Nas profundezas de uma vida (nada) normal - Capítulo 8

Nas profundezas de uma vida (nada) normal

Capítulo 8 - Pensamentos e mais pensamentos

- Não! Espera! Não vá... - gritei para o, então, nada - Eu não sei o que tenho que fazer aqui!

De repente a "orquestra" parou de tocar aquela música lenta estranha e passou a tocar uma nova, daquelas que se vê em filme de suspense. Uma luz, ao fundo, se acendeu, como se eu estivesse de frente para um corredor bem longo. Outras luzes foram se acendendo ao longo daquele espaço sem fim. Mas o resto parecia escuro a não ser pelo "palco" em que os intrumentos se mexiam sozinhos.

Dei um passo ainda muito insegura. Sem saber o que fazer eu continuei a andar até ultrapassar uma espécie de arco onde a paisagem da casa mudou completamente e como se fosse um portal para outro lugar. A sala onde eu estava a segundos atrás deixou de existir, ou ao menos era o que se parecia, no meio de tanta escuridão. Só que o som da música ainda tocava ao fundo.

Agora, eu estava mesmo em um longo corredor. As lâmpadas das luzes claras que eu via estavam peduradas no teto que estava, sem brincadeira, no mínimo, a sete ou oito metros do chão, por onde eu andava. Mas ainda era possível enxergar que além das suas luzes, as luminárias tinham um formato de uma planta com uma flor pequenininha pindurada ao lado, que quase não dá para ver.

Não havia mais nada. Nem portas, nem outros corredores interligados, nem tapetes e janelas. Só uma portinha ao fundo, com uma outra luz brilhante que quase cegava meus olhos. E claro as colunas que sustentavam aquele lugar.

Eu sabia que era lá que devia entrar. ALgo me dizia que era um quarto.

Andei até não poder mais. Achei que o fim daquilo não existisse. Eu arfava e minha língua estava de fora de tão cansada que fiquei. A portinha estava fechada e a luz escapava pela parte de baixo. Seja lá o que estivesse lá dentro eu estava nervosa. Muito mais nervosa do que as pessoas nervosas ficam quando tem um ataque de nervos. Isso porque eu não sou uma pessoa que fica nervosa por qualquer coisa.

Respirei fundo. Fiz um coque no meu cabelo que logo se desmancharia, mas era só para passar o calor que estava sentindo e girei a maçaneta estranha que tinha o formato de uma lua crescente. O detalhe estranho que reparei nela é que brilhou quando minha mão a toco. Depois meus olhos arderam por causa da claridade e eu fui obrigada a fechá-los.

Se eu estivesse em um filme ou algo assim diria que aquela era uma espécie de sala de comandos ou algo assim. Tinha uma tela enorme na minha frente assim que entrei. Embaixo dela havia vários controles e botões de diversas cores que eu não sabia o que cada um significava. O teto era mais baixo, pelo menos três metros acima da minha cabeça. De resto tinha só uma mesa gigante de vidro e algumas máquinas estranhas que eu realmente também não sabia o que eram e para que serviam. A telona foi o que mais me chamou a atenção por ali.

"Como se liga isso?" Pensei. Do nada senti um cheiro daquele perfume que Lipe sempre usava e até hoje nunca descobri de que era exatamente. E então lembrei dele, do segredo que me contou, do jeito que eu pensava dele e até do beijo. E esse último ponto me fez dividir os pensamentos em Erik também, um amigo que queria ser mais que amigo. Como se a minha vida se baseasse a garotos. Claro que não, óbvio.

Eu me assutei quando a telona de repente se ligou. E então apareceu as fotos de Lipe e Erik ali na minha frente em alta definição. Um de um lado e o outro do outro. Como se fosse tipo fotos de identidade tamanho gigante. Entendi. Aquilo se ligava com a força da mente. Eu já devia ter imaginado.

"Queria poder saber no que eles estão pensando agora..." Pensei novamente. Só que como aquela era a morada dos "meus" pensamentos foi como se eu tivesse dito aquilo em voz alta, pois pude ouvir claramente como se as paredes criassem bocas e falassem comigo.

