RETRATOS DE INFÂNCIA - CAP. 5

A rua era o lugar ideal. Naquele tempo, pelos idos de 1978 não havia diversões tecnológicas, ainda mais para as crianças pobres. As brincadeiras eram fora de casa mesmo. E eram muito diferentes. Havia crianças. E quantas no bairro. Cada casa tinha ao menos uma. E havia aquelas casas em que o número de crianças ultrapassava os cinco, como na casa da Dona Terezinha. Todos saíam à noite para brincar na rua. Era uma diversão sadia, e não havia brincadeiras ofensivas e nem tampouco havia diversões que lembram o uso de violência. Simplesmente brincávamos e nos divertíamos naquelas ruas de terra, sem calçamento ou asfalto. Eram cheias de buracos e de mato, e quando chovia então, a rua virava quase um rio, deixando os buracos ainda maiores e que muitas vezes tornavam-se lugares preferidos de nossas brincadeiras. Os buracos hoje não existem mais. Nestas duas ruas da esquina, o calçamento traz um ar de modernidade, embora as casas quase todas ainda continuem iguais. A casa que foi do senhor Vieira está quase ao chão. Aliás, nem sei como ainda está de pé. Seus filhos mais novos ainda vivem lá, mesmo depois de anos após sua morte. Eu me lembro direitinho do dia que ele morreu. A casa está completamente destruída. Não tem mais reboco nas paredes, tudo descascado. O telhado faz uma onda para dentro da casa e ao primeiro olhar temos a impressão de que não aguentará uma próxima chuva.

Minha mãe era uma espécie de pronto socorro da rua. Embora tenha morrido ainda jovem, ela viu quase todos os seus vizinhos e vizinhas partirem para a eternidade. Toda vez que havia um doente, lá estava ela, dando banho, levando comida, chamando um táxi para leva-lo para a Santa Casa.

Observando a casa que fica quase de frente para a que foi nossa, permito uma volta ao tempo, de um tempo que marcou minha infância, como marcaria a vida de qualquer um. Vendo Dona Francisca na sua cadeira de balanço a embalar suas memórias, as minhas também retornam àquele dia.

Era por volta de onze horas da manhã. O almoço em casa já estava prontinho para meu pai e meus dois irmãos que chegariam em cinco minutos. Eu ainda não estudava, era bem criança, mas recordo bem. Fazia calor, como quase sempre faz nesta cidade. A casa era bem simples, como todas. Tinha uma porta e três janelas que davam para a rua. Era rosa e as janelas de madeira num tom de azul claro. Morava nela um homem negro, meu vizinho desde sempre com sua esposa e duas filhas solteironas. Eu os tinha como avós, ia lá todos os dias, almoçava naquela casa, pois tinham uma comida muito melhor do que na minha. Seu Antônio bate na porta da nossa casa chamando pela mãe.

__ Dona Lia, a Luíza ta acabando.

Nunca se dizia morrendo. Acabando era a palavra mais suave para dizer que alguém estava partindo para o céu. Particularmente, sinto-a tão pesada como qualquer outra. Dona Lia larga tudo e sai correndo com uma vela na mão. A vela, ou isqueiro, é colocada na mão da pessoa para que essa morra na luz. Eu saí correndo atrás, sem saber o que acontecia. Minha mãe entrou na casa, rezando o ofício dos agonizantes e foi adentrando ao quarto. Suas filhas choravam copiosamente, uma delas aos gritos de pavor. Era a denúncia de que não havia mais jeito. Mamãe colocou a vela na mão de Luíza e balbuciou algumas palavras. Ela estava deitada numa grande cama de casal, antiga e com um colchão feito de palha. Eram horríveis. Tínhamos desses em casas, com pontas que nos machucam e incomodam toda a noite. Ela tinha na cabeça um lenço branco amarrado como um chapéu. Ela nunca o tirava. Estava deitada, o corpo esticado, os olhos arregalados, morta. É uma cena que está gravada, e olhando a casa ela se faz tão viva quanto àquele dia. Eu a amava. Ela tinha por mim um carinho imenso, de vovó. Chorei muito até que alguém me retirou do quarto na tentativa de não me deixar ver o que já tinha visto. Foi sepultada no outro dia. Fez muita falta.