Nas profundezas de uma vida (nada) normal - Capítulo 4

Nas profundezas de uma vida (nada) normal

Capítulo 4 - Paixão Proibida

Ainda não estávamos no fundo. Ainda era dia. Eu não podia estar dentro do mar. Não devia. A água entrava nos meus pulmões não preparados. Eu não conseguia fazer nada a não ser me mexer. Os pequenos buracos das guelrras queriam abrir no meu pescoço e eu tive que segurar com as mãos antes que abrissem. Saí de volta para a areia. Não estava acostumada a fazer minha transformação perto de alguém. Mesmo que fosse o Lipe. E mesmo que eu queria mesmo mostrar pra ele quem eu era.

Ouvi alguém gritar meu nome lá de dentro da água. Gritava com dificuldade. Eu sabia que era ele, mas sua voz aparecia mais aguda do que o normal. Ele precisava de ajuda.

Puxei-o para a areia e ele estava de olhos fechados. Era pesado. Sereias não foram feitas para puxar pessoas das águas. Pelo menos não eu... Ele ainda respirava. Lentamente, mas respirava.

- Lipe, você tá bem? O que você queria me mostrar? Só abre os olhos se você estiver me ouvindo...

Ele não se mexeu. Apenas continuava respirando bem devagar, como se quisesse aproveitar cada pedacinho de oxigênio que tinha naquele ar.

Provavelmente minha tia Lita estaria observando tudo da janela. E quando eu chegasse de volta na cozinha pedindo ajuda, ela jogaria na minha cara que avisou. Mesmo que com aquele olhar preocupado dela. Pelo menos alguma vez na vida eu deveria tentar resolver as coisas sozinha. Principalmente quando elas dizem a meu respeito.

- Lipe, abre os olhos...

Meu amigo se mexeu devagarinho. O nariz puxou o ar bem fundo mais uma vez. A boca cuspia a água salgada. E logo depois os olhos foram abrindo, abrindo... Depois ficaram olhando para mim até me focarem e ele levar um susto tão grande que sentou de uma vez na areia branca ao meu lado.

- O que aconteceu? - ele pareceu confuso no primeiro minuto - Ah... Eu lembro... Eu queria te mostrar uma coisa.

- Sim. E o que é? Se você voltar pra água você vai se afogar!

- Não vou me afogar! Eu sei nadar! E além disso já ganhei medalhas de natação, eu fazia parte da equipe! Só parei porque...

Um silêncio apareceu do nada. Provavelmente ele quis fazer uma "Parada dramática" sem sentido naquela hora.

- Por que?... - eu repeti pedindo que ele continuasse.

- Por causa disso... - ele me mostrou um dos braços - Apereceram aqui quando fui num mar com a minha família...

- O que apareceu no seu braço?

- Você não consegue ver essas coisas verdes?

- Isso são algas pequenas, Lipe. Não precisa parar de nadar por causa disso... - eu ri.

- Não são as algas. - ele colocou o braço debaixo d'água e retirou depois de um bom tempo - É isso!

Sabe quando você paralisa de tão chocado que acaba ficando quando alguma coisa acontece e você não sabe se vai continuar ali mesmo, vai fugir ou desmaiar? Realmente não eram algas. Como eu podia rir de uma coisa tão séria? Ele tinha uma espécie de escamas verdes e perto do pulso barbatanas da mesma cor brotaram. Eram diferentes das que eu estava acostumada, suas pontas eram mais tortas para o lado de fora. Nunca tinha visto barbatanas como aquelas.

- B-Barbatanas? - eu mal conseguia pronunciar uma palavra que aprendi quando criançinha, na época em que ensinavam como dizer as partes do corpo.

- É. Acho que é isso. Você que gosta mais dessas coisas de águas e bichos submarinos. Sabe o que significa?

Eu ignorei a pergunta dele.

- Onde conseguiu isso? Como apareceu e quando? Em que lugar e com quem você estava? - eu disse com urgência. Ele não podia ser um de nós. Assim como eu...

- É um interrogatório agora, é? - ele ria observando sua "nova parte" do corpo. Não parecia nada assustado. Provavelmente ele ficou quando as tinha visto pela primeira vez.

- Só responde. - falei com um tom meio ríspido.

