Romeo -Capítulo 1.

Bom, depois de tanto tempo, decidi voltar ao Recanto das Letras e retomar a antiga história que eu havia começado. Desta vez, decidi juntar todas as partes que eu havia aqui publicado e acrescentei algumas partes novas, mas ainda não completei o longo capítulo 1. Espero que quem ler possa apreciar um pouco a minha escrita, e se gostar do que leu peço que deixe um comentário : D . Agora que voltei a escrever gostaria de um incentivo a mais. Abraço a todos e boa leitura!

Prólogo

Eu não sou um macaco.

Esta é a primeira coisa que você precisa saber sobre mim.

Sei que pode ser um jeito estranho e até mal-educado de se apresentar, mas não me leve a mal: eu apenas estou poupando o seu tempo, já que todos que me conhecem pela primeira vez fazem esta pergunta, alguns intimamente, alguns de forma direta.

Quero dizer, pelo menos por dentro eu não sou um macaco. Por fora, qualquer um pensaria estar na frente de um simples chimpanzé... Sim, um chimpanzé, aquele primata encontrado nas florestas e savanas africanas, ou naquele zoológico decrépito da sua cidade. Agora, porquê exatamente eu me pareço com um, esta é a pergunta que me fiz durante toda a minha vida, e que só há pouco obtive a resposta.

Esta é a história de como eu soube de toda a verdade, e de toda a inusitada aventura em que me meti até descobri-la.

Capítulo 1

Confusão na Joalheria

Deixe me apresentar direito.

O meu nome é Romeo. Romeo Belafonte. Tenho 16 anos, e sou como qualquer garoto por aí. Gosto de videogame, de música e, claro, ficar de bobeira na internet.

Quer dizer... pelo menos eu ajo como um garoto normal de 16 anos. Por que, como vocês já sabem, a vida resolveu me pregar uma peça de gosto muito duvidoso e eu, ao invés de me parecer como você ou qualquer outra pessoa no mundo ( partindo do pressuposto de que o leitor não seja nenhum dos mestiços espalhados pelo mundo), tenho o visual peculiar e desengonçado de um chimpanzé.

Sei que talvez esteja curioso para saber o que eu sou –uma aberração genética, talvez?-, mas antes de chegarmos a este ponto, que está reservado para a parte final deste meu relato, foquemos por enquanto no fatídico dia em que a minha vida sofreu a ruptura que, talvez, estivesse há muito escrito nas estrelas para acontecer. Acredito nestas coisas de Destino agora, depois de tudo que vivi. Aliás, passei a acreditar em tanta coisa que às vezes até me surpreendo...

Bem, tudo começou em um dia ensolarado no meio do verão mais quente que já tive o desprazer de vivenciar.

Acordei tarde, como era de praxe aos sábados, quando não precisava levantar às sete para me submeter às sempre tediosas aulas do Sr.Torres, o meu professor particular, e depois de ficar um tempão olhando para o teto, refletindo se valia mesmo a pena sair do conforto da cama para encarar aquele dia quente e preguiçoso, me arrastei como um zumbi de filme de terror B para o banheiro. Um zumbi preto e peludo, com um péssimo humor ao acordar.

Estava a meio caminho quando algo me chamou atenção pela janela.

Meu estômago queimou de repente. O carro do filho do meu vizinho estava estacionado na entrada do jardim dele; um carro das antigas, todo reformado e reluzente, que certamente devia valer uma pequena fortuna, mas que me fazia ranger os dentes toda vez que o via. O motivo? Por que ele significava que o filho do Sr. Roland, aquele inglês pão-duro e mal encarado que insistia em me olhar como se eu tivesse acabado de pular do caminhão do circo, estava a visitá-lo, com sua trupe de metaleiros, e passariam a tarde toda enfurnados no antigo quarto do rapaz, tocando o tipo de som que me faz querer arrancar os tímpanos.

Revirei os olhos e me afastei rapidamente da janela. O dia já não tinha começado bem.

Depois de utilizar o banheiro (aproveitando para lavar bem o rosto para acordar de vez), desci para tomar o café da manhã. Olhei no relógio da sala, em cima do console da lareira: eram 07:30. Com sorte encontraria meu pai ainda na cozinha, comendo aquele tipo de comida integral que ele tanto gostava. Depois da ameaça de enfarte na primavera passada, ele passou a ficar obsessivo com a saúde e boa forma, e comprava todo o tipo de livros e manuais imagináveis sobre o assunto. Quando voltava do supermercado, com a compra do mês, metade das sacolas vinham recheadas de coisas que indicavam conter menos sódio, calorias, açúcar ou qualquer outra dessas baboseiras alimentícias que bastavam para me fazer perder o apetite. Fora que, para mim, estas comidas saudáveis tem um gosto horrível! Mas gosto é gosto, não é?

Entrei na cozinha e lá estava ele, com seus braços musculosos recém-adquiridos se destacando de sua camisa regata com padrão do exército, já pronto para a sua habitual corrida pós-café. Estava lendo The London Times e comendo uma torrada light com geléia light, com um saudável copo de iogurte light ao lado (ugh!). Ao me ver, sorriu e fechou o jornal.

- Oi filho, como vai? –perguntou ele, puxando a cadeira ao lado para eu me sentar.

