Vivendo em um engano (Capítulos 20 e 21)

CAPÍTULO 20

Depois de ouvir a história do Bernardo eu me sentia aliviada, mais leve, acho é porque o medo foi embora, coitado, ele é como eu, eu não sou a única injustiçada no mundo.

Já havia escurecido, mas antes tínhamos andado mais um pouco e encontramos o final da mata, só que nos escondemos no meio dela ainda para podermos dormir sossegados.

Estava deitada olhando para o céu, ele estava muito estrelado, lembro-me que no orfanato a mulher que cuidava da gente dizia que quando alguém morria virava uma estrela, agora adulta e estudada, eu sei que isso não é verdade, mesmo assim ainda finjo acreditar que meu pai e o Eduardo viraram estrelas e estão olhando para mim. Acho que isso vale para o Bernardo também.

- Acho que há três estrelas no céu olhando por você.

- O quê?

- Suas filhas e sua mulher. Sei que isso soa infantil, mas se acreditarmos nisso nossos corações não sofrem tanto, pois estrelas são tão bonitas e brilhantes.

- Obrigado.

- Eu quero que você saiba que eu sei o que você sente. Eu sei que sou meio boba, que nem pareço ter 23 anos, mas acho que é porque eu não quero crescer, saber que nada pode voltar atrás, ainda sonho com o dia em que serei tratada bem, que encontrarei alguém que me dê carinho e me faça feliz. Eu achei que tinha encontrado este alguém, o Eduardo, mas ele morreu. Por isso eu sei o que você sente, porque eu também perdi alguém muito especial para mim, alguém como a sua família era para você.

- Obrigado de novo, mas você não sabe, pois você não precisa conviver com a dor de ver o olhar das pessoas te acusando de tê-lo matado.

- Não? Você não sabe do que eu fui acusada, não é mesmo?

- Não. Por que você foi presa?

- Me acusaram de assassinato.

- Então você é uma assassina?

- Não! Somos parecidos Bernardo, eu estava no lugar errado e na hora errada. Eu fui na festa do meu amigo, mas estava me sentindo meio mal, então fui......

Contei para ele a minha história, como todo aquele engano começou.

- .....e foi assim que eu fui parar na penitenciária.

- Você disse que havia um homem, você conseguiu vê-lo, viu o rosto dele?

- Não!

- Ah!

- Estamos no mesmo barco.

- É o que parece. Mudando de assusto, quando estávamos lá no depósito você disse para o Edgar que não havia mais ninguém lá, somente você.

- Ah, aquilo foi uma idiotice, é claro que ele sabia que você estava lá, não é mesmo?

- É, mas eu quero te agradecer, pois achei muito legal da sua parte, percebi que se não estivéssemos algemados você não iria me entregar.

- Eu que fui a burra de não entrar na caixa, a culpa foi minha de ele me pegar, você se escondeu, deveria sair impune, não é mesmo?

O Bernardo levantou do chão e sentou, olhando-me nos olhos.

- Na verdade não. Amélia, eu disse que achei legal, mas não é o certo. Eu te levei comigo obrigada, tenho que te pedir desculpas por isso, não devia ter feito, eu fui egoísta, minha sede de vingança falou mais alto, aquela era a hora e eu não me importei com você. Você deve me entregar quando puder, não me encubra, primeiro porque é errado, segundo porque pagará por um crime que não cometeu, o que é injusto, o que eu detesto.

- Sei. Desculpas então?

- Não precisa se desculpar também.

- Então?

- Só não se preocupe comigo.

O Bernardo me deu um sorriso e eu retribui. Na verdade ele está certo, eu não posso me preocupar em machucar a outra pessoa e agir contra minha vontade, tenho que fazer o que é melhor para mim, a psicóloga já tinha me falado isso antes, o que me falta é colocar em prática.

Ficamos em silêncio por um momento olhando um para o outro, então ele se deitou novamente.

- Está com sono?

- Um pouco, você não está?

- Na verdade não Amélia.

