Proeminência Selvagem - Arthur
“Quais são as chances?” Era a única coisa em que conseguia pensar. Seus cabelos castanhos sem corte caíam sobre seus olhos que haviam acabado de se abrir. A luz tornava tudo tão nítido e tão fosco. Suas mãos apertavam a vegetação ao seu redor, tentando alcançar algum apoio para que pudesse erguer o seu corpo. Não que lhe faltasse força, pois seus braços já denunciavam certa destreza física. Mas lhe faltava a obediência dos músculos. Talvez fosse a luz, ou o susto, quem sabe fosse um sonho. Mas o vento sobrava e seus cabelos levemente alongados balançavam, o que tornava tudo real demais para ser apenas um sonho. “Preciso correr?”.
Pensou em sua vida, que apesar de ainda ser a mesma já anunciava um sentimento de mudança bruta. Seu povoado. Reduzido a mulheres e velhos pela guerra, dos quais ninguém sabe muito bem como conseguiram sobreviver tanto tempo. Não eram bons em lutar, em se esconder, em magia, em polir armas, em estratégia, feitiçaria, nada. A única dádiva de seu povo era o manuseio do fogo. Com sorte, aprendeu algumas boas técnicas desta arte com seu pai, antes dele morrer. Praticou mais vezes, para garantir a segurança de sua mãe e de suas irmãs. Mas era tudo. Seu povo tornou-se nômade pelo impulso da guerra. Sem homens suficientes para formar um batalhão de ataque ou para construir uma defesa eficiente restou como saída a vida nas estradas. Desbravando florestas, montanhas, rios, prados. Hora ou outra cruzavam com um exército inimigo, e estes foram confrontos que deram conta de quase dizimar sue povo. Agora, não só corriam de um lado para o outro, mas também se escondiam.
Arthur se levantou, olhou ao redor e pôde ver mais corpos ao chão. Alguns dos quais pareciam começar a recuperar a consciência. Notou um anel em seu dedo, de cor prata, com uma pedra vermelha brilhante ao centro. Foi aí que notou a realidade. Não era um sonho. Estava naquilo que seus antepassados insistiram em chamar de Purgatório dos Deuses. Para ele, até então, era uma lenda, criada para sustentar a esperança daqueles cuja guerra levou a vida quase por completo. Imaginava se agora, mais do que nunca, os Deuses realmente optaram pela ironia. Olhou para as outras pessoas deitadas, todas por sobre o mesmo campo de trigo em que ele estava. O céu estava cinza, e somado ao vento podia-se imaginar uma tempestade para breve. Mais adiante, viu uma garota. Pela cor dos cabelos é uma Síriah. “Covardes”, pensou. Nunca tinha visto uma antes, mas sabia que nos tempos de guerra mais acirrados os Siriahnos se entranharam nas florestas e nunca mais foram encontrados, a menos que quisessem atacar os outros povos. “Mas também trata-se de esperteza”, pensou ele. Se é uma guerra, preciso ficar de olho nela. Mais adiante, pode avistar uma outra garota, ruiva, já se levantando com a mesma perceptível desorientação que tivera. Uma Delya. “Músicos idiotas”, pensou. Mais distante, avistou um homem. Aparentemente alto, muito forte. Pode ver sua roupa de couro negro, com musculosos braços a mostra. Cortes por todo o braço denunciavam que era de povoados subterrâneos, que por sinal, não traziam boa fama. Foi aí que Arthur cessou a tremenda besteira que estava fazendo ali, parado, colocou-se de pé e tentou se afastar. A garota loira a esta altura já havia notado sua presença consciente. Só restou levantar suas mãos e lançar duas enormes labaredas de fogo ao redor. O campo de trigo, aparentemente muito seco, fez o fogo alastrar com uma velocidade surpreendente. Era o que ele precisava para tomar distância e desaparecer de vista.
Ele achava a lenda o que deveria achar: que era uma lenda. Achava que a guerra era incessável, ironicamente da mesma forma como a chamavam. Mas nunca acreditou que haveria uma saída para os povos. Não presenciou, mas escutou inúmeras histórias de como seu mundo se reduziu a vinte e cinco povoados, duelando brutalmente uns com os outros. Presenciou a consequência disto: fome, pestes, escravidão, tortura. Todos os homens da sua família foram levados pelo combate e ele agora era o único responsável pela sua mãe e suas quatro irmãs. A lenda era idiota para Arthur. Pensava que não fazia sentido os mesmos deuses que os castigavam proporem uma salvação. Se bem que a salvação era uma ironia. Era nova guerra. Fresca e mais brutal. Simplesmente dormir na véspera do início de um ano lunar e acordar em um mundo diferente. Um mundo carinhosamente chamado de Purgatório dos Deuses. Um purgatório com P maiúsculo. Ali, ninguém sabia o que acontecia. Só sabia que era uma chance de salvar seu povo da guerra e que um representante de cada povo tinha esta mesma chance. Lembrava-se do que contavam: todo início de ano lunar um jovem de cada povoado restante desaparecia. Não é preciso dizer que de início os povos interpretavam o desaparecimento como ato de guerra e em um ato de vingança atacavam ainda mais uns aos outros. Mas algo estranho aconteceu desde a primeira leva de desaparecimentos. A cada nova leva de jovens que sumiam, tempos depois, um povoado inteiro sumia. Foi assim pelas três ou quatro primeiras vezes. Até que uma pessoa de cada povoado recebeu uma visão a que atribuíam ser uma mensagem dos deuses, informando que os desaparecimentos dos jovens e o posterior desaparecimento de um povoado estavam interligados. Também dizendo que aquela era uma chance dos povos se livrarem de vez da guerra e serem levados para um novo mundo. No entanto, os deuses é que selecionariam, de tempos em tempos, o representante de cada povo para ser a figura de sua salvação.
Isso era tudo que a visão lendária dizia. A partir daí muito foi subentendido, criado e aumentado. Pelo desaparecimento de apenas um povoado por vez, posterior a uma leva de desaparecidos, subentendia-se que apenas um dos escolhidos honrava a salvação de seu povo. Dos vinte e cinco povoados, restavam quinze. Dez já haviam desaparecido. Ou para os que acreditavam na lenda, sido salvos.
Agora Arthur pensava que deveria ter dado mais ouvidos à lenda. Estava ali, no que aparentemente era o famoso Purgatório dos Deuses. Era mesmo o representante do seu povo, correndo agora em um mundo do qual não sabia nada. Parou por alguns minutos depois de ter julgado estar distante o suficiente dos demais. Refletiu que não sabia nada sobre aquele lugar. Menos ainda sobre o que deveria fazer. “O que teriam feito aqueles que conseguiram a salvação de seu povo?”, pensou. Foram honrados? Salvaram vidas? Conquistaram tesouros? Descobriram enigmas? Ele não sabia. Por um instante pensou também em todo o sofrimento de seu povo, agora frágil e nômade. Se ele era mesmo o representante de seu povo, queria tentar livrá-los de tanto sofrimento. “O que diabos estou fazendo?”, se questionou. Foi aí que se virou, e seguindo a fumaça do incêndio que causara, decidiu voltar ao lugar onde os outros estavam.