Eureka - O Mundo de Jade Cap.1
1 - Mersklan
É uma das maiores cidadelas de toda Ancarina. Suas edificações são simples mas bem trabalhadas em madeira com grandes picos brancos em mármore. Rodeada pela floresta de Lenkor e banhada pelo Rio Celeste, Mersklan é uma pequena cidade muito cobiçada por sua grande riqueza de elementos raros, como a Purina, matéria retirada das árvores de Lenkor em uso de poderosas armaduras em nome do Rei. A população é extremamente hospitaleira; são chamados de “Anjos de Gelo” — por sua tonalidade de pele ser branca como o gelo e suas feições tão angelicais que quem não conhece pensa que são criações diretamente dos Deuses. Mas, em muitos, ainda permanecem cicatrizes de uma verdadeira carnificina de tempos remotos.
Livro Vermelho, fragmento. Pág. 21
O ponto mais alto de toda Mersklan era um edifício com uma ampla galeria no alto recheada de arcos envidraçados, que davam para o horizonte chamado de Oorden. Dali à esquerda, Oorden era margeada pelas baixas casas onde vivia a maior parte da população, e à direita via-se todo o panorama. Ao fundo, o Palácio Real, com seus picos dourados, cujo esplendor podia-se ver ao longe, uma fortaleza inexpugnável.
Jade gostava de ficar ali, ora para esquecer os problemas, ora para refletir sobre sonhos que guardava na memória. E isso era fácil, pois sempre havia guerreiros ou guardas em nome do rei que refletiam suas armaduras ao longe. Já havia se acostumado com a ideia de que ser tornar um guerreiro é muito difícil, mas ninguém a impedia de sonhar.
Vez ou outra corria por entre as ruas e vales com uma espada de madeira, investindo contra monstros criados da sua imaginação.
Jana, a mãe de Jade era a pura beleza em forma de mulher. Podiam dizer que Jana era o típico de mãe coruja que trata seus filhos com a mais tênue doçura. Mas nem sempre era sim, a vida lhe forçou a ser rude com certas coisas. E isso era uma característica que chamava a atenção dos clientes. Como de costume, usava seus mantos pretos ou cinzas e ficava por horas trancada na oficina improvisada, num cômodo da casa.
Jana era a única alquimista de toda Eureka e seus trabalhos eram muito prestigiados, mas muitos não pagavam direito ou nem chegavam a pagar; o pouco que ganhava era o suficiente para se sustentar. Muitas vezes, chegava um estranho fardado e requintado com outras intenções, mas Jana não se dava ao luxo de sair com outros homens. Não pensava mais nisso. Seu trabalho e Jade eram tudo, e isso era o suficiente para viver.
Jade se impressionava cada vez que um estranho entrava na sua casa e se metia para dentro da oficina onde sua mãe trabalhava. Jana receava a ideia de ela se tornar uma guerreira e, sempre que Jade perguntava algo sobre o assunto, ela se esquivava ou dava meias palavras, mas sabia que, mais cedo ou tarde não teria desculpas suficientes. E isso aconteceu certa noite, enquanto jantavam.
– Quando você vai me dar? – perguntou Jade com a colher na mão.
– Do que fala menina? – perguntou a mãe, como se não soubesse do que se tratava.
– Minha armadura, um bracelete, uma couraça, qualquer coisa.
– Pra quê? Para ficar fingindo por aí que é uma guerreira?
Jade desanimou, mas teria que insistir. Queria soltar umas poucas e boas, mas mudou de estratégia. Parou de comer e fez a cara mais triste possível.
– Eu sei que sou um peso morto para você, tampouco faço algo útil para lhe ajudar. Não mereço nada, nem a comida que como, quanto mais um bracelete ou uma couraça...
– Não, Jade – a mãe sentou-se ao lado da filha, acariciando os cabelos – Você nunca foi um peso morto. Você é minha filha, é parte de mim. Eu sei que às vezes eu perco as rédeas, mas é muito trabalho, desculpa – beijou-lhe a face e a abraçou. – espere um instante aqui, buscarei algo.
Jana saiu e seguiu para a oficina. Mordeu a isca, só faltava vir à tona e trazer o prêmio. Jana apareceu depois, com um bracelete cinza, ornamentado com pedras douradas que se destacavam no branco da sua pele, juntamente a seu manto preto até os joelhos que sempre usava para trabalhar.
– Aqui está! – tirou o bracelete do braço e deu a Jade – Isto é o suficiente para você se comportar?
Jade esbanjou um largo sorriso e a abraçou, afinal o plano havia dado certo, rolou o bracelete pelos dedos, admirando como um troféu, enquanto sua mãe a observava.
O ar doce da primavera ainda forçava a sua última resistência antes do verão, que particularmente era extremamente chuvoso e frio; e o inverno era quente. Essa era a ordem das coisas em Mersklan.