-Bem... –respondi, ainda com resquícios do meu mau humor matutino.

- Aceita uma torrada com geléia? É aquela de uva que falei que estava difícil de encontrar. Achei duas embalagens ontem no empório do Sr. Roland.

Nem precisei dizer nada. Pela minha cara de macaco entediado ele deduziu qual era a resposta.

Um longo silêncio se seguiu, no qual meu pai reabriu o jornal e eu me servi das coisas que realmente valiam a pena ali na mesa. Graças a Deus que Helena, a cozinheira, sabia que nem todas as pessoas na casa estavam dispostas a evitar um ataque cardíaco. Por essa razão fazia as panquecas, omeletes e vitaminas que eu mais gostava, e eu, com meu apetite adolescente, devorava tudo até o último átomo.

Alguns minutos de comilança selvagem e desesperada se seguiram até que meu pai finalmente quebrou o silêncio. Pensei que ele ia me aconselhar sobre calorias, ou ralhar diante da minha total falta de etiqueta à mesa; mas o que ele disse me pegou totalmente de surpresa.

-Filhão, é o seguinte: preciso da sua ajuda. Hoje é o aniversário de casamento meu e da sua mãe, e queria fazer uma surpresa para ela.

-Hã, mas que tipo de surpresa? –indaguei, tentando imaginar algo bom o suficiente para que minha mãe pudesse se surpreender, nas atuais conjunturas.

-Bem... – Ele me passou o jornal que estava lendo, aberto em uma página específica. –Acabei de ter a idéia, na verdade. Olhe.

O que ele me mostrou não era um anúncio, como se podia esperar. Era uma matéria, mesmo, cujo título era: JOALHERIA LUX-MARION ABRE SUA PRIMEIRA LOJA NA CIDADE, COLOCANDO À VENDA RARÍSSIMO COLAR DE 1 MILHÃO DE EUROS. Tudo em majestosas letras garrafais. Quando terminei de ler o título quase engasguei. Por acaso o meu estimado progenitor enlouquecera de vez?

-Pai, não me diga que quer comprar este colar para a mamãe! Faça-me o favor...

-Fala baixo! –exclamou ele, chegando mais perto. – Não quero que sua mãe nos ouça.

- Pai –disse eu, afastando o jornal o máximo que pude dele.- Sei que vocês merecem ter um aniversário de casamento memorável e tudo o mais, principalmente depois de tudo o que aconteceu entre vocês. Sei que quer reconquistar a mamãe. Mas um presente desse é um absurdo! Sabe quantas pessoas no mundo não tem um tostão nem para comer?

-Sei –disse ele, surpreso e visivelmente desapontado. Ele devia estar esperando uma reação mais positiva da minha parte.

De repente, fiquei com um pouco de pena dele. Eu entendia a sua posição: a de um homem que cometera um enorme erro matrimonial, e que queria restabelecer o casamento. Eu senti subitamente que precisava apoiá-lo nesta tarefa, mesmo em um ato de capitalismo imprudente como aquele.

-Bom, pai, quer saber, o dinheiro é seu, você trabalhou a vida inteira para tê-lo, e faz o que quiser com ele. Pelo menos é por uma boa causa. Acho que mamãe vai adorar. Então, estou dentro!

O rosto dele se iluminou de felicidade.

-Que ótimo! Então me acompanha até a joalheria? Depois, que tal uma tarde de pai e filho, topa? – Ele finalizou, com uma piscadela cúmplice.

Claro que mais cedo ou mais tarde ele viria com essa história. Sair. Eu raramente saia de casa quando não estritamente necessário, mesmo me sentindo tentado às vezes. Tenho meus motivos, claro, mas meus pais insistiam em forçar as coisas.

-Pai, você já deve saber a minha resposta...

-Não seja tão insensível, filho, hoje é dia de festa. Faça por mim! Prometo que compro tudo o que quiser na loja de videogames.

Fingi pensar por um momento, só para bancar o difícil mesmo. Droga, ele havia me deixado sem escolha. Não pelos jogos novos, apesar de esta ser uma oferta realmente tentadora, mas, sim, porque eu precisava ficar do lado dele, agora que finalmente parecia ter encontrado um jeito de se reaproximar da minha mãe. Não sei se sou um bom filho, mas deve ser isso que um faria. Esbocei um sorriso amarelo e então concordei, jogando as mãos para cima, como que me rendendo.

-Você venceu, pai. Vamos lá comprar essa droga de colar antes que você enfarte de novo.

Ele soltou uma risada gostosa e se levantou rapidamente.

-Então está combinado. Agora preciso correr um pouco para queimar as calorias do café, e depois vou dar um pulo no escritório. Uma das advogadas que contratei está dando problemas e preciso decidir o que fazer com ela. Depois, umas três da tarde, venho te pegar, portanto esteja pronto. Não conte nada a sua mãe, heim.

E então saiu da cozinha, me deixando sozinho com aquelas assustadoras torradas integrais.

*******

Eu tinha um grande desafio pela frente: o que fazer até o meu pai voltar?

Sério.

