a maiêutica (parto das ideias) acontece nas crises da juventude e na busca da verdade em um mundo fragmentado e globalizado

Só sei que nada sei e conheça-te a ti mesmo (=: “nosce te ipsum”) versus e/ou

(“Torna-te o que tu és” = “Genói oíos essí matón”, do poeta Píndaro.)

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Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche – 2º semestre de 2012 – Vol. 5 – nº 2 – pp. 30-45

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Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche – 2º semestre de 2012 – Vol. 5 – nº 2

Do “conhece-te a ti mesmo” ao “torna-te o que tu és”: Nietzsche contra Sócrates em Ecce Homo From “Know-thyself” to “Become such as you are”: Nietzsche against Socrates in Ecce Homo

Luciano Gomes Brazil*

Resumo: A partir de uma passagem interessante da autobiografia do filósofo, trabalharemos dois imperativos gregos, o “Conhece-te a ti mesmo”, do oráculo de Delfos, e o “Torna-te o que tu és”, do poeta Píndaro. Ambas quando trabalhadas a partir da língua grega mostram-se ipsis verbis, e abordam um aspecto muito caro do pensamento de Nietzsche, pois tratam do movimento, do vir a ser. Essa abordagem é

tratada tendo em vista a rivalidade de Nietzsche com a figura de Sócrates, prefigurado nas entrelinhas da passagem destacada. Sem prejuízos, a rivalidade é esmiuçada para intensificar as questões que já aparecem no filósofo ateniense, e desenvolver, por assim dizer, o pensamento de Nietzsche com relação ao tempo, que parece ser, em todo caso, uma compreensão de destino.

Palavras-chave: Nietzsche, vir a ser, trágico.

Abstract: From an interesting passa...

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O pensamento empreendido neste artigo parte de uma sugestão dada em um

trecho da autobiografia de Nietzsche. Trata-se da compreensão da máxima de Píndaro, o

Torna-te o que tu és. A frase, além de aparecer no subtítulo da obra em questão,

aparece, no trecho mencionado, contraposta à outra máxima grega: a máxima de Delfos,

atribuída ao oráculo da cidade de Delfos, mas também atribuída a Sócrates. O que

faremos aqui é: expor o trecho onde aparece essa sugestão, e em seguida trabalhar em

cima dos pontos principais para o que se pretende.

A passagem de Ecce Homo assim diz:

Neste ponto já não há como eludir a resposta à questão de como

alguém se torna o que é. E com isso toco na obra máxima da arte da

preservação de si mesmo – do amor de si... Pois admitindo que a

tarefa, a destinação, o destino da tarefa ultrapasse em muito a medida

ordinária, nenhum perigo haveria maior do que perceber-se com essa

tarefa. Que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite sequer

remotamente o que é. Desse ponto de vista possuem sentido e valor

próprios até os desacertos da vida, os momentâneos desvios e vias

secundárias, os adiamentos, as “modéstias”, a seriedade desperdiçada

em tarefas que ficam além d´a tarefa. Nisto se manifesta uma grande

prudência, até mesmo a mais alta prudência: quando o nosce te ipsum

[conhece-te a ti mesmo] seria a fórmula para a destruição, esquecer-se,

mal entender-se, empequenecer, estreitar, mediocrizar-se torna-se a

própria sensatez. Expresso moralmente: amar o próximo, viver para

outros e outras coisas pode ser a medida protetora para a conservação

da mais dura subjetividade. Este é o caso da exceção em que eu,

contra a minha regra, minha convicção, tomo o partido dos impulsos

“desinteressados”: eles aqui trabalham a serviço do amor de si, do

cultivo de si. (EH/EH, Por que sou tão inteligente,§9)

Passagem rica de detalhes, fonte de bons questionamentos. Para o que queremos

trabalhar devemos ficar atento a alguns dos diversos pontos interessantes: 1. À maneira

como ele inicia o trecho; 2. À apresentação da sentença “torna-te o que tu és”, subtítulo

da obra em questão; 3. À rivalidade ao “conhece-te a ti mesmo”;4. À noção de destino,

guisa de conclusão de nossa empreitada. Para um fim um tanto quanto mais didático,

em nossa exposição trocaremos a ordem do texto: antes de falarmos do 3.“torna-te o que

tu és” falaremos do 4.“conhece-te a ti mesmo”.

da são morais.

Qual o elemento trágico, segundo Nietzsche, dessas tragédias? O trágico parece

estar sempre ligado ao destino. Se conferirmos tais tragédias, perceberemos que tanto o

titã Prometeu quanto Édipo não realizam escolhas. Isto quer dizer o seguinte: eles não

agem segundo o livre-arbítrio.

_________

Considero este um tema difícil, mas

acredito que a afirmação de que a tragédia trata do indivíduo perante o todo, e que este

todo é o destino, está correta. Se pressupormos que a moral necessita, para se

fundamentar, de um critério universal, isto é, que seja válido para todos os indivíduos, e

pensarmos, por outro lado, que o elemento trágico se liga à destinação, e essa destinação

se gera no âmbito não coletivo, mas sim na luta desse indivíduo perante o todo, ... a

tragédia trata de indivíduos. Os heróis trágicos vivem um destino intransferível que não

pode ser medido moralmente.

