no seu leito agora imenso de saudades e lembranças que ela deixava cair em forma de letras neste livro.
O velho livro me lembrava da morte de meus antigos vizinhos. Vaguei pelos tipos estranhos que viviam no nosso bairro, figuras curiosas que só existem aqui e também ia relembrando grandes acontecimentos que Dona Francisca pareceu testemunhar e outros que ouviu de seus pais e foi registrando. Ia recordando rosto após rosto cada um deles e fiz uma pequena prece. Dormi.