Jade nunca se importou com isso. Adorava os dias frios e adorava a neve quando caía. E quando caía, fazia anjinhos na neve ornamentando-os com uma espada de madeira.
Seus últimos dias de primavera foram passados nos bosques que antecipavam a floresta de Lenkor, pois de lá Jade não podia passar. Logo ficava a descobrir lugares próximos e analisando cada pedrinha que encontrava no chão. Mas era um dia especial. Jana havia conseguido com um antigo amigo – que por sinal era um mago muito conhecido – para lhe ensinar alguma coisa a respeito da magia.
– Ela está precisando de um pouco de diversão, de algo novo. Dessa forma quem sabe ela esqueça esse sonho de se tornar um guerreiro e na certa goste da magia? – disse Jana a Keneb, seu mago amigo de confiança.
– Está bem. Vamos ver como ela se sai com a magia.
– Obrigada.
Deram um beijo no rosto e se despediram. O encontro de Keneb e Jade seria próximo à floresta de Lenkor, bem antes de onde se extraia a Purina. Jade já estava à espera do mago sentada em um tronco de arvore quando o avistou.
Ao longe, parecia um boneco, com um manto prateado e bem bordado, e um cabelo enrolado e bem grande com o grisalho da velhice. De modo, que quando andava seu cabelo brincava dando pequenos saltos. Jade riu do momento e esperou ele se aproximar, mas não agüentou e começou a rir freneticamente.
– De que você rir? Já imagino, meu cabelo é uma criatura viva. São muitas mechas que criaram vida e dão pulinhos de liberdade tentando alçar vôo para fora da minha cabeça. – uma careta completou a frase e Jade riu mais ainda.
– Desculpa, não pude evitar. Desculpa... – disse ela tampando as risadas com o dorso da mão.
– Tudo bem. Já estou acostumado. Vamos indo, teremos que andar um pouquinho.
– Está bem.
Seguiram em passo firme, por entre os pequenos arbustos do bosque e com um pouco de dificuldade. Pois a neve do dia anterior ainda inundava a área da cidade inteira. Jade usava um casacão de lã marrom que lhe cobria até os joelhos e uma bota preta. Usava também o presente de sua mãe que lhe cobria os braços por cima do casaco.
Avistou uma cabana; a cabana de Keneb. De longe podia se sentir o cheiro doce de alguma coisa que estava sendo preparada, Keneb se antecipou.
– Entre e não mecha em nada – disse abrindo a porta apontando seu dedo indicador.
Jade anuiu.
Mas logo que entrou foi tomada pelo desejo de tocar, sentir e usar. Pois tudo que ali estava era de uma curiosidade descomunal. Eram bolas grandes jogadas em caixas espalhadas no chão, vasos com plantas curiosas e coloridas; uma estante com um bocado de livros empoleirados. Espelhos, cubos, quadrados, uma variada espécime de objetos conhecidos e até então desconhecidos para Jade.
Aproximou-se de uma pequena bola preta com um olho vermelho desenhado no meio, que se destacava. Keneb estava em um cômodo adjacente, então Jade aproveitou e pegou a bola em suas mãos. A reação foi instantânea: a bola se expandiu dando lugar a duas pequenas asinhas, o olho se afastou e se formou uma cabeça, logo se criou braços e pernas.
Uma criatura que coube na palma de suas mãos com duas pequenas asas e com um grande olho vermelho se espreguiçou e murmurou algo indistinguível. Jade se assustou e a soltou de imediato, mas em vez de cair, a criatura parou no ar, estava voando.
– Não custava segurar-me mais um pouco? – disse a criatura.
– Desculpa, fiquei com medo, o que é você? – disse Jade se aproximando e o olhando com certo receio.
– Sou um Kaos. Fui criado por Keneb apenas para segui-lo até o fim de seus dias. Mas confesso que sou um tremendo descuidado, por isto me deixou a mercê aqui nesta estante.
Nesse momento Keneb entrou com uma jarra de suco nas mãos.
– Pelo visto não adiantou lhe falar nada – disse Keneb a Jade com a testa franzida – mas tudo bem. Esse é Krambs e ele é um Kaos.
– Isso eu já sei, pois Krambs me contou.
– Hm.. Pelo visto ele deve está doido para escapar e causar confusão pela redondeza como sempre faz, não estou certo Krambs?
Krambs anuiu derrotado baixando seu grande olho vermelho.
– Em outra ocasião vocês dois conversam. Volte para a sua forma Krambs, por favor. – disse Keneb, se sentando em uma das cadeiras da mesa.
Krambs ficou um tempo se lamentando e logo voltou a sua forma anterior. Se fechando e voltando a ser uma simples bolinha.
