Uma Lição de Valentia

(O meu primeiro conto)

Parte 1

Pedrinho, brincava no adro com outros miúdos. No círculo estavam uma dúzia de piões. Vagarosamente, o Carlos começa a enrolar a baraça em torno do pião feito de buxo, olhando de soslaio para os outros que, embevecidos, admiravam aquela beleza castanha, feita ao torno pelo seu avô.

Sim, era lindo aquele pião: a cabeça, com uma brocha de latão luzidio no cimo, dava-lhe um ar majestoso. Pequenos círculos salientes em volta da barriga, ajudavam no aperto da baraça, o bico feito de aço temperado fazia dele o terror dos piões. Quando lançado em disputa, adormecia a rodar, soltando um pequeno zunido, efeito das suas estrias e do equilíbrio perfeito. Já os outros tinham tombado e ele continuava a dormir, provocando a admiração de toda a miudagem.

Puxando o braço atrás, com um olho semicerrado a fazer pontaria, Carlos atira com força o pião e acerta de lado num que pulou, saltando uma lasca de madeira. Com o impacto, dois saltaram fora do círculo.

- Viva! Já tenho direito a mais quatro nicadelas!– Exclamou o Carlos.

Um dos piões era do Pedrinho, nada preocupado em levar com duas nicas do Carlos pois tinha outro que só servia para pôr no círculo ou levar as ferroadelas do castigo. O outro pertencia ao Ricardo, que ao ver a sorte que lhe coube, os olhos avermelharam-se-lhe com vontade de chorar, antevendo o fim do seu rico pião, pois as nicas dadas pelo Carlos, eram quase uma sentença de morte.

Sem coragem para ver o fim do seu companheiro de tantas horas de brincadeira, virou as costas e foi-se embora a choramingar.

- Mariquinhas, mariquinhas! - Gritam os miúdos em coro; só um é que não gritou, o Pedrinho que pensativo, via o Ricardo a afastar-se.

No outro dia, o Ricardo não apareceu no adro e o Pedrinho comentou:

- Se calhar não vem, por não ter pião…

- Também não faz cá falta nenhuma! É um cagarola. – Responde o Carlos

– No outro dia quando fomos nadar no tanque da tia Ermelinda, não foi capaz de saltar do muro e mergulhar!.. É mesmo um cobardolas.

O Carlos era o mais destemido de todos. Era ele que desafiava os outros para brincadeiras mais arrojadas, numa luta, ele é que decidia quem lutava com quem. Até o Pedrinho, o menino rico, filho do senhor capitão lhe obedecia. Todavia, quem nunca estava de acordo com uma aventura mais arriscada, era o Ricardo que gozava da protecção do Pedrinho. Por mais de uma vez, esteve para levar umas caroladas no toutiço, se não fora o Pedrinho que se metia logo no meio.

- Também acho que é um medricas. - Diz o Tónio da Azenha. – Vocês lembram-se do texugo que encontrámos na Levada de Cima e se alapou na gruta? Pois não atirou uma só calhoada ao bicho, dizendo que tinha pena? Pena uma gaita! O que tinha era cagufa.

Com a mirita à frente farejando o restolho do trigo, ia a rapaziada co-mandada pelo Carlos. De súbito, estacou ao reparar no movimento da cadela que abanando freneticamente o rabo, dava sinais de ter encontrado qualquer coisa. Com o dedo na boca, fez sinal para não fazerem barulho e com a outra mão traçou um círculo no ar, era a forma de dizer para rodearem de longe a cadela pois se levantasse alguma coisa, dificilmente escaparia à gana de seis varapaus. Ainda na semana passada tinham assim apanhado uma lebre. Uma lebre e um galo, como assegurava o Domingos, que levou com o varapau do Tónio da Azenha mesmo no meio do cocuruto, na ânsia de acertar na lebre.

- É malta!.. São perdigotos! – Grita o Carlos.

A ordem de cercar o que levantasse, foi esquecida e na ânsia de apa-nhar os perdigotos, era cada um por si. Aquelas pequenas aves ainda não voavam mas corriam a bom correr. A mirita com um na boca tinha ficado para trás, o Tónio da Azenha perdeu o dele, quando tropeçou num rêgo e andava de rabo para o ar a ver se o encontrava, o Domingos e o Zeca basculhavam um moroiço de palha. Lá longe, corriam o Carlos e o Pedrinho, o Ricardo ficara sem fôlego e sem perdigoto, quando se preparava para lhe deitar a unha. O malandrinho estancara de repente e retrocedera na sua fuga, deixando o seu perseguidor baralhado, Ricardo voltou-se para trás mas já não viu a ave.

- Acudam!.. Acudam! - Era a voz do Pedrinho a pedir ajuda.

Num ápice, estavam todos juntos do Pedrinho que a tremer, apontava para um poço e dizia:

- É o Carlos que caiu no poço e não veio ao cimo!

Todos se debruçaram mas não havia sinal do Carlos. Atarantados não sabiam o que fazer, o poço era muito fundo.

- Arredem!.. Corram a pedir ajuda – disse o Ricardo enquanto tirava as botas. - Pedrinho, tu ficas aqui, os demais corram, corram!

E sem mais atirou-se para dentro do poço. Durante uns segundos não se viu, depois veio à tona para encher os pulmões e voltou a mergulhar. Após uns momentos que pareceram ao Pedrinho uma eternidade, veio ao de cima com o Carlos preso pelos cabelos. Agarrou-se a uma fenda da parede e com o braço envolveu o pescoço do companheiro, num último esforço, para manter a cabeça do Carlos fora de água.

O primeiro socorro veio na pessoa do Coronel Campos, avô do Pedrinho que montado no seu cavalo passeava por ali e ao ouvir os gritos dos rapazes, acorreu junto do seu neto. Espreitou para o poço e gritou para animar o Ricardo.

- Aí meu valente! Aguenta só mais um pouco que eu já vos tiro daí.

O Coronel Campos fez um laço numa corda de algodão que transportava sempre consigo na sela e atirou-a para dentro do poço.

- Ricardo! Vê se consegues passar o laço por debaixo dos braços do teu amigo.

Com dificuldade, o Ricardo conseguiu fazer o que o senhor Coronel lhe pedia e pouco depois, o Carlos já estava a ser reanimado.

Novamente a corda e o Ricardo a ser também içado, a tempo de ver o Carlos dar sinais de vida… Pedrinho mirava o Ricardo, como se nunca o tivesse visto.

No outro dia, o Pedrinho, comentava com o seu avô:

- Avô, como sabe, sou muito amigo do Ricardo e eu pensava que o conhecia bem, porém, ontem surpreendeu-me, a dar ordens e a mergulhar sem pensar que poderia também lá ficar. Antes era o mais mole de nós, sempre a esquivar-se a brincadeiras mais perigosas, todos o gozavam e o Carlos era o pior. Quem haveria de pensar que tinha tanta coragem!

- Tal qual o avô. – Disse sorrindo o Coronel.

.(continua na lição de valentia parte 2)

Lorde
Enviado por Lorde em 07/04/2013
Reeditado em 12/04/2013
Código do texto: T4227762
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