"Aqui você pode bem mais do que isso." Ouvi aquela voz melódica de novo, mas ela não apareceu. "A casa Railin é a morada dos seus pensamentos e de todos os outros pensamentos das pessoas as quais você nem possa imaginar. Tudo em um lugar só. Guardados só para quem não é humano claro. Sendo meio sereia Marina, você pode entrar aqui sempre que quiser, isto é, se tiver coragem de voltar, é claro." A voz mudou um pouco o tom no final da última frase, o que me fez ficar arrepiada e quase esquecer o calor que eu estava sentindo a pouco tempo.

Tudo ali funcionava com os meus pensamentos. Então tudo o que eu pensasse poderia se tornar realidade, certo? Pensei em uma cadeira bem confortável para poder sentar em frente a grande telona como se fosse em cinema. E alguns segundos depois ela apareceu atrás de mim rolando em suas rodinhas como se quisesse dizer "sente aqui".

Um frio percorreu minha espinha. Sim, sereias tem espinhas, quer dizer, pelo menos eu tenho na minha forma humana. Bom... Eu iria testar para saber se a mulher fantasma com a voz de melodia, que na verdade era eu, estava falando a verdade.

Ela estava.

Já que a foto de Lipe era a da esquerda, portanto a primeira que vi aparecer, escolhi ver no que ele estava pensando e aonde ele estava já que eu não tinha notícias dele depois que Erik o baniu do oceano. Não exatamente que ele tenha o banido do mar, mas se Lipe é um dos Doce provavelmente não vai resistir da próxima vez em que tocar em água salgada. Me consentrei nele.

"E o que você acha daquela tua amiga lá da escola?". Na tela apareceu a imagem de um menino louro bem alto ao que parecia e de olhos meio esverdeados sentado na ponta da mesa. Bom pelo menos Lipe estava vivo, e em terra firme. Era como se houvesse uma câmera invisível que filmasse tudo o que estava acontecendo. Era mesmo muito mais do que só saber o que ele estava pensando.

"Qual delas? Tenho muitas que são bem mais amigas se é o que quer saber..." A "câmera" se focalizou em Lipe e pude ver seus olhos cor de mel brilhando a luz da sala da casa dele.

"Aquela ruiva... Tá rolando uma parada que ninguém tá sabendo não tá... Eu nunca pensei que diria isso, mas acho que alguém aqui tá a..."

"Não fala a palavra com 'a' ou tu vai ver! Não tem nada entre eu e a MARINA, esse é o nome dela. O nosso lance é mais... Aquático tá ligado?"

"Aquático? Que coisa é essa agora? Você pega ela até debaixo d'água?" o amigo dele batia na mesa de tanto rir e eu batia naquela mesa de comandos de tanta raiva. As vezes eu preferia que Lipe estivesse morto.

"Não... É outra coisa." ele revirou os olhos. Eu também. É claro que era, e o amigo dele nunca ia entender e eu esperava que o Lipe não tentasse explicar.

"Não saquei mas tá... Tem ou não alguma coisa com ela?" voltei a ver o outro que não sei por que ficava forçando aquele assunto.

"Iii... Deu pra ser policial agora? Por que quer tanto saber? Aliás... Como sabe que talvez eu tenha?" Dei outro soco na mesa a minha frente.

"Será que é por que o seu quarto tá todo cheio de fotos dela e eu mal consegui entrar?" Essa me surpreendeu. Realmente. Dava vontade de ter tesoura para ficar passando o tempo cortando aquelas fotos.

"Não é culpa minha se aquelas drogas de fotos foram parar ali! Elas vieram do nada. Apareceram no meu quarto assim sem mais nem menos. Eu não ia ficar o tempo inteiro tirando fotos de uma garota só né?" A tesoura voaria bem no pescoço dele, bem assim "sem querer"...

"Então... Você não tá a..."

"Não caramba! Eu só sou mais ligado nela do que nas outras porque ela é mais... Meu tipo, digamos assim. Não importa. Eu nunca vou tá a palavra com 'a'."

"A..." cortei a ligação entre a camera e a telona pensando em voltar de volta a sala estranha de comandos novamente. Nem quis saber que droga de palavra com 'a' era aquela, mas de qualquer forma eu não deveria saber. Tudo o que eu sabia era que eu, em parte, queria mesmo uma tesoura por perto. Só para precaução. Mas minha mente se voltou novamente na tela inicial das duas fotos antes que eu pensasse em fazer aparecer uma tesoura na minha frente.

