[Original] Volver - Capítulo 6 - Parte 2
Capitulo 6 – A ação, a reação e o ciúme. – Parte 2
Demétri Scholz
Quando meu carro estacionou em frente à casa da minha avó, fitei Bruna que dormia de forma serena no banco ao lado. Os cabelos pendiam pelo rosto fino e ela tinha uma expressão de pura paz.
- Bruna. – Murmurei, brincando com uma mecha solta de seu cabelo.
- Hmmm... – Ela abriu os olhos lentamente.
- Chegamos!
- Ai meu Deus!! Ai Meu Deus!! – Bruna se ajeitou na cadeira e começou a mexer em sua bolsa tirando uma necessaire de tamanho médio. – Porra, porque tu só avisas quando já chegamos?
Eu arregalei os olhos assustado.
- Bah, me desculpa, tu estava dormindo!
Ela me ignorou e continuou tirando um monte daqueles cacarecos femininos que eu desconheço totalmente. Eu observei entre a surpresa e o medo, Bruna se maquiar em 10 minutos.
- Nossa...
Bruna jogou o cabelo para o lado esquerdo, deu uma mexida na franja, passou a mão pelo vestido e sorriu.
- E aí?
- Mulher é mesmo uma coisa de louco.
- Também acho.
E mesmo que não estivéssemos ali como namorados, por hábito, acabamos entrando de mãos dadas. Só quando passamos pelo longo corredor que dava passagem ao quintal, nós paramos e demos atenção ao que estava acontecendo.
- Hã... – Ela olhou para nossas mãos entrelaçadas. Na hora eu me soltei. Com certo desgosto, admito. – É.
- É.
Antes de qualquer coisa, veja bem, eu gosto da minha família, aliás, eu amo a minha família, mesmo que existam alguns tipos que se eu pudesse excluir do convívio familiar, faria isso facilmente.
Quando cruzei o quintal, todos estavam reunidos ao redor da enorme mesa quadrada ouvindo minha avó Julia falar. O cenário poderia ser de um filme americano: um quintal bonito e florido, com direito a árvore frutífera e cercas de madeira como proteção. Sem contar a enorme lago do lado. Era o melhor lugar do mundo. Claro que o melhor lugar do mundo não é habitado pelas melhores pessoas do mundo.
Enquanto caminhávamos até eles, fui invadido por uma inevitável sessão nostálgica.
Olhei para meus dois primos, Ana e Ricardo. Gêmeos órfãos e bivitelinos que não só tem por característica a aparência diferenciada, mas a personalidade também. Ricardo sem dúvidas é o meu maior desafeto familiar, e não é pra menos. Ana é lésbica assumida. Ainda lembro do dia em que me abraçou e disse “não tenha medo de sair do armário”. Foi hilário. Tabata (prima de segundo grau que eu já tive um rolo bastante massa), Alex (o mala sem-alça que vive as custas do dinheiro de seus pais, mesmo tendo 25 anos), Jordana (que é considerada a louca da família), Marcelo (o guri certinho que todos os familiares adoram... Menos eu), Camila (a mais sensata de todos). Todos meus primos. Vi também meus tios, Sandra e João, que são nada mais, nada menos que o famoso casal fofoqueiro da família. Do lado esquerdo da mesa, próximo a minha avó, estava minha mãe. Do outro, várias crianças. Enfim, muita gente.
- Meu querido! – Ao me ver, minha mãe correu disparada até mim. – Que saudades, filho!
Aquele momento constrangedor que sua mãe te enche de beijo, abraço, apertão e faz você se sentir com 5 anos de idade.
- Mãe, calma. – Ela sorriu me vendo tão constrangido.
- Bruna, quanto tempo! – E abraçou minha ex carinhosamente. – Tu continua linda, sério! E incrível como vocês ainda parece aquele mesmo casal de antigamente.
E mãe que é mãe sempre faz um comentário que constrange o filho.
Percebendo nosso desconforto, ela puxou Bruna pela cintura e a apresentou a cada um dos meus familiares. Atrás dela eu ia cumprimentando a todos. Quando chegou a vez de Ricardo, me limitei a um aceno de cabeça.
- Ricardo.
- E aí cara. – Ele se aproximou e disse num tom que só eu pudesse ouvir. – Contratou essa aí pra fingir que é tua guria?
Ana revirou os olhos e deu um “pescotapa” no irmão.
- Sim, paguei caro, mas bah, vale a pena.
Eis ai a história que por muitos anos foi tema das reuniões familiares aqui em Pelotas: minha sexualidade. Seria até ofensivo se não fosse cômico.