Superando até as minhas expectativas mais pessimistas, minha vida nos últimos tempos havia atingido um nível tão sofisticado de tédio que me fazia bocejar a cada dois minutos. Talvez algumas pessoas pensem que deve ser difícil se enfadar com a vida quando se é alguém preso no corpo de um macaco, mas, no meu caso, este fato sempre foi o começo, o meio e o fim de quase todos os meus problemas e chateações. E pode apostar: a longo prazo, isto não é nada legal. Fica a dica.

Eu seria um completo mentiroso se dissesse que nascer desta forma e crescer cercado de “pessoas normais” não me afetou. Claro que afetou - e muito! Naquele momento, fazendo uma breve análise pessoal, eu não poderia me considerar exatamente o que se chamaria de um ser sociável, afeito à festas, baladas, saídas com os amigos e tudo mais. Minha psicóloga, a Sra. Carlung, certa vez me disse que eu me tornei um jovem complexado, e que devido aos traumas adquiridos de uma vida inteira de conflito com a minha aparência eu ergui uma barreira em volta do meu coração, que me impedia de me aproximar e construir um relacionamento, por mais simplório que fosse. Fiquei muito bravo com ela na época, principalmente porque detesto a palavra “complexado”; achei que ela estava apenas exagerando, o que acredito ser uma tática usada pelos psicólogos para nos fazer pensar que realmente precisamos de sua ajuda. Mas depois de muito refletir, cheguei à conclusão de que talvez ela tivesse um pouco de razão, afinal de contas. É, eu havia me tornado um cara fechado. Mal humorado. E tinha um único amigo: um mestiço, também, chamado Tony, ao qual em breve o leitor será apresentado. Tudo teria sido tão fácil se desde pequeno eu fosse como ele! Tony é um caso a parte para mim, e nunca ligou a mínima para o fato de se parecer com um macaco-prego. Joga até banana nos outros quando está em um dia ruim, veja só!

Sei que pode soar até um pouco inacreditável o que vou dizer agora, mas a verdade é que eu demorei bastante para descobrir que era diferente das outras crianças. De verdade: nunca frequentei creches, escolas (só uma vez, e detestei a experiência...), e, pasme, até os cinco anos de idade eu nunca havia visto sequer um único macaco, fosse na televisão, em revistas, jornais, ou qualquer outro meio; meus pais foram bastante rígidos com relação a isso, com a intenção de não me deixarem sentir diferente. Optaram, portanto, por me educar através de um professor particular (o Sr. Torres), que fora professor do meu pai no primário e era um velho amigo da família.

Claro que a esta altura, aos cinco anos, eu já sentia vagamente que havia algo de errado comigo, já que não me parecia com meus pais e nem com nada que já tivesse visto. Mas para que ligar para estas coisas quando se tem tantos brinquedos legais à disposição?

Foi quando, de repente, tudo mudou. Como num passe de mágica.

Consigo lembrar como se fosse hoje aquele dia, há tantos anos, em que vi pela primeira vez a foto de um macaco. E para minha infelicidade, também a primeira vez que topei com o Dr. Sharpe.

Foi em um famoso Hospital aqui em Londres. Meus pais haviam marcado uma consulta com ele, um cara renomado, com diversos artigos publicados em respeitáveis publicações científicas sobre casos raros da pediatria , e que tinha um jeito engraçado de falar, como se vivesse com duas maçãs alojadas dentro da boca. Seu nome completo era Marcus Sharpe. Um pilantra de marca maior, como descobriríamos tarde demais.

Esta havia sido a primeira vez que eu saíra para um lugar público como um hospital, e bem no dia mais cheio do ano, a maioria das pessoas pegas de surpresa por uma virose nova que se espalhara na cidade. Não preciso nem dizer o quanto causei ali, um pequeno chimpanzé-menino de cinco anos entrando de mãos dadas com um homem e uma mulher e se sentando na fila de espera.

-Mãe, por que tão todos olhando pra gente? –lembro de ter perguntado, baixinho, acanhado.

-Por que eles nunca viram um rapazinho tão bonito quanto você –ela respondeu, me pegando no colo. Acho que para sempre lembrarei dela dizendo isto, e de como tudo pareceu fazer sentido para mim.

Depois de bilhões de minutos na sala de espera, cercado de olhares curiosos, cochichos espantados e narizes escorrendo, enfim o médico resolveu chamar o meu nome.

-Romeo Belafonte!

Nós nos levantamos depressa e andamos até ele, que aguardava na porta, me observando atentamente com uma expressão muito gozada no rosto, algo entre chocado e maravilhado.

-Por favor, entrem – disse ele, abrindo caminho e desviando o olhar de mim somente para dar uma rápida checada na horda de pequenos catarrentos que ainda teria de atender naquela tarde.

A sala dele não era muito grande, mas lembro que tudo ali era imaculadamente branco, limpo e bem arrumado. Minha mãe tem mania de limpeza e arrumação (às vezes tão excessiva que chego a pensar ser um T.O.C dela), mas aquele médico ali devia ser neurótico. Não havia uma única folha de papel fora do lugar. As paredes, brancas como houvessem sido pintadas naquela manhã, tinham uma série de pequenos quadros coloridos entre as estantes de livros, o único toque alegre do ambiente, alinhados de modo tão milimetricamente correto que chegava a ser perturbador. Havia também alguns potinhos de vidro na mesa, todos devidamente etiquetados com nomes como “Algodão” e “Palitos” –este último aqueles malditos pedaços de madeira que os médicos adoram colocar na nossa goela só para nos deixar com vontade de vomitar. Observei tudo com muita curiosidade, até que ele se sentou em sua poltrona com um baque surdo e resolvi que era hora de prestar atenção.