– Bem Jade. Sente-se, quero lhe mostrar algumas coisas. – disse ele, incitando-a. – Trouxe um suco de maçã. Fique à vontade.
- Obrigada. – Pegou um dos copos vazios de cima da mesa e o encheu de suco.
Keneb fechou os olhos pronunciando uma ladainha, na palma de sua mão surgiu uma bola azul.
– Ar – a bola se dissipou. – Vou-lhe contar algo. Sua mãe me pediu para eu te ensinar apenas alguns truquezinhos. Mas sinto em você uma enorme força e consigo perceber isso de longe com tanta clareza. Tente fazer o que eu acabei de fazer. Não é tão difícil e também não é tão simples. – Jade olhou incrédula. – Vamos lá. Concentração e pense em coisas que tem algum sentido com o ar. Pense em coisas boas.
Secou o copo com apenas uma golada e estendeu o braço diante a mesa.
– Hum... Eu não sei... Fechar os olhos e imaginar coisas boas. Vou tentar. – disse Jade fechando as pálpebras e puxando a manga de seu casaco.
– Concentração é o principio de tudo. Depois pensamentos positivos. Logo quando sentir a energia fluir pelo seu corpo, tente concentrar toda essa energia na palma de sua mão.
– Não consigo. Não acontece nada. Não sinto nada. – disse Jade depois de varias tentativas frustradas.
– Tente de novo. Concentre-se. Imagine o impossível em suas mãos. Crie um mundo invisível onde apenas o ar existe, nisso deixe fluir e tente concentrá-lo em suas mãos.
Jade continuou com os olhos fechados. Fez da forma que Keneb sugeriu. De repente se viu pensando num poderoso vento, que varria toda a Eureka do universo. Foi apenas uma leve imaginação que se construiu. Mais foi o suficiente para a energia fluir pelo seu corpo. Uma tênue luz apareceu nas suas mãos, sentiu as entranhas gelarem e a visão da Eureka imaginada se dissipou. Uma onda de ar se dissipou na sua mão, espalhando alguns objetos ao redor. Abriu os olhos e viu o que causou.
– O que pensaste para causar isso? – disse Keneb em tom sério, indicando os objetos derrubados.
– Eu... Pensei em Eureka destruída... Não entendo, senti a energia fluir tão rápido quanto à velocidade que os pensamentos surgiram, mas foi inexplicável.
– Eu sei o que houve. – pousou seu antebraço sobre uma pilha de livros velhos – Isto é uma tática que nós magos chamamos de Principio Inverso. Em vez de criar pensamentos bons, pensamos em coisas ruins para criar uma magia mais forte. E muitas das vezes isso acontece em momentos de raiva ou simplesmente por motivos insólitos. Mas eu vou logo te avisando Jade – aqui mudou o tom para grave – isto é bastante perigoso, pois não sabemos até onde nossos pensamentos ruins poderão nos levar e qual magia poder-se-á criar a partir deste. O Principio Inverso é traiçoeiro. Mas por hora não precisamos nos aprofundar no assunto.
– Entendo. Então devo começar criando pensamentos bons para ir me aperfeiçoando e me acostumando com a magia?
– Sim. Deve começar com o Principio Básico. E este já está em você, mas deverá refiná-lo e seguir por outros princípios da magia. Acho que por hoje chega. Aprendeu um pouco sobre os princípios e ainda me deu o trabalho de ajeitar estas coisas que caíram. – disse ele rindo.
Jade estava estupefata. Queria se tornar uma guerreira, daquelas que empunham pesadas armas que defendem seu reino na linha de frente. E por mas que fosse obra do destino, nunca pensou que pudesse gostar tanto de magia. Ganhou uma sensata admiração por Keneb. Levantou-se e ficou sem palavras para agradecer.
– Obrigado. – Fora o suficiente.
– Vamos. Temos de ir. Devo levar você de volta. – disse empilhando os livros caídos – E não se esqueça de praticar sempre, mais tenha cuidado da forma que você usa seu talento.
A palavra talento preencheu a cabeça de Jade por completo. Não sabia muito sobre isso e nem buscou pensar em que talentos possuía. Mas se ela mesma não chegou à conclusão de qual talento possuía alguém ô fez. Logo Keneb fora sincero. Ela tinha um potencial em comum. E Jade viu que isso era bom. Saíram porta afora e seguiram a trilha coberta de neve novamente.
– Como você sabe tantas coisas sobre magia? – perguntou Jade, a meio caminho andado.
– Como acha que eu envelheci? As pessoas aprendem com a vida, e eu não fui exceção. – seus olhos a fitavam sempre que falava.
– Então eu posso esperar que o futuro vá me trazer coisas brilhantes?
