Nas profundezas de uma vida (nada) normal - Capítulo 3

Nas profundezas de uma vida (nada) normal

Capítulo 3 - Inesperado

Humanos tem um jeito próprio de ver as coisas. Sei lá... Parece que eles gostam de dizer que são os melhores animais da Terra. Querem dominar o espaço de todos. Ar, água, florestas... O que me incomoda é o modo como eles veem as criaturas místicas. Que mania de dizer que nós sereias somos animais ferozes?

Tudo bem que exista mesmo sereias que cantam na beira de uma lagoa de água doce e penteiam os cabelos atraindo os homens que passam por aí para debaixo d'água e devorá-los. Pode ser até que essas sejam as salgadas que acabam tocando em um espaço das doces, apenas um efeito colateral. Mas isso é só um caso de exceção. A maioria de nós não é assim. Se um cara se sente atraído não é nossa culpa. Dizem que somos muito bonitas e tudo mais... Talvez seja um pouco de exagero. Assim como eles, nós não somos perfeitas.

Por exemplo, muitas pessoas dizem que meu cabelo é lindo. Principalmente por causa da cor. Ruivo. Quer dizer pra mim ele é mais alaranjado, mas as pessoas insistem em me chamar de ruiva mesmo assim. Dizem que é raro, mas aqui debaixo d'água é muito comum achar sereias com a mesma cor que meu cabelo. Além disso meus olhos são azuis. Bem claros. E isso chama a atenção. Sem contar as minhas mil sardas espalhadas pelo corpo. Não faço ideia do motivo deles acharem que isso é beleza.

Minha cauda é um caso a parte. Só aparece quando entro no mar logo após a transformação. Assim como cada espécie de peixe tem suas escamas, nós temos nossas caudas. Na verdade são feitas de escamas também. As minhas são azuis e combinam com os meus olhos, era o que minha mãe dizia... São brilhantes como a água do mar e se destaca com as luzes, principalmente dos postes iluminados de Thamisian. E para acabar com toda aquela fantasia sobre nossos "tops", bom... Não usamos tops, assim como nossa cauda, são feitos de escamas e geralmente são da mesma cor. E não caem.

Temos guelrras abertas no pescoço, uma de cada lado que nos ajudam a filtrar a água para respirar e pequenas barbatanas nos braços que quase não aparecem. Nossos "espaços" entre os dedos das mãos são interligados por uma membrana que ajuda ainda mais a nadar. Parece até aberração vendo por esse lado...

Meu cabelo no mar fica muito mais sedoso e brilhante do que em terra firme. Não é fácil ter que ficar hidratando e lavando-o todo santo dia! E longe de coisas que o queimem!

Mas enfim... Ser humana não é fácil quando se não é humana...

- Pensando em muita coisa? - dessa vez eu pulei mesmo porque já estava na terra. Em um banquinho de pedra em um lado mais vazio da escola. E de repente alguém fala comigo. Tirei o fone de ouvido e olhei para o lado.

Lipe, meu amigo desde que cheguei a "terra" ano passado, estava sentado do meu lado e esperava que eu o respondesse. Talvez ele fosse o único em que eu pudesse contar o meu segredo.

- É... Mais ou menos...

- Xi... Que é que aconteceu pra deixar você assim?

Se eu tinha outro segredo era esse: eu gostava do Lipe. Quero dizer acho que gostava, do tipo gostar mesmo, pelo menos sentia algo um pouco mais forte do que amizade e imaginava que se eu conseguisse dizer para ele quem realmente sou, talvez ele me aceitasse. Só que o problema é que ele vivia me falando das garotas que ele achava que podia dar uma chance a ele e esse tipo de coisa. Me pedia conselhos até. Como se eu pudesse dizer o que garotas normais gostam... Mas se bem que ultimamente ele não me vem falando mais sobre isso...

- Você fez de novo - ele disse revirando os olhos.

- Fiz o que? - eu respondi sem entender direito.

- Me ignorou e voltou a pensar. Você tá fazendo isso muitas vezes ultimamente.

- Ah... Desculpa...

- Mari... Eu queria conversar com você sobre uma coisa importante. - dessa vez ele olhou diretamente pra mim com aqueles olhos cor de mel que só ele tem e uma ruguinha apareceu em sua testa. Ele falava sério.

- Diga.

- Hum... Não aqui. A sós.

Depois das aulas marquei com ele de nos encontrarmos na praia em frente a casa da minha tia. Ele era pontual. Chegou bem na hora. Nem um minuto a menos; nem um minuto a mais.

- Podemos ir pro mar? - ele disse já basicamente de calção de banho.

- Hum... Eu não acho uma boa ideia...

- Vamos Mari, eu tenho que te mostrar uma coisa. É bem importante mesmo.

- Tá... Vou me trocar, já volto.

Procurei por um biquini novo e o vesti na hora. Assim que passei pela minha tia, que estava na cozinha, eu disse a ela que tudo estava sobre controle mesmo que sua testa franzida quisesse me dizer que ela não tinha tanta certeza sobre isso.

- Pronto - eu disse ainda meio receosa.

- Tá... Então. Chega mais perto, quero que você entre comigo. e não esquece de abrir os olhos debaixo d'água tá? Eu quero que você seja a primeira a ver. Eu tô com muito medo. As vezes eu fico pensando em quem realmente eu sou... E você que entende de água e mar mais do que eu, talvez pudesse me ajudar...

- Do que exatamente você tá faland...

De repente nossos corpos ficaram a milímitros de distância mesmo já com a canela afundada na água. Estranho. Muito estranho. Ele começou a me abraçar forte e depois me olhou com preocupação. Depois disso, ele me beijou. Na boca. Foi um segundo rápido e molhado. Eu não sabia mais o que estava acontecendo. Foi um pouco doce também. Algo inexplicável, assim do jeito que a gente não sabe dizer mais nada a não ser "incrível".

- Isso é pro caso de não dar certo - ele disse e me abraçou mais uma vez antes de uma onda gigante engolir nós dois por inteiro...

Bec
Enviado por Bec em 10/01/2013
Reeditado em 24/01/2013
Código do texto: T4078094
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