-Boa tarde Sr. e Sra. Belafonte, que prazer tê-los finalmente aqui –ele começou, com sua voz entalada, visivelmente ansioso. Seus olhos não desgrudavam de mim, e isso estava começando a me irritar. Fechei acara. - E você, pequeno Romeo, como vai? –Ele se esticou para frente na mesa e me estendeu a mão, para que eu a apertasse. Eu não apertei.

-Fale comigo, vamos? Mostre o rapazinho educado que você é.

-Eu não sou educado! –eu respondi, cruzando os braços.

Ele arqueou as sobrancelhas e voltou a atenção para os meus pais. Parecia satisfeito com a minha resposta.

-Pois bem, senhores. Primeiro, peço desculpas; eu simplesmente não pude agendar uma consulta particular para o pequeno aqui. Estou totalmente sem horário disponível por esses tempos. É consulta, palestras , aulas no Imperial College... Se continuar assim vou ter de agendar até as minhas refeições!

Meus pais riram, mas percebi que estavam nervosos. Podia sentir a tensão entre eles.

-E também –ele continuou-, devo ser sincero ao dizer que até ver vocês ali na fila de espera há poucos minutos eu não acreditava que estavam falando sério. Quero dizer, o rapazinho é um caso raríssimo na medicina, e...

-Espere! –interrompeu a minha mãe de repente, tão alto que eu quase pulei no ventilador de teto. Meu pai, à época ainda bem pançudo, se inclinou para frente, também aturdido. –O que o senhor quer dizer com “um caso raro”? -prosseguiu ela.- Pensei que ele era o único!

-Não, ele não é –disse com firmeza o Dr. Sharpe, e com um movimento rápido sacou um notebook de uma das gavetas de sua reluzente mesa branca.

O doutor levantou a tampa do computador, digitou algumas coisas e então disse:

-Quando vocês me ligaram, há três dias, como eu disse, pensei que fosse um trote. De verdade, a história de vocês é de fato incrível. Um menino humano, com a aparência de chimpanzé: não é algo que se ouve todo dia! Juro que estava quase a desligar quando, então, lembrei de um artigo que havia lido há muitos anos, ainda na faculdade. Em resumo, o artigo era uma compilação de relatos sobre um raro caso em que bebês animais nasciam de mães humanas. Os relatos datam do começo do século 18 até o fim da Primeira Guerra Mundial, e na verdade são tão inacreditáveis que eu apenas li por que sempre fui muito curioso. E justamente devido à minha inexcusável curiosidade que fui compelido a marcar a consulta, mesmo sabendo que podia ser algum tipo de piada.

Ele deu uma pausa dramática desnecessária e continuou:

-Fato é que, ao desligar, perdi toda a longa noite de sono que havia planejado pesquisando sobre o assunto na internet. Como a senhora me disse por telefone, Sra. Belafonte, a senhora havia feito muitas pesquisas particulares sobre o assunto, inclusive na Rede, mas compreendo por que teve tanta dificuldade para encontrar algo a respeito -é um assunto muito obscuro, e acho que estava procurando da maneira errada. Eu mesmo levei algumas horas até finalmente encontrar algo, uma página que continha exatamente este artigo que falei. Trata-se de um fórum sobre casos... bem, casos bizarros da medicina. E qual não foi a minha surpresa ao ler os comentários do fórum! A maioria era bobagem de adolescentes, que adoram escrever besteira na internet, mas dois deles me soaram particularmente curiosos. Ao que parecia, duas pessoas afirmavam ter amigos de aparência animalesca: um deles, um rapaz indiano chamado Abhay, aparentemente nascera como um lobo, e Tony, um garoto brasileiro, nascera como um macaco-prego. Resolvi, diante disto, entrar em contato pelos e-mails que eles forneceram no site. O que obtive destes contatos foi, digamos... muito interessante...

Desta vez a pausa foi para procurar alguma coisa dentro do computador. Aproveitei e olhei para os lados, paras os meus pais. Eu, particularmente, não estava entendendo droga nenhuma do que aquele doutor maluco estava dizendo, mas eles pareciam estar, inclinados para frente como se fossem alunos em uma importantíssima aula de revisão antes das provas finais. Nunca tinha visto minha mãe tão calada deste jeito, então supus que a coisa deveria ser séria. Mas não me importava: eu só queria era sair daquele lugar estranho com aquele doutor mais estranho ainda e voltar para casa para jogar videogame.

Com um pigarro, o doutor prosseguiu:

-Bem, aqui eu acho que preciso fazer uma pergunta a vocês, Sr. E Sra. Belafonte. Por telefone, vocês me informaram que nunca haviam permitido que Romeo tivesse acesso à imagens, seja na internet, em livros, ou até mesmo na televisão, que o fizessem perceber com o que ele de fato se parece. Na verdade eu compreendo o cuidado de vocês, a preocupação de não fazê-lo se sentir diferente das outras crianças, e coisa e tal. É uma atitude muito positiva e mostra o quanto vocês o amam. Mas, por outro lado, do meu ponto de vista, acho que ele já está grandinho o suficiente para começar a compreender certas coisas. Por isto a pergunta: os senhores me autorizam a mostrar algumas fotos a ele?

