Nas profundezas de uma vida (nada) normal - Capítulo 13

Nas profundezas de uma vida (nada) normal

Capítulo 13 - Cheiro Salgado

Como dizer "não" a uma pessoa sem ferir seus sentimentos?

Lipe tinha acabado de me pedir em namoro. Em outra ocasião eu teria dito sim, mas aquela hora eu não conseguia. Eu gostava dele, ainda mais aquela noite, mas não sentia mais a sensação que tinha antes. Não há mais frio na barriga, não tem mais aqueles olhares. É só um "eu gosto de você, mas não do mesmo jeito que você gosta de mim".

- Se você quiser mais tempo pra responder tudo bem... - ele mexeu em uma mecha do meu cabelo.

- Eu não...

Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa que provavelmente iria ferir os sentimentos dele, já que eu burra não consigo ser menos do que direta quando preciso dizer alguma coisa desse tipo, ainda mais nesse caso, um barulho me cortou.

Ouvi passos na areia, o que era estranho porque não se faz muito barulho na areia. O vento ficou mais frio. Uma sombra apareceu na direção do mar. Reconheci a pedra gigante da frente assim que a olhei. Estávamos na praia em frente a casa da minha tia. Eu eu não tinha dúvidas de quem era que estava ali.

Erik.

- Eu...

Era ele. A voz era a mesma. Quando seu rosto apareceu na única luz do poste eu vi sua expressão. Antes dele jogar alguma coisa que segurava com força na areia e sair pisando forte até a porta externa da varanda da minha casa.

- Erik!!

Levantei-me de supetão para tentar ir atrás dele porque algo me dizia que eu deveria explicar alguma coisa a ele mesmo que a vida fosse minha e nada daquilo era da conta dele. Parei no meio do caminho. Lipe perguntou porque eu ainda corria atrás de um homem que não era "homem". Eu não dei ouvidos a ele. Voltei alguns passos e me agachei para ver o que meu amigo havia jogado com tanta força no chão.

Eram flores. Mas não quaisquer flores. Eram as brancas Lines. Lines eram flores que nasciam a cada 100 anos e eram bem raras de encontrar. Podiam ser encontradas no reino das fadas, o lugar daonde a mãe de Erik realmente veio. Eu só havia visto uma única vez, quando fui ver o passeio publico da princesa de Thamisian. As flores eram mesmo bem brancas e decoravam uma pequena, muito pequena mesmo, parte visível das correntes dos cavalos marinhos gigantes reais. Eram as minhas favoritas desde então. Mas eu nunca havia contado pra ninguém porque eram tão raras que imaginava que só a princesa podia ter a honra de tê-las.

E um pequeno buquê delas estava ali jogada no chão. Era a primeira vez que eu as tocava e dessa vez não eram pra princesa de Thamisian. Eram pra mim.

- O gayzinho te mandou flores?

- Não me lembro de VOCÊ ter me dado flores.

- Rá. Rá. Eu sou homem. Ele é... No máximo um peixe gay que tem pernas - ele disse correndo atrás de mim enquanto eu corria para a porta da varanda.

Abri a porta sem dó e gritei o nome dele mais algo do que eu queria. Primeiro. Ele não deveria estar ali, mas estava. Estava quebrando uma promessa que fez pra minha mãe. Segundo, ele estava do meu lado, enquanto minha tia massageava seus ombros como se disesse "vai ficar tudo bem". Eu não consegui dizer mais nada. Coloquei as flores na jarra limpa de suco porque era o único lugar em que poderia colocá-las no momento. Erik não olhava pra mim. Minha tia não disse uma palavra, apesar de que devia porque eu queria muito saber onde ela tinha ido. Um silêncio profundo caiu entre nós. Lipe foi o primeiro a quebrá-lo.

- Essas flores eram pro enterro dela?

Erik olhou pra Lipe e se levantou da cadeira quase voando na cara dele. Minha tia o segurou e pediu para que relaxasse.

- Que foi? Tá irritado por que? Fui eu quem salvei ela. E você devia saber que ela não sabia da escolha do destino. Mas você também sabia dessa escolha, se gosta tanto dela por que não disse?

Sabe quando eu disse que aquela noite Lipe estava bonzinho. Esquece ele voltou ao normal.

- Você também sabia disso. E por que você não contou então? - ele quase rosnou.

- Por que eu tava ocupado salvando ela. Coisa que o destino me mandou fazer. Ela só tá viva por minha causa. Se eu fosse você eu teria trago flores melhores porque só essas ai não iam cobrir o caixão dela.