É evidente, contudo, que devemos concordar com uma afirmação de Eugen

Fink, que o trágico de Nietzsche, não estando na tragediografia, cria certa

independência com relação aos mitos ditos trágicos:

O verdadeiro problema para Nietzsche consiste na definição da

natureza do trágico. É indiferente se Nietzsche desenha corretamente

ou não a imagem da tragédia antiga; o que importa é o fato de ele

representar nela, na maneira como vê a tragédia grega, pela primeira

vez um tema central de sua filosofia. (FINK, A Filosofia de Nietzsche,

p.17)

Nietzsche parte, é o que parece, de uma interpretação pessoal das tragédias. Há

toda uma tensão que pensa a dimensão do ato humano mediante uma totalidade não

humana. Ora, a dimensão do agir que se baseia para além do homem não pode ser

denominada “Ética” como pressupunha já Aristóteles, mas deve estar enraizada naquele

todo, que a filosofia denominou metafísica, e que, no caso de Nietzsche, este todo foi

cada vez mais pensado em uma dimensão temporal. Agora, é importante termos em

conta o seguinte: no sentido trágico proposto por Nietzsche, só se mantém naquele todo

se se sustenta a ambiguidade, ao invés de deduzi-la logicamente. Temos aqui um

primeiro passo dado para distanciar a figura socrática com a figura de Nietzsche.

Passemos agora a tratar da palavra “conhece-te” na raiz grega.

A palavra grega para conhecimento é Gignosko. A máxima de Delfos assim diz:

Gnosi seautón. A primeira palavra é um verbo. A língua grega antiga possui uma

quantidade de tempos verbais que as línguas atuais não possuem. Essa quantidade de

tempos verbais impõe dificuldades para o homem moderno. Ademais, não apenas outra

relação verbal distancia-nos do sentido desta palavra para os gregos, a mudança de

sentido está também na raiz da palavra e de seu contexto de significações. O radical da

palavra em questão é gen. Trata-se de uma extensa raiz de palavras, todas elas ligadas à

geração, nascimento. Mas também com significados para origem, linhagem e família.

Os gregos eram ligados à procedência familiar. Há toda uma significação desta raiz que

gira em torno da hereditariedade, e outros significados mais específicos para designar a

posse de terra, o senhor, ou mesmo para caracterizar o nobre, o afamado, e também o

camponês, o homem da terra. De modo tal, que o radical gen, ligado em seus diversos significados pela noção abstrata de produção, ao formar a palavra gignosko, está

também ligado a outra palavra: gignomai, vir a ser, tornar-se3

.

Contudo havíamos visto na passagem que abre as nossas discussões que

Nietzsche faz pouco caso da máxima de Delfos. Creio que há dois pontos a dizer acerca

disto. Primeiro: a citação da máxima aparece em latim. Ou seja, o helenista Nietzsche

não está tomando o problema desde as questões gregas propriamente, mas diante de

uma posterior interpretação da palavra grega, a tradução latina. Mas isso não nos dá

uma resposta suficiente. Não sabemos com isso se Nietzsche está ou não fazendo uma

menção a Sócrates e/ou a Delfos, pelo fato da máxima aparecer em outra língua, ou se

está questionando justamente as características imputadas pela posterior apreensão do

mundo grego. Isto nos conduz ao segundo ponto: o leitor de Nietzsche está habituado à

rivalidade dele com Sócrates. Sobretudo no que diz respeito à compreensão trágica da

vida. Disto, deduzimos, através da atribuição frequente da máxima de Delfos a Sócrates,

que Nietzsche está uma vez mais praticando a sua rivalidade.

Do que se trata a antítese que Nietzsche faz a Sócrates? Devemos reconhecer

que Nietzsche rivaliza com Sócrates em praticamente quase todos os seus livros.

Portanto, é uma crítica de extensão muito grande. Desde o mais jovem Nietzsche, na

universidade de Basileia, até às suas últimas obras. Talvez haja uma possível apreensão

mais geral que une o primeiro ao último livro, particularmente com relação a Sócrates.

E isto deve ter a ver com a compreensão trágica da existência.

Dizíamos acima que a tragédia não pode ser moral. Ora, aí já temos um

elemento suficiente pra compreender a rivalidade de Nietzsche. A figura de Sócrates é

reconhecidamente uma figura moral. Isto quer dizer que para além de um problema

geral da filosofia, Sócrates imputava a esta mesma filosofia um critério moral. A

pergunta pelo “que é” para Sócrates tem o valor prescritivo de uma moral. Ele se

pergunta pelo ser de alguma coisa (“o que é?”), geralmente coisas abstratas e

predicados, para saber como agir de acordo com a verdade dessa coisa. Essa colocação

fica mais interessante se lembrarmos que os diálogos socráticos geralmente terminam

em aporia. Sócrates não determinou o ser das coisas pelas quais perguntou, mas

determinou que devemos agir de acordo com a verdade desse ser. Assim, se afigura para

Sócrates, com relação ao bem, por exemplo, que mesmo não sabendo o que é o ser do

bem, alguma coisa distinta do mal ele é. Logo, ainda que em aporia, ele determina distinções que servem a uma moral. Agir em vista do bem ainda que não se saiba o que

é o bem.