Um silêncio completo baixou como uma névoa no consultório. Meus pais pareceram gelar, e se entreolharam com olhos comicamente arregalados. Eles não estavam muito falantes naquele dia. Entre eles, percebi, havia algum tipo de comunicação com o olhar, e então depois de alguns segundos minha mãe concordou com a cabeça.

-Sim, doutor, pode mostrar para o Romeo a verdade. Acho que eu e Jorge fomos longe demais com essa história de protegê-lo. De qualquer forma, mais dia, menos dia, a vida se encarregaria mesmo disto. –Sua voz de repente soou embargada, como se ela estivesse segurando para não chorar na minha frente.

-Então está certo. Vai ser melhor desta forma.

E com mais um gesto rápido ele virou a tela do computador para mim.

Deste momento eu me recordo com certa vergonha hoje em dia, assumo, já que foi uma das poucas vezes em que deixei meu lado símio aflorar. Pois no momento em que vi pela primeira vez a foto de Tony, peludo e fazendo uma careta para a câmera, eu me enxerguei nele, eu compreendi que de fato eu era diferente e que ele era igual a mim, e comecei a pular na cadeira, gritando e apontando para aquilo como se tivesse feito a descoberta mais fantástica do universo. Eu nunca havia visto um macaco na vida, e obviamente já havia me visto no espelho. As semelhanças eram óbvias.

-Mãe, mãe, olha, ele é igual a eu! Ele é igual a eu! –eu disse, gritando, histérico.

Minha mãe, coitada, já estava chorando, e meu pai a estava consolando. A cena parecia tirada de algum bizarro dramalhão mexicano.

-É sim, Romeo, ele é bem parecido com você –disse o Dr.Sharpe, com um sorriso.- O nome dele é Tony e ele mora em um país bem longe daqui. Vocês se parecem muito, ele também é um garotinho muito legal, pelo que conversei com os pais dele. Ele gosta muito de videogame também. Você gostaria de conhecê-lo algum dia?

-Doutor, já chega por hoje! –exclamou meu pai, que pareceu finalmente ter readquirido a língua. – Acho que já houve emoções fortes o suficientes para um dia, e a Estella precisa tomar um copo de água com açúcar. Não podemos marcar uma consulta para a semana que vem?

Dr. Sharpe pareceu desapontado.

-Tudo bem, Sr. Belafonte. Tudo bem. Agora que sei com o que estou lidando, posso começar as minhas pesquisas sobre esse caso, e espero poder ajudar a entender melhor o Romeo. Vai ser um longo caminho, tortuoso, mas estou muito excitado para percorrê-lo. Um caso desses... nas minhas mãos!

-Só que o senhor se recorda do que eu e minha esposa dissemos, não é? –advertiu meu pai, sério.

-Sobre não contar sobre Romeo e a situação dele a ninguém? Podem ficar tranquilos, eu sou muito zeloso com relação ao sigilo da minha profissão. E garanto que as minhas pesquisas ficarão somente entre os interessados, e apenas serão dirigidas por mim.

-Assim esperamos!

Meu pai nunca falhou tão miseravelmente em confiar em alguém.

*******

A bomba explodiu no inverno daquele mesmo ano.

Três longos meses já haviam se passado, desde a fatídica consulta no hospital, e durante este tempo muitas coisas aconteceram. Boas e ruins. Já de cara posso citar a pior: os meus pais, mesmo com as minhas birras e protestos, resolveram estabelecer uma tediosa rotina de me levar uma vez por semana até o Dr. Sharpe, para que ele me analisasse, fazendo medições e mais medições no meu corpo, me pesando e coisas do gênero. Ele anotava tudo com uma expressão séria e compenetrada, e ao final soltava algum comentário esperançoso que mantinha os meus pais gratos por seu esforço científico e boa vontade –até o meu pai, no começo relutante quanto a confiar o meu problema a um estranho, estava agora satisfeito com as parcas informações que o doutor lhes fornecia em doses homeopáticas.

Era incrível como eles absorviam tudo o que ele falava como esponjas, e ainda diziam amém no final! Não reparavam na estranheza daquelas medições que não faziam sentido, na falta de respostas ou de pelo menos alguma informação concreta sobre o desenrolar da pesquisa e, principalmente, não percebiam aquele brilho suspeito nos olhos dele do qual me lembro muito bem e que hoje, sem a visão inocente de criança, me parece um sinal claro de que as coisas não poderiam ter ocorrido de forma diferente. Meus pais são duas das pessoas mais inteligentes que conheço –e sem puxa-saquismo, já que odeio isso-, mas, infelizmente, o Dr. Sharpe foi mais, e conseguiu envolvê-los de um jeito assombroso. A promessa de poder entender o que acontecera comigo para eu nascer feito chimpanzé retirara boa parte do bom-senso deles, e os transformou em alvos fáceis para sua mente tentacular e vil.

