RETRATOS DE INFÂNCIA - CAP. 1

O barulho estava ensurdecedor. Relâmpagos deixavam a noite como dia. Era possível ver tudo lá fora, bem clarinho, pela fresta da parede mal rebocada de nossa casa no bairro operário. Via quando mamãe acendia uma vela e rezava cantando em voz alta uma oração que eu não compreendia. Sei apenas que era uma reza pra acalmar a chuva. Não sei se funcionava, mas pouco depois a chuva barulhenta cessava e os ventos se acalmavam. Acho que deve ser sempre assim, uma tempestade quase nunca dura tanto tempo.

São poucas as cenas de minha infância que lembro e guardo na memória ainda muito vivas. Sei que naquela casinha quase derrubada por tantas chuvas e tempestades devia haver uma força que sustentava tantos obstáculos.

Sou Alfredo Lima. Mudei-me dessa pequena cidade já há trinta e dois anos. Aqui vivi até os quinze anos com minha família que hoje se encontra espalhada por vários lugares. Nunca mais havia voltado aqui. Os amigos de infância igualmente também não vivem mais nesta cidade. Santo Antônio da Bela Vista é um lugar pequeno, sem oportunidades de emprego. Todos se vão daqui um dia. Seus pouquíssimos habitantes são idosos e crianças em sua imensa maioria. Descobriu-se recentemente que a região possui minérios nobres. Trabalho numa mineradora e aqui vim fazer uma sondagem rápida. Meus olhos brilharam quando fiquei sabendo que para cá eu viria. Na verdade, apesar do tempo, a cidadezinha ainda esta na minha memória

Santo Antônio da Bela Vista deve ter uns cinco mil habitantes. Fica no alto de um belo vale, com alguns morros que se estendem pelo horizonte. Não é uma cidade com lindos casarões antigos ou com as igrejas barrocas tão típicas de Minas Gerais. Mas é uma povoação formada a partir de quilombolas e indígenas que aqui, no passado, se abrigaram dos castigos cruéis do tempo da escravidão. Dona Francisca é o livro de história da cidade. Ela sabe tudo, parteira, viu quase todo mundo nascendo. Tem sempre uma história pra nos contar.

Eu era um menino franzino, doentinho, diziam. Cabelos curtos, pernas finas, mas muito esperto. A pele morena clara quase sempre queimada pelo sol forte deste lugar abençoado. Meus irmãos eram mais velhos e praticamente não convivemos como crianças. Minha mãe passava o dia em casa e meu pai trabalhava incansavelmente, às vezes em lugares distantes e passava dias sem nos ver. A roupa do dia a dia era quase um uniforme, com calça curta, sandálias tipo havaianas sempre brancas e camisas feitas de tecido comum, confeccionadas por mamãe ou alguma vizinha, ou ainda doada de alguém que já havia crescido mais um pouco. Minhas lembranças são exatamente iguais às de muitas outras pessoas, em cidades comuns, com condições de vida parecidas. Eram tempos difíceis para todas as pessoas, que precisavam manter o silêncio se quisessem sobreviver.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 28/08/2011
Reeditado em 28/04/2012
Código do texto: T3186711
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