Dois cortes.

Ela acordou no mesmo horário de sempre: 05:50h e soube que aquele seria o dia.

Tomou seu café da manhã, beijou seus pais e irmão e fez um carinho no seu cachorro a beira do portão antes de ganhar a rua.

Foi ao mercado, comprou algumas coisas e seguiu ao seu trabalho. Alinhou suas pilhas de papel, redigiu alguns e-mails e tirou seus objetos pessoais da mesa.

Almoçou, escovou os dentes.

Fez alguns telefonemas.

Pegou sua bolsa e caminhou vagarosamente para universidade.

Não prestou atenção em nenhuma das aulas, apenas olhou atentamente o rosto de cada uma das pessoas.

Foi para casa, jantou.

Rabiscou alguns de seus cadernos.

Beijou seus familiares e pegou a trilha para o banheiro, levando consigo a bolsa.

Despiu-se.

Encarou-se dolorosamente no espelho enquanto ouvia o barulho da banheira se enchendo.

Entrou na banheira deitando-se por completo até mergulhar a cabeça. Quase um minuto depois emergiu.

Retirou da bolsa uma pequena lâmina.

Abriu o plástico e observou o fio por um tempo inestimável.

Todo o ambiente estava silencioso, nem sua respiração era capaz de ouvir.

As mãos úmidas foram posicionadas.

Dois cortes, um suspiro.

Reclinou novamente na banheira enquanto a água era tingida de maneira gradativa.

Sentia fugir de si não somente seu próprio "eu", todas as coisas fugiam ali.

Uma leveza quase gnóstica.

Os olhos estavam semi-abertos, o que via já não era mais real.

Figuras abstratas, floreios, borrões e por fim o breu.

[...]

O celular apitava insistente.

O despertador mostrava: 05:50h.