Do meu lado da história, eu, uma criança de cinco anos na época, simplesmente não tinha a dimensão do que de fato estava acontecendo. Eu só queria jogar a droga do meu videogame em paz, ao invés de ter de me submeter àqueles patéticos exames. Para piorar, eu não tinha ido com a cara do Dr. Sharpe desde o primeiro momento, e a minha impressão piorava a cada tedioso encontro.

A única coisa boa que aquele pilantra fez neste período antes de nos bombardear foi ter me apresentado a Tony. Sim, posso dizer com toda a certeza do cosmos que foi amizade à primeira vista! Depois de alguns contatos por telefone com a família dele no Brasil (a mãe de Tony é professora de Inglês, o que tornou tudo mais fácil) e algumas conversas pela webcam, os pais dele resolveram nos visitar aqui em Londres e ficaram hospedados em casa. Eles são incríveis, muito educados e atenciosos, e se mostraram muito interessados nas “pesquisas” que estavam sendo feitas.

Logo, eu e Tony nos tornamos inseparáveis, até nas idas ao consultório, onde ele passou a ser analisado junto comigo. No começo, o fato de não falarmos a mesma língua foi um tanto quanto chato, mas, bem, éramos crianças, e no fim das contas todas as crianças do mundo sempre acabam se entendendo de alguma forma. Os adultos também estavam se dando muito bem, e acabou que a estadia dos Barros, prevista para durar apenas duas semanas, se estendeu para um mês, e ao fim dela o meu pai, na época ainda engatinhando com o escritório, chamou o Sr. Barros para trabalhar para ele como administrador. E o mais louco é que ele aceitou, e mal os vistos foram aprovados eles já se mudaram para uma casa alugada bem próxima à da minha família.

Tony passou a ter aulas com o Sr. Torres, também, e de tão grudado que ficamos, em pouco tempo parecíamos irmãos que haviam sido separados na maternidade e que finalmente se reencontraram depois de anos e anos, e não devo isto apenas à semelhança física; gostávamos, sim, dos mesmos jogos, desenhos e livros, e andávamos para cima e para baixo juntos ( dentro da casa de nossas respectivas famílias, claro, já que nossos pais ainda receavam nos expor à rua) brincando de ninjas como os da T.V, que minha mãe finalmente havia liberado.

As coisas, portanto, estavam indo relativamente bem, e com Tony agora para me acompanhar nas consultas, elas não pareciam mais tão monótonas. Neste meio-tempo a Sra. Barros começou a dar aulas intensivas de inglês para o filho, uma atitude muito sensata, já que ele estava encontrando reais dificuldades com as aulas particulares, decididamente não compreendendo o que o Sr. Torres dizia, como se ele lecionasse algum tipo de língua alienígena (acredito que para Tony, na época, de fato parecia). Ela criou um hábito de aparecer todas as manhãs em casa com uma cesta recheada de gordices feita por ela própria, e depois que nos empanturrávamos com aquilo tudo, ela religiosamente levava Tony para a nossa mini-biblioteca/ sala de estudos improvisada para ensinar ao filho a nova língua.

Eu adorava acompanhar as aulas, e foi justamente durante uma delas, enquanto Tony mostrava sinais de que pela primeira vez havia entendido o verbo to be, que a bomba finalmente atingiu a residência dos Bellafonte, certeira como um míssil teleguiado, e tão destrutiva quanto... bem... um míssil teleguiado.

E ela fez um enorme barulho ao nos atingir, na forma de um berro grave e profundo do meu pai, vindo do andar de baixo. E de vidro se estilhaçando.

-Não!!! –ele gritou novamente, alto e furioso como eu nunca mais o vi fazer, um grito que ecoou por cada cômodo da casa e, consigo até imaginar, espantou um bando de pássaros aninhados em alguma árvore do jardim. Como nos filmes.

-Meu Deus! –exclamou a Sra. Barros, em português mesmo. -O que é que está acontecendo!?

Então ela se virou para nós e disse, visivelmente assustada, em inglês e depois em português:

-Fiquem aqui meninos, eu vou lá ver o que está acontecendo!

E saiu disparada pela porta como um vendaval, deixando para trás dois surpresos meninos-macacos.

Uma movimentação estranha começou lá embaixo, e logo ouvi a minha mãe irromper em lágrimas e a Sra. Barros tentar consolá-la, mas não parecendo estar em melhores condições.

-Ele vai me pagar, Estella, ele vai me pagar. Eu vou matar aquele desgraçado!-gritava o meu pai, possesso.

Com tudo aquilo acontecendo ali embaixo, óbvio que não iríamos ficar ali parados na biblioteca, e descemos sem fazer barulho algum até a cozinha, silenciosos como verdadeiros ninjas.

Chegando lá, nos surpreendemos com a cena que encontramos. Escondidos um de cada lado da porta, espiamos com cuidado, sem palavras, a confusão que tomava o local, uma verdadeira cena de guerra. Para começar, ali perto de onde estávamos, notei com uma certa mistura de espanto e fascinação , estavam os restos mortais da travessa azul de vidro que meus pais ganharam de presente de casamento da avó da minha mãe , que tratava o utensílio culinário como uma relíquia, e certa vez até me deixou de castigo (sem videogame!) quando eu quase o derrubei da varanda em um incidente do qual não me orgulho muito. Os estilhaços se encontravam misturados com pedaços crus de cookies, o que me fez supor que estavam para ser colocados no forno quando minha mãe se assustou com o grito. Enfim, uma pequena tragédia por si só; mas não a única, a julgar pelos adultos ali no recinto.