- Ah. Quer conversar um pouco?

- Rsrs. Aceito.

- Rsrsrs. Sobre o que?

- Me fale sobre você, assim eu ouço sua voz e posso acabar dormindo.

- Está dizendo que a minha conversa é tão chata que te faz pegar no sono?

- Huahuahuahuahua. Não.

Nunca o tinha visto rir daquele jeito, estava gargalhando. Rsrsrs, que risada meio estranha, me assusta um pouco. Rsrsrs.

- Quando falei sobre a sua voz, eu quis dizer que ela é muito suave, calma, doce, assim eu irei dormir como se estivesse ouvindo uma música lenta.

Senti meu rosto queimar, nunca alguém falara da minha voz desse jeito, que vergonha.

- Então, me fale sobre você.

- Está bem. Meu nome é Amélia de Melo, eu tenho 23 anos e sou confeiteira.

- Confeiteira? Bom, muito bom. Eu amo doces.

- Eu também, é muito bom, parece que a vida fica mais feliz quando comemos um.

- É, esquecemos dos problemas, só nos importamos com o memento de saborear o doce.

- Eu penso exatamente como você, é maravilhoso. Rsrs. Então, eu perdi meus pais com oito anos, como não tinha alguém da minha família vivo para cuidar de mim, eu fui para Casa das Meninas, uma casa de adoção. A senhora Melo, minha mãe adotiva, diz que minha mãe biológica me abandonou, mas me lembro do acidente de carro, sei que fui para lá porque eles morreram, não fui abandonada. Na Casa, a família Melo apareceu e eu gostei deles, eles eram muito doces, mas isso só no começo. Com o tempo, a senhora Melo me deixou claro que eu era fruto de uma bondade da família para a sociedade, por isso eu não teria de tudo, igual a Angélica, filha biológica deles e com a mesma idade que eu.

- Nossa!

- É, passei por muitas coisas lá. Para você ter uma noção, com 12 anos eu era a "faz tudo" em casa e a Angélica passou a me maltratar todo dia, dizia que eu era adotada, que eu era a empregada, que eu era feia, entre outras coisas.

- Você então não tinha irmã, tinha um monstro.

- É, quer dizer, ela é muito paparicada, foi criada assim.

- Isso não justifica o comportamento dela. Você não contava para seus pais adotivos?

- Não adiantava, no começo eu falei, mas a senhora Melo não acreditava em mim, me batia para eu parar de ser "mentirosa". O senhor Melo era o mais bonzinho dos três, mas mesmo assim não deixava de caçoar de mim as vezes, principalmente quando eu falava que seria rica quando crescesse para ajudar o mundo. Contudo, no final da vida dele, ele foi o único da minha família a depor a meu favor e demonstrou carinho por mim, só que ele morreu, já era de idade.

- Ah! E na escola, como você era?

- Boa! Me esforçava para tirar notas altas, eu tenho déficit de atenção, por isso precisava me esforçar mais do que as outras pessoas, se não decaía rapidinho.

- Déficit de atenção?

- É, mas ultimamente não tem sido muito forte as perdas de atenção, tomo remédio faz um tempo, apesar de que desde que eu entrei na prisão, eu parei de tomá-los, mesmo assim já me adaptei com isso.

- Que bom! Sua vida é muito complicada Amélia, mas vejo que isso não te atrapalha.

- Ultimamente eu não estou feliz Bernardo, por causa de tudo que está acontecendo, mas eu ERA feliz, não me chateava com facilidade, pois acreditava que a vida me daria algo melhor, acreditava que teria uma luz no fim do túnel. Ai, agora eu nem sei mais, parece que ver tudo com otimismo não me faz mais feliz, pois nada dá certo, tudo só tem piorado.

Comecei a chorar, então o Bernardo segurou minha mão e a apertou.

- Calma Amélia, tudo irá melhorar, as vezes eu penso como você, mas minha mulher sempre me dizia que atrás de uma montanha sempre há um lugar belo, cheio de flores, cachoeira, árvores, pássaros, só precisamos acreditar, assim como você acredita nas suas estrelas.