- Cala a sua boca! - agora ele realmente estava rosnando.

Minha tia se meteu no meio dos dois para tentar parar a briga. Enquanto tentava acalmar Erik com um braço ela olhava feio para Lipe. Eu tinha certeza que a briga entre os dois tinha um motivo muito mais além de estarem fazendo isso por mim. Tinha uma coisa que eu ainda não entendia direito, mas que era importante pra eles. O "Destino".

- Lipe, acho que sua mãe está bem preocupada, porque não volta pra sua casa?

Ele ia revidar mas ela mostrou seu olhar de "Faça o que eu tô mandando, agora!". Ele andou com passos fortes até a porta da frente e antes de sair batendo a porta me deu um beijo na bochecha e disse "Pensa na pergunta que eu te fiz, ainda tô esperando a resposta..."

- Essas flores são... Lines? - minha tia olhou para o buquê dentro da jarra de suco cheia de água depois de alguns minutos em silêncio.

- São. Floresceram hoje de manhã nunca parte mais externa de um campo de elfos. - Erik respondeu ainda sem olhar pra mim. Ele parecia triste. - Eu achei que seria o mínimo que eu podia dar caso o destino realmente tivesse escolhido a Mari...

- Então você realmente ia me trazer essas flores para colocar no meu caixão? - eu disse tentando controlar a minha voz que ainda soava aguda demais.

- E você realmente estava gostando daquele peixe doce? Quer dizer... Você ia dizer sim... Não é? - encontrei na frase um pingo de esperança de que eu dissesse não.

- Eu perguntei primeiro. - cruzei os braços.

- Bom... Mais ou menos. Eu não posso entrar na casa se ela não me deixar entrar. Mas eu tentei. Você ouviu barulhos de trovões? Toda vez que eu tentava empurrar aquela droga de portão velho a asa ameaçava me dar um choque elétrico com um raio.

Eu fiquei quieta por um tempo. Não queria conversar com ele sobre aquilo que aconteceu na praia.

- Agora você. Vou só te dizer uma coisa. Sabe quando a gente como comidas doces e salgadas juntas? E sabe qual o gosto que fica mais tempo? O doce. Se você ficar com ele, Mari... É o que eu to tentando dizer desde o começo. Alguma coisa pode acontecer com você. E essa coisa não é boa...

Não consegui responder. Eu lembro do dia em que Erik tinha me dito sobre isso. Tinha medo de que realmente fosse verdade. Não é muito comum haver misturas entre doces e salgados desse jeito. E o doce sempre prevalece...

- Bom... Meninos está muito tarde. Mari, pode levar o Erik até o quarto? Ele vai se hospedar aqui por alguns dias. Ainda tem aquele colchão embaixo da sua cama Mar? - minha toa se virou para meu amigo pouco antes de subir as escadas e continuou - Desculpe por estar usando o quarto de visitas como meu ateliê de costura, está tudo tão bagunçado. A Mari tem um colchão no quarto dela. E vê se não façam nenhuma besteira. É só esta noite, amanhã eu arrumarei o quarto direito pra você.

Precisei de alguns segundo para assimilar o que eles estavam falando com algo que fizesse sentido.

- Espera... Erik, você vai dormir aqui? O que aconteceu em Thamisian??

- Não precisa se preocupar... - ele fez um gesto para que eu subisse as escadas à sua frente e apagou a luz da sala - Não aconteceu nada com Thamisian. É só minha mãe que quer fazer umas coisas na casa e disse para eu dormir aqui por alguns dias. Isso se você não se importar claro...

Eu ia abrir boca para perguntar o por quê ele estaria vindo aqui, ainda mais para dormir, se ele tinha prometido a minha mãe que nunca mais viria, mas travei os lábios no mesmo instante. Erik não sabia que eu lembrava de algumas coisas do passado. E isso inclui a promessa.

Acendi a luz do quarto e ele fechou a porta atrás de si. Depois me ajudou a tirar o colchão de baixo da minha cama e o colocou o mais longe que podia. Ele sabe respeitar alguns limites. Ainda mais em um caso extremo como aquele. Quer dizer... Pelo menos na maioria...

De repente ele chegou mais perto de mim. O bastante para eu sentir seu cheiro. Não era doce, mas parecia uma espécie de colônia. Um perfume que me lembrava do mar. Um cheiro salgado. Erik pegou uma mecha do meu cabelo e começou a brincar com ela. Quando percebeu que eu basicamente o encarava ele chegou ainda mais perto.