Sentados à mesa de mármore negro, cada um se encontrava de um jeito.

Sra. Barros, com a expressão vazia, dava tapinhas repetidos nas costas da minha mãe tentando reconfortá-la, os olhos fixos em um ponto do teto, como que perdida em pensamentos. Minha mãe nem preciso dizer: continuava a chorar, agora só um pouco mais baixo, soluçando a cada dois segundos. O mais curioso dos três, no entanto, era o meu pai. Ele se encontrava quieto, em um silêncio absoluto, concentrando-se em um pedaço de jornal amassado que segurava nas mãos. Sua feição era contida, mas ele estava corado como um pimentão, e uma veia saltada pulsava em sua têmpora direita.

Tony e eu nos entreolhamos. E como sempre acontece (até hoje) quando nos deparamos com uma situação confusa, triste ou perturbadora, desatamos a rir. Sim, eu sei que somos uns ridículos...

-Crianças? –perguntou a Sra. Barros, agora de olhos fixos na gente. Nosso esconderijo ninja havia sido descoberto; fomos os ninjas menos discretos da história recente.- Que feio, eu não havia mandado que ficassem lá em cima!? – disse, mas não havia repreensão em sua voz. Apenas dor.

-Meninos... –minha mãe disse, secando os olhos. Endireitou-se na cadeira. Parecia confusa, sem saber ao certo o que dizer.- É... hã... não se preocupem, queridos, não aconteceu nada de ruim, foi só um...

-Não, Estella! –interrompeu o meu pai, emergindo do silêncio em que se encontrava com uma voz potente. –Não! Sem mais mentiras. Vou contar a eles exatamente o que aconteceu. Não acha que já inventamos mentiras demais sobre o assunto?

Minha mãe se calou, e fez uma cara estranha como se tivesse engolido a própria língua. Insistentes, as lágrimas continuavam a cair pelas suas bochechas. Ela devia ter um reservatório especial para ocasiões assim, acredito.

-Do que tão falando, pai? –eu finalmente perguntei.

Ele me observou por longos instantes, como se avaliando o melhor jeito de fazer um menino de cinco anos compreender o grande problema em que agora estávamos todos envolvidos. Mas era visível em seu semblante confuso que nem mesmo ele conseguia, naquele momento, assimilar as verdadeiras implicações do que acontecera.

-Garotos, venham aqui –disse ele por fim, afastando duas das cadeiras ao seu lado. Obedecemos, e sob os olhares tristes das nossas mães escalamos habilmente as cadeiras e nos sentamos, completamente curiosos. Meu pai, então, desamassou aquela folha de jornal que segurava nas mãos e colocou na mesa à sua frente. Estava bem amassada mesmo, mas Tony e eu nos inclinamos para mais perto, até que o título ficou bem visível. Li:

FAMOSO CIENTISTA DESCOBRE O ELO PERDIDO ENTRE OS HUMANOS E OS MACACOS! SAIBA TUDO NESTE FURO SOBRE A MAIOR DESCOBERTA DA CIÊNCIA DE TODOS OS TEMPOS!

E, ao descer o olhar para a grande foto logo abaixo, senti subitamente como se tivesse levado um soco bem dado no estômago. O que? O que Tony e eu fazíamos ali, estampados na primeira página daquele jornal? Era uma foto em preto e branco na qual estamos lado a lado, claramente tirada em uma das inúmeras medições do Dr. Sharpe. E o que tínhamos a ver com esse tal de elo perdido, fosse lá o que isso queria dizer?

Minha primeira reação foi olhar para Tony, mas percebi que ele ainda estava lutando com o inglês para decifrar aquela chamada. Resolvi ajudá-lo, lendo para ele. E ao reler, por fim, compreendi tudo.

-Pai, nós somos... o elo perdido?

-Não, vocês são apenas garotos! –respondeu ele, firme.- Vocês... nós todos fomos enganados, Romeo. O Dr. Sharpe contou para todo mundo sobre vocês. Ele é um pilantra, um...um... – ele se calou brevemente, para não soltar um palavrão na nossa frente. Respirou fundo.– Você compreende?

-Mais ou menos...eu... acho que sim. – Olhei para Tony em busca de apoio; ele agora estava observando a grande janela que dava para o jardim, como se aquele assunto não o interessasse mais.

-Bom –continuou meu pai-, acredito que vamos passar por momentos muito difíceis a partir de agora. Dificílimos, para ser sincero. Muita gente vai querer saber mais sobre vocês. Mas saibam, Romeo e Tony, que não vamos permitir que façam nada para machucá-los. Vocês vão continuar a fazer o que sempre fizeram: brincar, estudar e agir como os garotos normais que são. Ok?

-Ok -eu disse, um pouco hesitante. O que mais eu poderia dizer?

Tony nem se deu ao trabalho de responder.

*******

Entrei no meu quarto e fechei a porta. Eu não tinha encontrado uma boa alternativa para passar o tempo até a chegada do meu pai, então resolvi fazer o de sempre mesmo. Jogar videogame.