Achei tudo aquilo muito lindo, encostei minha cabeça no ombro do Bernardo e continuei olhando para as minhas estrelas até adormecer.

CAPÍTULO 21

O Sol estava nascendo, percebi pois a claridade da manhã fez meus olhos quererem abrir, mas só de pensar em tudo que eu iria viver naquele dia, em mais correria, a vontade de ficar com os olhos fechados era maior.

Depois de mais um tempo, alguns minutos eu acho, abri vagarosamente meus olhos, então levei um susto e despertei rapidamente. Ao abrir meus olhos, eu vi que minha cabeça estava em cima do peito do Bernardo e eu estava abraçando-o, fiquei tão constrangida que me afastei o mais depressa possível.

Com todo meu movimento de fuga, o Bernardo acabou acordando assustado.

- Aconteceu alguma?

- Ah, não! Me desculpa Bernardo, eu vi um bicho, não quis te acordar.

- Nossa, eu levei um susto, achei que estávamos cercados por policiais.

- Não, desculpa.

- Sem problemas Amélia, não se preocupe. Bom, acho que é melhor a gente começar a caminhar, está de manhã, eles já devem ter começado a nos procurar.

- Certo! Posso só te pedir uma coisa antes?

- Se eu puder realizar.

- Não me joga mais pelos muros ou qualquer outra barreira.

- Ah, mas é para agilizar na fuga.

- Só que você me machuca.

- Te machuco?

- Bom, eu não quebrei nada até agora, nem fiz algum ferimento muito grave, mas eu estou com minhas pernas e meus braços cheios de arranhões, sem contar que a cada puxada que meu braço esquerdo leva, por causa da reação do movimento, me dá muita dor.

- Me desculpa Amélia, eu não sabia que era tão forte assim, na verdade eu nem pensava, eu só agia.

- Então apenas me avise na hora de pular, eu me esforço, dará certo.

- Certo! Agora vamos.

- Ah, e podemos achar algo para comer, eu estou com muita fome.

- Bom, ai depende, se conseguirmos encontrar algum lugar e alguma mulher que mereça ser assaltada.

Comecei a dar risada, não acredito que ele lembra daquele episódio da lanchonete. Acho que o Bernardo deve ser um cara bem legal, pena que a vida lhe deu surpresas desagradáveis.

Enquanto andávamos resolvi perguntar algo que estava na minha cabeça fazia um tempo.

- Bernardo, você falou com o Edgar sobre seu irmão, ele também é um policial?

- É, ele é um policial.

- Ele está te ajudando para provar que você é inocente?

- Ele insiste muito, mas eu não quero. Ele é adotado, mas ao contrário de você ele sempre teve muito amor da minha família, principalmente de mim, eu gosto muito dele, vivo protegendo-o.

- Irmão coruja?

- É.

- Que legal!

- As vezes. Meu irmão, o Gabriel, é muito cabeça dura, não gosta muito que eu o proteja, diz que já sabe se proteger sozinho. Mesmo assim eu faço tudo por ele, qualquer coisa mesmo.

Que legal, queria muito ter um irmão assim.

Saímos da mata, começamos a correr até que chegamos em uma estrada de terra, foi aí que tivemos um alívio, pois conseguimos encontrar o que tanto procurávamos: uma oficina.

- Não acredito! É uma oficina mesmo! Ai, obrigada meu Deus, obrigada!

- Tudo bem Amélia, a gente achou, mas se você começar a gritar irão perceber e seremos pegos, então não adiantará você agradecer.

- Ah! Sim! Claro! Silêncio! Vou ficar quieta!

- Então?

- Desculpa, mas é que eu estou muito feliz.

- Está bem, eu também, mas precisamos fazer silêncio, é cedo, parece que todos estão dormindo ainda. Olha, a oficina está fechada, temos que dar um jeito de entrar sem sermos percebidos.