Um passo dele pra frente, um passo meu para trás. Foi sendo assim até eu bater com as costas na parede. Ele apoiou os dois braços na parede como se fizesse uma barreira para eu não escapar e ficou um tempo olhando diretamente nos meus olhos o que me fez ficar bem mais vermelha que a própria cor do meu cabelo.

- Você vai dizer sim pra "ele"?

Droga. Eu sabia que mudar de assunto lá em baixo não o faria esquecer o que queria dizer. Não consegui pensar em uma desculpa então resolvi ser franca.

- Não quero que ele se machuque. E muito menos que ele me odeie.

- Isso quer dizer um não?

- Isso quer dizer que eu não sei.

- Você é muito indecisa sabia? - seus lábios roçaram na minha orelha e foram descendo até alcançar o pescoço.

- É uma das coisas que eu mais odeio em mim mesma. Eu devia melhorar...

- Posso te ajudar se quiser. Por exemplo... Te trouxe as suas flores favoritas. - e as mais raras pude imaginar o que ele estava pensando.

- Isso tem a ver com o destino não tem? - como ele sabia sobre aquelas serem minhas preferidas?

- O quê? As Lines?

- Também. Mas principalmente você aqui. Sua mãe te expulsou de casa por algum motivo...?

Ele suspirou e logo depois seus lábios encontraram os meus e seu beijo tinha um gostinho mais salgado, mas ainda sim era bom. Ele me abraçou com força sem me deixar revidar. Não era justo ele tentar beijar só pra escapar de uma resposta!

- Erik... Para. Eu quero saber por que exatamente você está aqui - eu o empurrei um pouco para trás.

- Bom... Tem a ver com o destino, com o passado, comigo e principalmente com você... - ele fez uma expressão de quem diz "é uma longa história".

Olhei para o relógio em forma de estrela do mar na parede do quarto.

- Tenho tempo. - eu disse.

- Você sabe que... Eu gosto de você, certo?

Eu deixei que ele me beijasse mais uma vez como resposta. Os olhos azuis, principalmente aquele com a manchinha castanho não largaram os meus nem por um segundo.

- Mas eu não tenho tanta certeza assim de você sobre mim... E você sabe que eu vou fazer dezoito em alguns meses...

- Tem a ver com o casamento não tem? - não sei por que senti uma pontada no meu coração. Mas não deixei transparecer.

- Minha mãe tá animada com isso, Mari. Desde pequenos ela queria que você fosse a escolhida dela. Mas quando veio morar aqui...

- Erik...

Ele colocou um dedo nos meus lábios enquanto falava novamente no meu ouvido me dando calafrios. Eu não me sentia muito confortável ali.

- Ela me mandou sair de casa enquanto convida as sereias que ela deve ver. Ela vai escolher por mim se eu não disser o que eu quero. Só tem uma que eu quero, mas não sou o único que gosta dela. O único problema é que o destino decidiu que eu deveria competir. Ele me fez achar as flores, ele me deu esperança de que você estava viva sem eu ter toda certeza. E bom... Você pode mudar isso.

- Não posso.

- Pode sim. Tem que escolher um caminho pra sua vida. Se escolher um o outro desaparece. Se escolher o outro o primeiro deixa de existir.

- Lipe me disse quase a mesma coisa.

- Eu não quero te fazer ecolher. Sua decisão.

- Você não quer esse casamento não é?

- Não com nenhuma delas.

- Hum...

Erik me beijou mais uma vez e fiquei ainda mais confusa. Minha queda por Lipe só existia quando ele era fofo comigo. E Erik eu sentia que podia ser errado já que me sentia muito próxima dele, como irmãos. Mas ultimamente estávamos distantes e ele era sempre fofo comigo.

E quando dizer um "não" fere a nós mesmos? Será que o errado poderia ser meu lado certo? Mas o pior de tudo é, será que o Destino vai me compensar de alguma forma pela escolha?

Antes de andar até a minha cama, deitei ao lado de Erik e dessa vez fui eu quem dei um beijo de verdade nele, para saber se era real o que eu sentia. Ele se assustou no começo. Eu podia estar errada, mas se meu lado certo for o errado... Eu teria mesmo que tomar uma decisão e acabar machucando a mim mesmo por causa de uma simples palavra de três letras?

Bec
Enviado por Bec em 09/04/2013
Reeditado em 19/06/2014
Código do texto: T4231005
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