Segui até a minha prateleira de jogos. Uma longa estante de mogno envernizado que ia do chão ao teto, recheada dos mais variados jogos, consoles e portáteis. Tony costuma dizer que ela é um paraíso nerd na Terra, ao que eu respondo humildemente afirmando que a minha coleção é bem menor do que muitas que se vê por aí -é só procurar na internet! Mas a verdade é que, para mim, ela é inestimável. Cada jogo ali, cada videogame, não é apenas um amontoado de partes de plástico e chips. Não. Eles são amigos, que me ajudaram a passar pelos momentos mais difíceis, me transportando para reinos distantes, bases intergalácticas ou simplesmente me fazendo cuidar, qual um babysitter, de uma família de pessoinhas pixelizadas. Cada um reivindica uma parte na minha história, peças que formam o quebra-cabeça do meu eu de hoje em dia.

Essa é magia dos videogames, e devo a eles um bocado de agradecimento pelos bons momentos passados. E agora, mais uma vez, eles me ajudariam a preencher o vazio da minha tediosa existência.

Mas qual jogo escolher?

Dentre tantas opções, pincelei um que fazia tempos que não jogava. Zombie Killer III. É, parecia legal passar umas duas horinhas exterminando zumbis repugnantes. Acho que de tantos que já matei devo ser o inimigo número um da comunidade dos morto-vivos. Retirei o cd da capinha e inseri no leitor ótico do meu Nintendo.

Acomodei-me na minha poltrona especial, estralei os longos dedos negros e então, quase na mesma hora em que o logo da produtora piscou na tela da tv de plasma, um som terrível rompeu o ar da manhã. Era uma mistura de todos os sons mais horripilantes do universo, algo como se alguém tivesse tido a infeliz idéia de juntar no mesmo ruído o miado de um gato no cio, uma mão gigantesca arranhando um quadro-negro e a voz esganiçada de qualquer cantor teen da Disney.

Em resumo, era o desgraçado do filho do Sr. Roland com a sua terrível “banda” de metal.

Quase arremessei para longe o controle. Será que eles não tinham noção? Era de manhã ainda, poxa. Levantei com um suspiro de indignação e me dirigi até a janela. A propriedade do Sr. Roland ficava de frente para a nossa, e dividia muro com a da família de Tony. Era uma bela casa, com um bonito jardim cheio de arbustos e árvores frutíferas, e segundo o que contam os vizinhos mais velhos, ele construiu cada centímetro dela com suas próprias mãos. Eu não gostava muito dele, o achava muito ranzinza e mal encarado, o que piorou depois que perdeu a esposa em um acidente de carro há três anos. No entanto, não podia deixar de admirar a sua determinação.

O segundo andar do belo sobrado estava com todas as janelas abertas, e eu consegui rapidamente vislumbrar Josh Roland em uma das janelas, cantando com voz de taquara rachada algo que nem remotamente parecia uma música. Seu braço direito, esquelético como todo o resto, parecia uma página de gibis, dado o número de tatuagens que fizera para parecer descolado. Vestia uma camiseta preta do Kiss e uma calça de couro apertado.

Por um momento pensei simplesmente em fechar a janela, aumentar o volume da televisão e jogar, mas um movimento mais abaixo captou a minha atenção. A porta da frente da casa abriu de repente, e o Sr. Roland saiu. Usava seu característico cardigã marrom com calça caramelo, e parecia contrariado. Certamente estava detestando aquela barulheira toda nos ouvidos (quem não detestaria?) e resolveu sair um pouco. Se o som daqui estava alto, imagine ali dentro. Fechou a porta e ficou parado por um instante, como se procurando algo para fazer. Em seguida avançou lentamente até a caixa de correios do portão e tirou de lá algumas cartas. Ele andava com certa dificuldade. Dizem que é porque, quando jovem, foi baleado por acidente em um treinamento militar e ficou manco. Mas o que lhe faltava de agilidade lhe sobrava de inteligência e tino para os negócios, tanto que ele era dono de uma rede de mercearia bem famosa aqui em Londres.

Com certa dificuldade ele se sentou nos degraus da porta da frente. Tirou o par de óculos meia-lua do bolso do cardigã e os colocou. Sem pressa, passou a ver as cartas, uma a uma; eram muitas, a maioria me pareciam contas. Então ele se deteve na penúltima, e fez uma careta de surpresa. Era um envelope pardo e grosso, que parecia conter um lacre de cera verde. Ele colocou as demais cartas no colo e a analisou de todas as posições, como se fosse algo absolutamente estranho e novo. Levantou a carta contra o fraco sol da manhã, tentando ler algo do seu interior, mas apenas fez franzir as sobrancelhas brancas e grossas.

Abaixou a carta novamente e ficou pensativo por um instante. E no próximo, rápido como gavião, me lançou um olhar penetrante, que instantaneamente varreu a distância que nos separava e me atingiu como uma flecha; quase esqueci como respirar.

Ele estava olhando fixamente para mim agora. Entrei em pânico... será que ele pensou que eu o estava espionando?

Dei uma última olhada para ele e me afastei da janela. Tremendo pelo susto, me joguei na poltrona e apertei o mais rápido possível a opção de iniciar o jogo.

Felipe Lundgreen
Enviado por Felipe Lundgreen em 27/02/2013
Código do texto: T4161861
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