Afiados e Afinados
A noite começa a aparecer pelo extenso vidro da janela, deixando a paisagem de prédios e ruas movimentadas em um tom de azul petróleo com o fundo claro e rosado. Na sala, as luzes artificiais iluminam o ambiente amplo, claro e decorados de forma clássica, mas não ostensiva, vasos antigos com flores frescas, dois quadros de arte contemporânea e sofás em tons claros e tecidos fáceis de limpar.
O casal esta sentado em partes distintas do sofá e olha para a televisão de 52 polegadas em meio ao grande móvel. Chega o intervalo comercial. O homem discretamente se espreguiça e a mulher da uma ajeitada nos cabelos, que estavam prensados contra uma almofada e olha para o marido.
-Você acredita no que o seu filho inventou agora?
-De novo...Eu to assistindo o programa.
-Ta no comercial, estou conversando do garoto.
-Ta, o que? – Diz sem qualquer ânimo.
-Nem imagina?
-Bom, já é artista, desempregado... agora o que? Vai entrar pro circo? Fazer jornalismo sensacionalista?
-Não. Pior... – A esposa nem se abala muito com a falta de interesse dele.
-Ah, não! – O marido finalmente da atenção ao assunto.
-Alternativo.
Os dois se olham de forma um pouco preocupada, as feições dele ficam mais tensas, ela se ajeita no sofá. O programa retorna e em instantes eles voltam a observar a TV. Pela janela fica evidente que já é definitivamente noite.
**
Em seu quarto, com uma pilha de coisas espalhadas no chão perto da cama arrumada e com uma almofada azul marinho, Joel gesticula ansioso e contido ao mesmo tempo.
-Fato é, sendo o mais explicito e menos , como você diria... rude que eu posso. Eu não gosto de nada disso, eu nunca me importei com nada disso e é obvio que se alguém não bater com a minha cabeça em uma superfície dura e me causar amnésia, eu não vou querer isso em futuro nenhum.
Não é uma questão de ingratidão, eu só não me identifico. Eu gosto de guitarra, eu acho que consigo construir alguma coisa com isso, eu me sinto a pessoa que eu queria ser quando eu to tocando, e se eu posso me sentir assim, não quero me sentir de outro jeito.
Espera, ainda não acabei! Sinto muito se eu não satisfiz suas expectativas e... bom, não sei, acho que é isso. Eu preferia que fosse tranqüilo, mas não posso continuar assim...
Joel olha para o armário de seu quarto, que tem uma das portas abertas, aquela que esta descascada na parte inferior. Ao lado estão três malas de mão jogadas no chão e alguns tênis ao lado. Ele senta na cama, olha para o teto com adesivos do Batman que brilham no escuro, os mesmos que colocou quando tinha sete anos, depois olha para o antigo PC em sua mesa. Eles deixaram em seu quarto quando entrou na faculdade. Senta-se agressivamente enquanto pensa para si mesmo.
-Merda! Se eu falar assim, vai dar tudo errado... eu só não posso amarelar, só não posso amarelar.
Ele se levanta da cama e coloca fones nos ouvidos ligando seu mp3 para o som de Pennywise. A porta do quarto esta encostada, com a placa de não perturbe com um bad boy invocado em clip art torta e gasta. Seus pais passam frente a porta discutindo algo financeiro a caminho da sala e toca o telefone, a mãe atende e começa uma conversa, o pai pega chave do carro e sinaliza que vai sair. Anderson, com seus shorts largos e chinelo de dedo, esta no sofá jogando um game portátil, deixando de lado a tarefa do colégio.
-Ah! Bosta, perdi! Perdi!
A mãe desvia do telefone por um instante e faz para Anderson uma careta reconhecível, que nem precisaria da frase acompanhando.
-Sem palavrão.
-Foi mal, mas era bem na hora... que s...- olha para a mãe enquanto segura a fala fechando a boca e arregalando os olhos, depois chuta o sofá - Droga!
Anderson se levanta do sofá, deixando o game ali abandonado no canto e caminha rumo ao corredor. Tira o celular do bolso e olha para a tela touch screen, há uma mensagem, ele ri
-Cara doido... - Anderson guarda o aparelho de volta no bolso e anda mais uns passos, vê a porta do quarto de Joel fechada e bate.
-E ae vacilão? Vai ficar morgando? – Abre a porta sem pedir e repara nas malas espalhadas.– Ta se mudando, maluco? Que é isso, hahahaha!
Anderson sai deixando a porta aberta de propósito e rindo enquanto caminha fazendo barulho, derruba o celular no chão, que abre e solta a bateria.
-Merda!
-Anderson, eu falei sem palavrão –A mãe diz alto da sala, mais uma vez interrompendo a ligação e gerando nele uma reação de imitá-la sem o som e sem que ela veja. O garoto então cata as partes do celular fazendo careta, depois entra em seu quarto e liga a TV em volume alto, gosta de provocar.
Um toque polifônico de celular ecoa do outro lado da casa. Joel atende em seu quarto e fecha a porta cauteloso, no começo até diminui um pouquinho o tom de voz, mas percebe e sem ter tempo para processar que pode estar exagerando muda de atitude.
-Alo, fala cara... não de boa... ok, beleza então, ate mais.
Joel pega sua carteira no chão do quarto em meio a bagunça, confere que tem o suficiente na quase rasgada parte interna e coloca em seu bolso do jeans. Joga um casaco e uma revista sobre a bagunça e as mochilas/ sacolas de viagem. Faz isso principalmente para não deixar a vista seus planos, para não ser questionado, para como preferiria dizer, manter sua privacidade. Sai e deixa porta semi encostada.
A TV de Anderson ainda soa alta e nem sinal dele sair do quarto, melhor assim. Joel passa pela mãe que desliga o telefone e sinaliza um tchau, acompanhado de um discreto sorriso. A mãe observa e gesticula tentando perguntar para onde ele vai, Joel já abre a porta sem olhar para trás.
-Aonde você ta indo, Joel? -Não ha resposta.
-Continua-