- Tá calma... Eu não lembro direito. Foi nas férias, eu fui com a minha família num mar de noite. Eu lembro também que eu vi a lua cheia. E aí quando pulei na água não consegui sair. Meu corpo reagia diferente. Eu não conseguia mais nadar como nas competições. Fiquei por horas debaixo d'água. E eu sei que eu mal conseguia respirar. Depois disso não me lembro direito o que aocnteceu. Eu ouvi uma voz. Abri os olhos aí percebi que estava respirando de baixo d'água. E quando vi, tinha essas coisas no meu braço e uma abertura estranha no meu pescoço. Eu achei que tiha morrido e a minha família ficou preocupada que me levaram pro hospital, mas eles não chegaram a ver nada. Eu tava sozinho quando entrei no mar.

- Lua cheia... Você disse que você viu uma lua cheia?

- Sim. E bem grande. Daquelas amarelas que parece que dá pra tocar!

- E você tava de férias? Foi o que em julho mais ou menos? - milhões de informações rodavam na minha cabeça e eu não sabia em que resposta exatamente eu chegaria.

- É.

- Mas já faz bastante tempo. Além de que a lua cheia pode fazer a transformação acontecer mais rápido... - disse mais pra mim mesma do que pra ele - E você voltou a entrar no mar depois disso?

- No mar não... Mas na piscina. Foi pior ainda. Eu parecia um monstro. Minhas pernas estavam colando e ficando coloridas. Minhas mãos faiscavam e os dedos estavam colados parecendo um pato. eu tive que fingir que deu um problema na perna e não podia mais competir na natação. Mudei o laudo médico. Todo mundo ia ter medo de mim e querer me matar... Você não está com medo, está?

- Eu nem sei o que dizer Lipe. - tentei parecer uma pessoa normal, mas ao mesmo tempo queria dizer a verdade - Você tem... Cauda?

- Eu acho que é. Eu pareço um "sereio". E isso é ridículo porque sereias não existem. Ou talvez eu seja um polvo. Minhas pernas grudam e ficam coloridas que nem um peixe. Quem sou eu, Mari? Quer dizer... Não sou normal né?

- Não. Não é. Mas Lipe fica calmo tá. E não deixa ninguém te ver entrando no mar ou na piscina.

- O problema é que eu fiquei louco por água! Eu não consigo disfarçar! Dou um mergulho na piscina toda noite, bebo quase quatro litros de água todo dia e tomo banho de banheira pelo menos umas três vezes por dia! E agora no mar, me deu uma sensação estranha, de que eu não devia estar aqui... Mas Mari por favor, me ajuda! Eu preciso saber o que eu sou, e você precisa me ajudar...

- E na banheira... Por acaso você se "transforma" também? - eu perguntei meio curiosa. Eu nunca havia tomado banho de banheira.

- Aham. Só não quando eu bebo água. Eu preciso voltar pro mar...

- Não! - gritei puxando-o na direção da escadinha da casa da minha tia - Você não pode ir! Ninguém pode te ver! Nunca! E não faça isso durante o dia. Se quiser mergulhar no mar tem que ser de noite quando ninguém, absolutamente ninguém, estiver vendo, entendeu?

- Entendido! - ele disse como se fosse um soldado.

- Fique pro almoço e jantar então. Vamos...

Logo depois do almoço, nós dissemos para nossa tia que iríamos fazer um trabalho escolar muito importante que ia demorar um pouco mais de tempo e que ele também ficaria para o jantar. Ela não deve ter acreditado em uma só palavra do que dissemos, mas mesmo assim assentiu. Eu acho que ela já imaginava o que podia estar acontecendo.

Ficamos um bom tempo sem fazer absolutamente nada. Quer dizer nós fomos até um pequeno escritório na parte de cima e ficamos rabiscando papéis de rascunho. Esse seria nosso "trabalho". Quando já estava perto do fim do por do sol nós descemos novamente para a praia. Antes de dar o tempo certo até a lua ainda minguante aparecer, conversamos sentados na areia olhando para o horizonte.

- Sério que você não acredita em sereias? - de repente eu disse sem nem perceber do que estava falando. O céu já estava escuro. A lua ai aparecer a qualquer momento.

- Não. Mas depois disso que tá acontecendo comigo... Bom... eu acho que sim...

- Hum... Como são as "sereias" na sua visão?

- Ah... Gosto delas. Acho que são gatas.

- Só isso? - me senti um pouco desanimada com aquele comentário. Eu achava que ele viajar na maionese e inventar uma história maluca de como somos.

