RETRATOS DE INFÂNCIA - CAP. 8
Pouco menos de uma hora depois que chegávamos da escola, havia uma cena muito comum nos fins de tarde daquele tempo. As pessoas tinham tempo para se assentarem nas calçadas, colocar cadeiras nas ruas e juntar vizinhos a conversar tranqüilamente. Eram outros tempos e outro mundo. Quase todos nós ficávamos com a cabeça nos colos de nossas mães. Havia todo um ritual e era colocado no colo da vítima, um pano branco para melhor visualizar o resultado da operação. Enquanto a conversa ia sendo colocada em dia, as mães passavam um pente fino na cabeça da molecada. Todos ficavam com os cabelos lizinhos e o couro cabeludo dava quase em sangue. Vez por outra havia um choro ou início dele, na vã tentativa de evitar a operação pega piolho. E eles existiam mesmo, aos montes. Não havia criança naquela escola que nunca tivesse alguns. Sempre havia meninos que não cuidavam bem de sua higiene e acabavam ficando com as cabeças impregnadas deste bichinho indesejável. Quando um caía no pano branco, era quase uma festa. Era a prova cabal da necessidade daquele aparato completo na busca do inimigo. Para nós era terrível, pois era sinal de que, na verdade, o pente fino ia correr solto. E isso durava horas...
Quando chegava o fim, enfim, do ritual, hora do banho, jantar (naqueles tempos todos jantavam e não havia preocupações com dietas balanceadas, regimes para emagrecer e coisas do gênero). O jantar era um segundo tempo do almoço. Era a mesma coisa, que era, por sinal a mesma coisa de ontem. Os infalíveis feijão e arroz, misturado com um pequeno pedaço de carne. Nunca havia carne como há hoje, aqueles bifes imensos ou aqueles cozidos farturentos. Era um pedacinho e pronto. E dávamos por satisfeito quando assim ainda existia. Vez ou outra alguém que vinha da roça trazia uma abóbora, ou um pouco de quiabo. Não existiam os tais sacolões, tão comuns nos dias de hoje.
À noite, rua e brincadeiras. As mais divertidas e inocentes. Jogar litro era a mais interessante, eu adorava. Juntava-se um grupo na rua e alguém jogava um litro rua abaixo. Enquanto isso, todos corriam e se escondiam. O litro (de óleo de soja, geralmente) ficava num ponto fixo. O que buscava o litro na rua, ali o colocava e ia procurar os escondidos. Se alguém conseguisse chegar ao litro sem ser notado e chutá-lo, o buscador do litro ia de novo pegá-lo rua abaixo. Se conseguisse encontrar todos, o primeiro encontrado era o novo buscador. Ficávamos horas a fio jogando litro na rua enquanto nossos pais viam TV despreocupados em nossas casas.
Alfredo Lima estava ficando mais velho e as brincadeiras de criança foram ficando para trás. Novos amigos de outras ruas começavam a entrar em minha vida. Os litros foram ficando encostados, assim como o pente fino foi deixando de ser usado. Xampus e condicionadores faziam esse trabalho. Mas as brincadeiras naquela esquina nunca pararam. Não sei se ainda continuam. Crianças, ainda se tem aos montes. Mesmo mais velhos ainda brincávamos. Amigos da escola também ali se encontravam para conversar enquanto os mais novos corriam por aquelas ladeiras cheias de pedras que nunca machucavam nossos pés tão acostumados ao chão duro de nossas ruas e quintais.