Tudo começou há 8 anos, quando eu vinha passar as férias escolares aqui em Pelotas e meu primo era mais que meu amigo, era o irmão que eu nunca tive. Aos 14 anos você começa a descobrir o mundo, as festas e as gurias. Numa dessas festas eu conheci a Eduarda, minha primeira “namoradinha infanto-juvenil”. Namoramos por pouco tempo, pois Ricardo deu um jeito de acabar com nossa relação.
Ele era louco por ela e não era correspondido, o que gerou nele uma inveja sobrenatural de mim (e isso se estendeu por vários anos e com qualquer guria que eu me envolvesse.), mas como eu desde pequeno fui um guri reservado e nunca apresentei namorada alguma aos familiares, meu primo se aproveitou disso e soltou uma simples mentira que durou por anos na família: Ele disse que eu era gay.
Eu demorei pra descobrir que ele fizera isso, e quando isso aconteceu foi a primeira vez que senti o gosto amargo da decepção, mas nada que uma boa surra nele não dissipasse meu ódio.
- Porque todos estão me olhando como se eu fosse um alien? – Bruna sussurrou ao meu lado.
- Porque eles acham que eu sou gay. – Respondi, no mesmo tom.
Ela arregalou os olhos castanhos.
- É, eu sei. – Concordei com seu espanto mesmo ela não tendo dito nada. – Não que eu me ache na obrigação de provar algo pra qualquer um deles que não seja a minha mãe, mas... Tu concordas que isso é ridículo, não?
Bruna engasgou com ao notar a malícia em minha pergunta.
- Vou fingir que nem ouvi isso. – Disse, fingindo-se de ofendida. Eu a abracei pela cintura e beijei o topo de sua cabeça. – Depois quero entender essa história.
- Tá bom.
Bruna interagiu bem com meus familiares. Ela era simpática e tinha uma presença que impressionava a todos, sem contar o fato de gostar de conversar sobre tudo, o que encantou aos meus primos, inclusive Ricardo.
- É tua namorada, querido? – Minha avó me perguntou, enquanto eu observava com um sorriso irônico, Bruna conversar com meu primo na beira do lago.
Eu a fitei com um sorriso de canto. Mesmo sabendo que ela sempre defendeu Ricardo em nossas brigas por um motivo que não considero justo – Ricardo e Ana são órfãos, ela os criou e os trata como se fossem de louça - eu considerava minha avó uma segunda mãe.
- Ex.
- Bah! Vocês não parecem ex. – Eu tentei não me irritar com aquele comentário que de fato é verídico e dito por 99% das pessoas que nos conhecem.
- É, mas somos.
- Eu disse o mesmo a eles mamãe. – Fitei minha mãe de cara fechada. Ela trazia algumas travessas de vidro com comida. O almoço hoje seria no quintal. – Não me olhe assim. E invés de ficar ai de cara, vá lá buscar tua guria.
- Não é minha guria. – Retruquei, frisando bem o pronome de posse.
Minha mãe me lançou um olhar bastante sério e significativo, além de apontar para onde Bruna e Ricardo estavam. Ela não gosta dele.
Me aproximei dos dois em passos lentos. Eu sabia que esse flerte dele com ela era pura provocação e mesmo que eu não me importasse (não mesmo) eu não podia ficar calado diante disso.
- Vista bonita né? – Sentei-me ao lado de Bruna, ela sorriu e me beijou na bochecha.
- Eu amei aqui.
- Tava contando que a gente costumava nadar muito aqui quando éramos pequenos. – Ricardo contou, fazendo-me balançar a cabeça em concordância. Eu o fitei com o cenho franzido. – Bom, acho que a Tabata está me chamando.
Ela não estava. Se tivesse, eu ouviria. Ricardo tinha notado que eu queria ficar a sós com Bruna.
- Ceninha de ciúme bonita. – Ela disse, após Ricardo sair. – Desnecessária, mas bonitinha.
- Te cala. – Cruzei os braços e olhei o horizonte. Era mesmo um lugar impressionante.
- O que foi?
- Bah, nada. Só quis sentar aqui ao teu lado.
- Marcando território. – Revirei os olhos e deitei sob a grama fresca. – Assume que tá com ciúmes.
- Jamais.
Bruna se ajeitou ao meu lado e sua proximidade tão tentadora me perturbou. Não que eu não estivesse acostumado com tudo aquilo, não que o fato de nós parecermos um casal querendo ou não já fosse
normal, mas ainda assim me perturbava.
Seus cabelos caíram por cima do meu rosto e ela os tirou com delicadeza. Toquei sua bochecha e a puxei levemente. Bruna não se afastou, não fez nada além de corresponder. E quando seu cheiro me fazia acreditar que eu precisava daquilo mais do que qualquer coisa, minha mãe berrou que o almoço estava na mesa.
Ah! Que saudade da família.