– Sim. Na verdade você deve correr atrás. Existem muitas pessoas boas, mas também existem muitas pessoas más. E você terá que escolher sempre o caminho da paz e da esperança. Só assim será uma grande guerreira ou uma sacerdotisa ou... Quem sabe.
– Você é um sacerdote? – perguntou curiosa.
– Não. Sou um mago. Pertenci a Elite Real por um longo tempo. Mas agora cansei, quero aproveitar a vida; Viver da paz enquanto ela ainda existe. Pois preste atenção Jade – parou e olhou pro céu, como se conseguisse enxergar as lembranças – o mal sempre retorna. Não temos como fugir é um ciclo vicioso. E cabe a nós romper esse ciclo por algumas gerações ou quem sabe finda-lo.
– Entendo. Vou seguir seus conselhos.
Chegaram à morada de Jade, uma multidão se envolvia ao redor.
– Devem ser fregueses. – disse Jade convicta.
Alguns magos reconheceram Keneb e o chamaram para um canto. Jade observava a multidão, tentou entrar na casa mas foi impedida por Keneb. Logo depois Keneb saiu ambíguo.
– Venha aqui, precisamos conversar – disse em tom sério.
– O que está acontecendo?
– Diga a verdade, sabe a razão. Não adianta mentirmos. – disse um dos magos ao redor de Keneb.
– Jana está morta – disse Keneb soturno.
– Como assim? – Jade entrou em desespero, correu no mesmo instante por entre as pessoas e entrou na casa. O corpo de Jana jazia no chão, um mago e três guerreiros bem trajados da Elite Real estavam presentes. Tentaram conter a menina mas não fizeram a pedido do mago.
– Jade seu nome não é? – disse o mago melancólico.
Jade não respondeu a principio, olhou-o com suas faces vermelhas onde lagrimas escorriam. Abraçou sua mãe. Percebeu o vazio começando a se formar em sua volta. Pode sentir seu mundo se fechando em trevas. A dor invisível que mutilava sua cabeça, o terror espalhado em rubro no corpo de sua mãe.
Repetidas vezes o mago dizia ao seu ouvido que tudo iria ficar bem. Virou-se ao mago depois de ignorar-lo varias vezes. – Por quê? – a pergunta soou o mais simples possível, mas da mesma impossibilidade de resposta.
– Jade. Sua mãe deixou-lhe uma carta em forma de magia com as últimas forças que lhe restavam. Não sabemos como ela morreu, pois não há indícios. Foi de com uma mágica tão aprimorada que não conseguimos descobrir que essências o assassino usou, posso mostrar-lhe a carta se quiser ver agora...
– Quero agora, por favor – disse Jade se pondo de pé.
O mago fechou os olhos por um momento, uma bola cinza apareceu na sua cabeça essa bola se expandiu e criou formas de uma carta:
Jade, o pouco tempo que tenho pode não ser suficiente para me despedir. Você irá ser uma grande guerreira ainda. E digo que tive o maior prazer de cuidar de você todos estes anos. Pois quero que saiba, que não sou sua mãe de verdade, nem sei quem é seu pai. Considere-se enviada dos deuses, minha herança é a armadura mais perfeita que já fiz. Demorei dez anos para terminar-la. Quando estiver na idade certa à própria armadura se encarregará de vestir-la. Enquanto isso não poderá usar-la. Quando terminar de ler esta mensagem, minha magia acabará e se tornara parte do ar e sua armadura resplandecerá. Guarde-a com muito cuidado e siga seus instintos sempre na pureza do seu coração.
De sua eterna mãe, Jana.
A carta se dissipou e foi virando pó, aos poucos foi tomando forma de uma pequena caixa dourada.
– Essa é sua armadura, seu tesouro, sua dádiva. – Disse o mago, entregando-lhe a pequena caixa dourada.
Jade a pegou e colocou no bolso esquerdo do casaco – Obrigada...
Mãe – disse ela com os olhos marejando.
De repente a porta se abriu e o mago fez uma sensata reverencia a quem entrara. Um senhor, que tinha rugas que demonstravam a sua alta idade e seu rosto altivo que denotava grande sabedoria.
– O que causaram afinal? – disse o intruso quase num berro, seus olhos faiscavam como piche.
– Sano, contamos a verdade, não tínhamos outra opção.
– Sempre existe outra opção.
Sano Bangodolf tirou do bolso um pequeno pergaminho e pronunciou algumas palavras. Jade arregalou os olhos e caiu, Keneb a segurou.
– Apagaste a memória dela? – perguntou Keneb.
– Isto é impossível. Algo grandioso até para mim mesmo, apenas mudei a memória dela. Guarde a armadura dela que isto será de grande preciosidade no futuro. Sigam-me que temos muito trabalho a fazer antes que ela acorde. – disse isso e se foi, o restante o seguiu.