A rivalidade de Nietzsche com Sócrates parte de uma compreensão trágica e não moral da vida. A questão aqui é opor então o trágico ao socrático.

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A sentença: Genói oíos essí matón, torna-te (faça-se) o que (qual) tu és, – eis

aqui o radical gen que tanto nos há a dizer. É certo que agora fique mais claro que a

aproximação entre a sentença de Delfos e a de Píndaro não são artificiais. O verso de

Píndaro é quase uma paráfrase do Oráculo. Se relacionarmos a segunda parte de ambas

as frases, percebemos que há semelhanças entre o “quem tu és” e o “a ti mesmo”. Há,

contudo, questões interessantes com relação a isso.

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Referências Bibliográficas

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Mots. Paris: editions Klincsick, 1977.

FINK, Eugen. A Filosofia de Nietzsche. Tradução de Joaquim Lourenço Duarte Peixoto.

Lisboa: Editorial Presença, 1983

HERÁCLITO. Fragmentos. São Paulo: editora Nova Cultural, 1996 (Coleção Os

Pensadores) Luciano Gomes Brazil

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Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche – 2º semestre de 2012 – Vol. 5 – nº 2

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: Prelúdio a uma filosofia do Futuro.

Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,

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_____. Assim Falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução de

Mário da Silva. São Paulo: editora Círculo do Livro, sem data.

_____. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Tradução, notas e posfácio de Paulo

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_____. A Gaia Ciência. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo:

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PINDAR. Olympian Odes & Pythian Odes. Edited and translated William H. Race.

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PLATÃO. Apologia de Sócrates. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996 (Coleção Os

Pensadores).

Recebido em: 23/05/2012 – Received in: 05/23/2012

Aprovado em: 27/07/2012 – Approved in: 07/27/2012

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Roberto Ávila afirma: "Na Grécia, Sócrates se deparou com a inscrição no templo de Apolo: "Conhece-te a ti mesmo". Impressionado com isso, resolve dedicar sua vida a investigar a fundo os próprios pensamentos. Há outra história, no templo de Apolo, lhe foi dito que ele era o homem mais sábio que já existiu. Contudo, convencido da sua ignorância a respeito de tudo, resolve verificar por si mesmo interrogando os homens que eram considerados mais sábios que ele a respeito da natureza do bem, do bom, do belo, da honra, da justiça. Acontece que toda vez que interrogava um destes sábios constatava que eles também não sabiam realmente nada acerca destas coisas, mas apenas acreditavam saber.

Por isso, admitiu ser seu lema: "Só sei que nada sei." E este era o pontapé inicial para cada discussão – do caminho da maiêutica - que travava com quem quer que fosse. Assim, ele se atribuía a função de mostrar, a quem quer que estivesse dialogando, que esta pessoa apenas acreditava saber algo quando, na verdade, não sabia.

Nesta época, na democracia, a espada cedeu seu lugar à palavra no momento da decisão. Os sofistas, peritos em oratória e retórica aos jovens em troca de dinheiro, despontavam como hábeis na palavra. Porém, Sócrates verificou que os sofistas ensinavam uma retórica vazia, dominada pela opinião deles, já que tanto fazia se o que era dito correspondia à crença na verdade.

Sócrates acreditava que, para reconhecermos alguém como belo ou como o seu contrário, o feio, existia a necessidade de que houvesse uma Ideia do Belo e que pudesse ser pensada por todos. Sem essa Ideia não poderia ser possível, segundo ele, termos opiniões particulares sobre a beleza ou sobre a feiura das pessoas. A beleza física é apenas uma representação, uma cópia que se corrompe com o tempo, da Ideia do Belo que nunca muda, que é sempre a mesma, e que habita em outro mundo: o mundo das ideias. Assim também ocorre com tudo o que se puder imaginar: a justiça, a honra, a felicidade etc. Cada conceito possui duas categorias: a existência sensível e a existência inteligível. A existência sensível é a que pode ser percebida com os olhos; mas a existência inteligível só pode ser percebida com o pensamento articulado pela Razão."

Então, existe um destino em “que as linhas do destino são traçadas e decididas para além da vontade dos homens ou dos próprios deuses"?

"O que equivale a conferir aporia (=Dificuldade lógica, sem solução. Retórica. Dúvida retórica, dúvida simulada pelo orador. ) à compreensão humana.”

(fonte: Luciano Gomes Brazil, Do “conhece-te a ti mesmo” ao “torna-te o que tu és”: Nietzsche contra Sócrates em Ecce Homo. IN: Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche – 2º semestre de 2012 – Vol. 5 – nº 2.).

http://tragica.org/artigos/v5n2/brazil.pdf

http://www.robertoavila.com.br/arquivos/literatura_periodos.htm

http://www.dicio.com.br/aporia/