- Mas devem ser estranhas. Acho que elas atraem os caras com o canto e depois que eles afundam elas comem as carnes deles; mas eu não ia me importar, desde que ela fosse bonita.

- Hum...

- E acho que elas devem ter uma fome muito grande e moram em uma cidade cheia de porpurina e brilho e coisa de mulherzinha...

- Tá Chega!

Naquele momento meu encanto por ele parecia ter sumido. Como ele podia ser tão idiota? Disse exatamente tudo o que todos os outros dizem, que sereias são ferozes e carnívoras, bonitas, perfeitas e que gostam de cores chamativas. Os humanos são todos iguais. Ainda mais os homens.

- Quer saber... Não sei se posso te ajudar! - eu disse. Não conseguia acreditar naquelas palavras dele. Mesmo ele sendo o Lipe. Um Lipe mudado, mas ainda sim o Lipe. Como ele podia ser tão preconceituoso e ir nessa onda de como eles "acham" que nós somos?

- Mas você disse que ia me ajudar, Mari? Por favor? Como é que eu vou viver sendo esse monstro? E o que isso tem ver com eu acreditar ou não em sereias?

- E se eu fosse uma sereia, Lipe? Já parou pra pensar? - eu estava com tanta raiva que cuspi as palavras um pouco alto demais, mas não ao ponto de acordar os vizinhos. Mas ele parecia assustado. - Já pensou e se VOCÊ fosse um tritão?

- Por que você tá falando assim, Mari? Foi alguma coisa que eu falei? - ele disse chegando mais perto já que eu tinha me afastado. Ele chegou perto até demais.

- Porque sim! Isso que você tá falando não é justo!

- Sobre as sereias? Bom... Se você fosse uma sereia eu não me importaria que me levasse até o fundo do mar... - seus lábios roçaram na minha orelha me fazendo ter calafrios.

- Sim. Sobre as sereias... Eu não posso te ajudar Lipe, desculpa... E acho que também nem tem comida direito pro jantar, talvez seja melhor você já ir embora... - eu estava confusa, era impossível eu ter gostado dele e se eu estava me desiludindo tão rapído é porque devia ser no máximo uma paixonite idiota, que graças ao rei tritão já passou.

- Por favor, Mari. - eu me afastei enquanto ele tentava chegar mais perto e pegava na minha mão para não ir para longe - Você tinha dito que ia me ajudar e foi você que me convidou pra jantar. Se quiser eu fico calado e não falo mais nada. Posso entrar agora? E aí te mostro como eu sou de baixo d'água e você me diz o que tá acontecendo...

Eu não sabia o que responder. Ele era um idiota como qualquer outro humano. Eu estava a ponto de revelar minha verdadeira identidade se é que ele não já tenha acreditado no que eu disse antes. E eu tinha medo do que podia acontecer depois, mas mesmo assim eu realmente havia dito que ia ajudá-lo. Então eu o puxei para a água logo sem falar nada.

Chegamos no fundo mais cedo do que esperava. Dessa vez estava escuro mesmo com a luz da lua que ainda iluminava aquela parte deserta. Os corais estavam bem apagados e escondidos. Eles nunca ficavam assim a não ser que sentissem uma presença estranha. Lipe.

Ele ainda estava com os olhos fechados. Foi a última coisa que vi antes da minha transformação. Logo depois comecei a sentir uma vibração esquisita nas ondas do mar. Veio dele. A transformação dele aconteceu e eu pude ver de pertinho o quanto aquilo que eu mesma fazia era assustador. Qualquer humano teria pesadelos se visse isso. Parecia até que ele estava morrendo. As guelrras apareceram primeiro abrindo espaço no pescoço. Os braços tomaram uma coloração um pouco mais verde e escamado e as barbatanas apareceram novamente mais curvadas para o lado de fora. Seus dedos se colaram e seus cabelos deslizavam sobre o rosto. Ele até que parecia inconciente. Mas respirava porque dava para ver as bolinhas de ar saindo. Finalmente sua cauda apareceu. Muito diferente. Não era verde como eu esperava. Era laranja, quase do tom do meu cabelo. E as escamas ficavam se soltando aos poucos. Nunca havia visto ninguém que tinha a cauda de cor diferente das escamas naturais da pele.

De repente eu levei um susto. Ele abriu os olhos em um movimento rápido. Aquele cor de mel virou dourado bem radiante. Ele tocou meu braço. Parecia querer gritar como se o sal o machucasse. Mas não saia voz alguma de sua boca.

