RETRATOS DE INFÂNCIA - CAP. 13

O caderno exalava um cheiro de antiguidade no ar. Ele era preenchido por Amália desde sua infância, logo que ela aprendeu as primeiras letras. Tinha na capa uma fotografia de Dona Francisca com suas primeiras rugas sobre o fundo verde com o título em azul. Havia uma fitinha azul clara que era usado como marca páginas. O caderno tinha mais de duzentas histórias. Umas pequenas, outras maiores. Casos que “os antigos” contavam, como ela dizia, entre histórias de escravos e da nossa rua, coisas que ela ouvia e repassava para a filha, muitas vezes, certamente, usando sua fértil imaginação.

Dona Francisca morreu aos cento e dois anos. Vivera feliz até então, segundo sua filha. Morrera em casa. Nesta cidade muitos partem para a eternidade em seus lares. Os recursos são muito escassos e quando se aproxima o momento final, não há muito para onde ir. Também é assim preferível à frieza de uma U.T.I. em que o agonizante sofre as dores da morte na ausência daqueles que ama. Amélia contou toda a longa história da agonia de sua mãe, que ouvi atentamente, sobre a dificuldade de respirar provocada pelo enfisema, causado pelos cigarros tantos que aquela mulher fumou.

Foram tantas histórias que ouvi, tantas emoções repassadas. Mas marcou-me sobremaneira a do escravo Manoelzinho. Essa história se passa numa fazenda onde a pequena Francisca vivia. Claro que ela não presenciou o fato, mas como sempre dizia, o papai havia contado. A fazenda, pela descrição, era nas redondezas de nossa pequena cidade. Falava de um lugar de campos baixos e um longo horizonte, próximo a um rio onde se erguia a fazenda, cenário do episódio. Foi num inverno, fazia muito frio, o que nem é comum nestes lugares. Manoelzinho, que não tem o nome completo e talvez se chamasse Emanuel ou Manoel, era ainda menino, pelos relatos, uns quinze anos, portanto começando a sua vida. Era escravo na fazenda e havia sido requisitado para ajudar na plantação de arroz. Era num brejo e havia ficado o dia todo debaixo d’água, ajudando na colheita. Na volta, era um pouco distante da sede da fazenda, vieram os escravos todos, acompanhados do feitor que estava sempre preparado para os mais crueis castigos.

O fim da tarde era lindo. O sol se punha quase à linha do horizonte, naquele lugar ausente de montanhas. Pássaros cruzavam o ar em revoadas coletivas e cantos cadenciados. No entanto, essa beleza era incapaz de seduzir o feitor. A certa altura, Manoelzinho começou a tossir e disse:

__ Ai meu Deus! Esse dia mergulhado naquele brejo não me fez bem.

A frase do menino ecoou como uma ofensa aos olhos do feitor. Escravo não devia nem falar, quanto menos reclamar. Foi quando ele sacou seu chicote e gritou ao menino:

__ Cala a boca escravo! Não sabe o que é um tronco?

E enfurecido, distribuiu chicotadas no corpo já cansado do menino. Ninguém ousou defendê-lo, e ele seguiu o trajeto de uns cinco quilômetros a pé, com o corpo em feridas. Além do sangue corria também lágrimas em seus olhos. Dizem que ao chegar, ainda o feitor resolveu completar o castigo, passando uma mistura de limão com sal nas mãos ensanguentadas do garoto. Como se não bastasse, ainda o resolveu deixar amarrado ao pelourinho, no meio da fazenda. Foi uma longa noite à espera do dia novo dia.

Essa história me deixou assustado, pois sempre olhei para minha Santo Antônio da Bela Vista como um lugar tão cheio de paz. Olhei da varanda para a nossa rua ainda tão morta como no passado e fiquei observando aquelas pedras por escravos colocadas ao chão. Tentei não imaginar a cena que me contava o livro de Amália. Em vão. As pedras daquela rua pelo jeito tinham muito mais histórias a contar do que minha simples infância.

Amália virou uma página e com um sorriso me havia dito algo que me deixou arrepiado de emoção. Ela sorriu, vibrou e disse num misto de surpresa e de espanto bom:

__ Veja, Fredo, minha mãe me contou sobre o dia que sua família se mudou para a casa da esquina. Ela conta tudo! Escute.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 07/06/2012
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