RETRATOS DE INFÂNCIA - CAP. 7

A TV chegou num dia de chuva. Era o máximo. Marca Advance, tinha uns botões para clarear a imagem e um outro maior que mudava de canal. Éramos a segunda família da rua a ter uma. Ninguém via o tal objeto. A gente só ouvia. Havia dias que a molecada se ajuntava próximo da casa do João Caetano, o primeiro a ter TV na rua e ficávamos ouvindo. Ele não deixava ninguém entrar. Eu não conhecia a tal TV, mas ela foi um sucesso. Era grande, com um tubo de imagem enorme, toda em madeira. Eu, como todo mundo, ficava imaginando como as pessoas estavam ali dentro. Éramos inocentes, tão diferentes das crianças de hoje. Para ver um determinado programa, precisava-se ligar a TV por uns minutos (acho que uns quinze) antes. Ficava apenas um ponto colorido no centro da tela. A TV precisava esquentar e a gente ficava ali olhando aquele ponto fixamente, até que, de repente, abria-se a imagem. Chuviscos e corredeiras na imagem era a coisa mais normal do mundo. Meu irmão mais velho, como um doutor, mexia num botão para lá e para cá e deixava a imagem nítida, para deleite de todos. Víamos Ultraman, um herói japonês que crescia, virava um gigante e enfrentava umas feras esquisitas, saídas da cabeça e imaginação de alguns loucos. Era meu programa preferido. Os meninos da rua todos iam para minha casa. Era uma festa. Sempre tinha alguma coisinha para comermos enquanto víamos os programas. Alguns traziam de casa ou mamãe fazia uns bolinhos de chuva com café. Todos ficavam assentados no chão. Deviam ser uns quinze moleques. Vez ou outra saía um desentendimento, coisa mais natural na idade da gente. Aquela caixa era mágica, faziam brilhar os olhos de crianças que começavam a conhecer o mundo. A vida começava a ser maior do que aquelas duas ruas que se cruzavam num bairro qualquer, sem as menores atrações infantis. Pouco tempo depois, os outros pais de crianças também compraram TV’s. Foi ficando normal. À noite era a hora da novela e do jornal. Trago na memória ataques à Beirute, Aiatolás que promoviam revoluções e a guerra do Irã x Iraque.

A TV deu lugar à escola. Chegou o dia em que nossa matrícula seria efetivada. Lá se vão os meninos para a escola. Um caderno, um só mesmo, com uma capa onde se via a figura de um índio: o Guarani. Também ia um lápis e uma sacola. A sacola era o máximo da moda em meu bairro. Como era ridícula. As mães pegavam restos de tecidos ou uma ex calça e fazia uma sacolinha quadrada com uma alça de mão, exatamente do tamanho daquele caderninho. A gente ia feliz para a escola. Para os deveres de casa, papel de pão, principalmente para os desenhos, pois ele não tinha pautas. Havia, em algumas lojas, um papel semelhante, porém mais delicado e cor de rosa. Era um deleite quando alguém nos dava daquele papel. Virava um caderno. Cortávamos as folhas e a professora grampeava. Que luxo!

A escola era um lugar estranho para nós, e tínhamos muita vontade de estar lá. Depois que começávamos, uns gostavam, outros nem tanto e alguns odiavam. Estava eu no grupo dos que gostava. Eu fui vítima de minha irmã, que rabiscava os muros e o fogão de lenha da casa, ensinando-me as letras e a juntar sílabas, formando dissílabas. Eu sabia quase todas quando cheguei na escola. Para os padrões de alunos pobres, filhos de pais analfabetos, eu era um gênio. Sempre que chegava uma visita na sala, a professora ditava palavras que escrevia corretamente no quadro, sem exitar. Penso que eu era um troféu para ela. Que nada. Minha irmã que me ensinara.

A escola era feita de latão, e de vez em quando éramos convidados a sair mais cedo. Vinha uma grande chuva. A escola, penso, poderia cair com a força do vento. As professoras ficavam apavoradas e nos dispensavam. O medo delas era muito maior do que o nosso. Nem sempre chovia. Lembro-me do dia em que se aproximava uma tempestade, e fomos dispensados rapidamente. No meio do caminho, uma tremenda chuva de granizo caiu sobre nossas cabeças. Não deu tempo de chegar em casa. Escondi-me numa varanda de uma casa qualquer. Era até bonito de ver, mas deu um medo... O vento torcia a copa das árvores e eu me lembrava das rezas e do medo que mamãe tinha de chuva. Sua ausência, e a ausência de suas orações deixavam o cenário aterrorizante. Até que a chuva cessou, enfim, e pudemos voltar para casa. Ninguém se machucou, nenhum raio caiu em ninguém e o vento derrubou algumas árvores e destelhou algumas casas. Nada de grave. Percebi que as chuvas não eram assim tão inimigas dos humanos. Somente mesmo um fenômeno natural.

Assim que chegava em casa, sacolinha na mesa e caderno na mão. Na cozinha havia um banco comprido, de madeira, com uns três metros. Ficava encostado numa parede junto a uma janela. Eu me ajoelhava e ia fazendo os deveres de casa. Na hora. Mas eu não era tão aplicado assim. Lembro-me dos elogios da professora aos meus “rabinhos de porco”, uma sequência de letras “e” de cabeça para baixo e para cima. Os meus eram os únicos da sala a ficarem perfeitos. Quando eu precisava fazer o de cabeça para baixo, que dava mais trabalho e exigia uma boa coordenação motora, eu virava o caderno. Ficavam lindos, dizia a professora, que dava o visto e escrevia “que beleza! Continue assim!” Continuei.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 30/05/2011
Reeditado em 28/04/2012
Código do texto: T3003504
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