- Pra falar, você tem que falar alto, como se quisesse gritar mesmo, respire somente com as guelrras pra isso.

- V-Você... É uma sereia?? - ele gritou mais alto do que eu esperava.

- É parabéns você descobriu o mundo. - eu disse nada animada - Agora, você tem que me seguir, vou tentar falar com uma pessoa que talvez, mas só talvez, pode te ajudar.

- Mas como? Você, eu? de baixo d'água?

Dava para perceber que ele estava muito confuso. Ele realmente tinha levado na brincadeira aquilo que eu disse lá em cima.

- Erik? - eu sussurrei a ponto do Lipe não poder ouvir porque não estava acostumado com a frequência de som da água, que é baixa e lenta demais. - Preciso da sua ajuda.

Se existe alguém nessas águas que pode resolver qualquer problema, esse alguém é o Erik. E eu esperava de coração que ele pudesse ajudar o Lipe. Mesmo ele sendo aquela coisa que ele era, não podia deixá-lo daquele jeito. E eu sabia que pela noite, Erik gostava de dar um passeio rápido pelos caminhos fora de Thamisian.

- Oi... - senti sua voz grossa atrás de mim. Dessa vez eu não me assustei.

- Ai que bom que você tá aqui! Eu preciso da sua ajuda! Você não sabe o que aconteceu...

- O quê? - ele perguntou olhando para as vibrações estranhas das ondas.

- Ele. - eu apontei para Lipe que estava tentando tocar em um coral amarelado. - Ele era meu amigo humano, mas a pouco tempo descobriu que o corpo tinha mudado, e isso não é normal, Erik, eu acho que ele é um tritã...

- Fica longe dele! - foi tudo o que ele disse sem nem me deixar terminar de explicar o que tinha acontecido.

- Por que? - eu perguntei.

- É. O que você tem a ver com isso, peixe fedido? - Lipe se aproximou de mim e eu arrepiei com as ondas geladas que ele trazia.

- Essa aberração aí é seu "amigo" daquelas besteiras que você disse que vem de cima? - Erik disse me puxando para longe do outro me impedindo de passar por seu braço. - Fica longe dele. Ele é um DOCE! Sinto o cheiro nojento de longe!

Eu comecei a rir bastante. O modo como ele falou na língua humana seria mais ou menos dizer que ele era fofo. O que eu sabia que não tinha nada a ver.

- Do que você tá rindo Mari? - ele disse com urgência - Ele é um dos doces! E você sabe que doces e salgados nunca se misturam!

- Do que é que vocês tão falando? De receita de bolo agora? - Lipe queria entrar na conversa de um jeito ou de outro.

- De você, peixe de lagoa! - eu creio que isso era pra ser como um xingamento na cabeça do Erik.

- Lipe... Você tinha me dito que tinha visto sua transformação num mar! - eu fiquei indignada por ele ter mentido pra mim.

- Mar, lagoa, rio... Ah sei lá, foi em um lugar com muita água, tava de noite pra saber!

- Mari, - Erik me disse se curvando no meu ouvido - A gente vai ter que tomar uma decisão forte. Ele não pode ficar aqui. Ou a gente tira ele daqui ou a gente mata. Não tem outra opção. Você sabe que os de água doce são famintos. E se ele ficar com fome, ele vai te devorar. Eu prefiro que ele morra. Mas você que escolhe.

- Manda ele para um aquário. - foi tudo o que eu pensei, apesar de que não era uma boa ideia porque ele era um tritão incomum e não um peixe qualquer - Não. Melhor uma lagoa.

Eu sabia que tritões são poderosos. Ao contrário das sereias, quando eles alcançam a idade certa, eles recebem uma espécie de cajado marinho que provoca ondas fortes e correntes eslétricas. O de Erik mandou Lipe pra longe provavelmente para a lagoa mais próxima. É uma espécie de teletransforte. Foram as fadas que o ensinaram a usar esse truque, pelo menos valeu a pena.

- Toma cuidado com o pessoal de cima. Esse cara não é qualquer um. Tem a cauda diferente, isso significa que alguma coisa da água doce ele é importante.

- E o que ele pode fazer? Além de me matar, o que eu acho improvável.

- Ele pode até não querer te matar Mari, mas pode acontecer alguma coisa com você se ele te beijar, por exemplo. E isso sim é um problema.

Bec
Enviado por Bec em 11/01/2013
Reeditado em 24/01/2013
Código do texto: T4079432
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.