- Mas e se fizermos barulho? Não é melhor esperar eles acordarem, daí fingimos que somos um casal e.....

- Não! Vamos.

Não? Ele é louco, estou vendo que isso não vai dar certo!

Eu e ele andamos ao redor da oficina, vimos uma janela, mas ela era muito pequena para tentarmos entrar.

- Não tem jeito de entrar por aqui, mesmo eu, que sou menor do que você, não passo por ela.

- Teremos que pular aquele muro ali.

- Pular o muro?

- Você sobe nos meus ombros, vê se ele faz parte da oficina e se não tem cachorro, se sim, pulamos.

- Mas....

- Ele não é alto Amélia, é baixinho.

- Por que não podemos esperar abrir?

- Porque o mecânico irá se perguntar o motivo de estarmos de algema. Estamos bem sujos e de algema, é claro que ele vai notar que somos detentos fugitivos.

- E se ele for bonzinho e.....

- Você e suas perguntas! Vamos pular o muro!

- Tudo bem! Vamos.

Subi nos ombros dele com um pouco de dificuldade. Olhei por cima do muro, parece que é um quintal da oficina, está com uns dois carros, acho que para arrumar e não há cachorro.

Depois de passar as informações para o Bernardo, eu passei para o outro lado, enquanto o fugitivo dava um impulso para se segurar no muro e pulá-lo.

- Pronto e agora?

- Me siga!

Fomos até a porta dos fundos da oficina, estava trancada, nada impossível para o Bernardo, com um chute ele a abriu e entramos. Após um pouco de procura, o meu colega achou um maçarico.

- Você vai cortar a corrente com o maçarico?

- Esta é a ideia desde o início.

- Você já usou isso antes?

- Já, sou mecânico em horas vagas.

- Jura?

- Não, meu emprego me ocupava todo, mas vai dar certo, não tenha medo.

O Bernardo pegou dois óculos de proteção, coloquei um e ele outro, então apoiamos nossas mão em uma mesa, apertei meus olhos e em pouco tempo estávamos soltos.

- Pode abrir os olhos.

- Ai que bom! Estamos livres!

- Pelo menos um do outro.

- Posso tomar as minhas próprias decisões, ir onde eu quiser, movimentar meu braço esquerdo livremente, isso é tão ótimo.

- Rsrs. É! Agora eu acho melhor a gente ir, antes que alguém apareça, afinal eu chutei a porta, ninguém apareceu ainda, mas não podemos arriscar que ninguém tenha escutado, não é mesmo?

- Isso! Então, obrigada por isto.

Mostrei o meu braço esquerdo, agora livre, então lhe dei um sorriso, ele retribuiu e eu fiquei olhando para ele. O Bernardo estava com um olhar diferente, na verdade acho que eu é que nunca reparei nos olhos dele, sempre tive medo e ele sempre estava furioso, com raiva, mas agora estava diferente, um olhar calmo, seguro, corajoso, ao mesmo tempo alegre, com energia. Olhos azuis, lindos.

- Tudo bem Amélia?

- Ah, está! Agora está, não é mesmo?

- É! Vamos então.

Saímos da oficina e ele me ajudou a pular o muro. Do outro lado aconteceu a despedida.

- Bom, temos sorte de ninguém ter escutado você arrebentar a porta.

- É! Agora eu já vou indo Amélia, espero que você se dê bem e se voltar para a penitenciária tenha cuidado com aquele cara, o Roberto.

- Certo! Eu.....eu terei.

- Até qualquer dia. Boa sorte!

Eu abracei o Bernardo, ele retribuiu o abraço e depois que nos separamos ele me deu as costas e começou a andar para um lado da estrada.

E agora? O que eu vou fazer? Eu posso voltar a penitenciária, mas e aquele homem? O Bernardo disse que ele é perigoso, eu corro perigo lá. Por outro lado, se eu ficar na clandestinidade não dará certo, eu não tenho perfil de criminosa, como eu vou sobreviver nesta "liberdade"?