A foto da direita era a de Erik. Seus olhos estavam bem azuis como o mar, quero dizer o direito estava mais azul, o esquerdo tinha uma bolinha castanho perto da pupila, e a ponta o azul de sempre, e muitas pessoas achavam que ele era esquisito por causa dela. E eu dizia que aquilo era um charme que ninguém nunca iria entender. Para mim, aqueles olhos sempre foram algo especial só dele. Dessa vez me consentrei nele.

De repente minha "camera invisível" começou a filmar o oceano, as ondas se movimentavam de lá para cá de cá para lá.

"Ótimo. Agora sou eu falando sozinho com um Coral." ele disse absolutamente sozinho no mar, pelo menos ninguém notável pela minha camera. "Pelo menos era uma coisa que não parecia ser tão louca quando era a Mari que fazia. Fazer isso parece que ela tá aqui por perto."

"Eu sinto falta dela mesmo que eu nunca diga isso de novo em voz alta. Não porque eu não quero, mas porque ela não quer. Acho que ela deve sei lá me odiar por ser eu. Ou talvez ela deve só estar se afastando. Ou talvez eu que fui muito burro e devia esperar mais um pouco... Sei lá. Seria muito mais fácil se eu não gostasse dela." Dessa vez uma lágrima caiu do meu olho e não apareceram brilhinhos. Não era de raiva, mas talvez de pena. Não queria que ele pensasse daquele jeito.

Ele se levantou da pedra do coral em que estava e saiu nadando para outro lugar que eu não reconhecia. O lugar que eu chamava de "lugar do Erik" onde ele sempre ia e eu nunca soube onde era.

Finalmente ao vivo e em cores eu podia ver o tal lugar. Era o que eu podia dizer ser uma pequena cabana. Quer dizer pequena por fora, parecia feita de uma lona resistente a água e bem velha como se tivesse pertencido alguém de terra firme antes de afundar no mar. Dentro havia milhões de coisas como colchões velhos e coisas minhas, incluindo a boneca a qual estava no quarto em que fui dormir na casa dele. Ele a pegou nas mãos.

"A Mari sempre foi legal comigo. Mesmo com meus olhos ridiculos. Mesmo com as minhas ideias ridículas. Mesmo com tudo."

De repente minha camera me levou a um outro lugar, longe do lugar do Erik, longe da sala de comandos, mas para dentro da mente dele, onde eu poderia ver o que ele estava realmente pensando.

"Erik! Erik!" era eu andando e ainda bem pequenininha, ainda estava aprendendo a falar nomes. Eu estava entrando nas lembraças dele.

"Aqui, pequena." Ele riu. "Eu tô aqui..." Provavelmente estávamos brincando de pique-esconde e vi meus pais olhando pela varandinha da casa da minha tia. Estranho, eu podia ouvir a voz de Erik tão alta como se ele estivesse fora. Então ele já havia subido até a superfície...

"Onde? Não tô te vendo..." Eu era bem bonitinha quando pequena. E parecia confusa de como se brincava daquilo, para mim era como se ele estivesse usando uma capa da invisibilidade. E era difícil encontrá-lo.

"Aqui... Vem me procurar." Eu ouvi a voz mais uma vez tão alto como se eu estivesse mesmo na cena. Eu sei que corri para detrás de uma pedra. E então veio a surpresa. Erik estava totalmente humano. Com calção de banho e tudo mais. E ele fingia que não sabia de nada e eu não conseguia me lembrar daquilo apesar de que tinha certeza que era eu.

"Pena que você não se lembra disso Mari... Eu queria muito que você se lembrasse dessas coisas. Que eu também posso ser humano como você, que eu também tive um pai humano que morreu antes da minha mãe. Mas se o destino achou mellhor assim... É melhor você não se lembrar." Ele sorriu mas como se estivesse com dor de se lembrar daquelas coisas.

Eu não conseguia nem entender nem acreditar no que estava vendo. Por que aquelas lembranças simplesmente foram apagadas da minha memória? E por que Erik estava esse tempo todo mentindo pra mim?

Bec
Enviado por Bec em 23/01/2013
Reeditado em 24/01/2013
Código do texto: T4099716
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