RETRATOS DE INFÂNCIA - CAP. 4
Querêncio era um dos vizinhos mais antigos da cidade. Dizia que foi o primeiro a construir casa no local onde hoje é o bairro que moramos. Na época que ele se estabeleceu lá, havia apenas mato e cerradão fechado. Dizem que havia até um monte cheio de árvores que, com o tempo, foi sendo esbarrancado para dar lugar a novos lotes e novas casas. A dona Raimunda falava mesmo numa minas d’água que brotava pelas bandas de onde foi nossa casa, que formava um pequeno riacho onde hoje existe um asfalto. Não sei mesmo nada disso, pois na minha infância as ruas nem eram calçadas, mas já havia as mesmas casas que hoje ainda existem.
Querêncio era um homem misterioso e povoava de imaginação nossa infância. Lembro-me direitinho de vê-lo xingando os meninos que brincavam à noite perto de sua casa. Ele era mal humorado, não gostava de criança brincando perto da sua casa ou mesmo em qualquer lugar da rua. Não era raro a gente o ver batendo na porta dos vizinhos e reclamando que seu filho jogou a bola no quintal dele, que estavam gritando próximo à sua janela, e coisas do tipo. Ele ficou irado o dia em que jogaram uma pedra na sua janela de vidro recém colocada. Ficou aos cacos. Ele tentou em vão descobrir quem foi. Não teve jeito, teve que amargar o prejuízo.
Quando o víamos abrir sua janela, todo mundo corria. Não sei porque tínhamos medo daquele pobre velhinho, que um dia, foi levado de sua casa, contra sua vontade, para um asilo. Ele nunca fizera mal a nenhum dos meninos da vizinhança. Ao contrário, sempre tinha uma balinha, nos oferecia. A gente custava a pegar. Tínhamos a impressão de que ele ia nos puxar pelo braço, levar para dentro de sua casa e nos bater. Sua filha casada dizia não ter condições de cuidar dele, que já quase não andava.
E hoje, passando por aqui e vendo sua casa praticamente caindo aos pedaços, dou-me conta que não sei qual foi o paradeiro dele. Era não era de todo um homem estranho assim. Às vezes era carinhoso. Lembro-me de que ele ia à minha casa pedir que mamãe o benzesse contra mal olhado e ele ficava, ficava... Penso que ia lá era mesmo pra tomar cafezinho e ficar conversando, espantando sua solidão. Na minha casa, mesmo muito pobre, sempre tinha um cafezinho para servir e muita história para contar. Minha mãe quando começava, o visitante precisava ter tempo, senão... Lembro-me de um dia que ela colocou um desses vendedores de porta a porta pra dentro de casa e ofereceu um café. Não comprou nada, mas falou quase uma hora com ele. Contou casos de família, de doenças, falou dos vizinhos, da vida sofrida da infância, enfim, os assuntos de sempre. Conversou tanto com o tal do vendedor que acabou colocando sal no café ao invés do açúcar. Serviu ao homem, que tomou tudo e disse que estava ótimo. Ela perguntou, claro, senão ele teria ficado calado.
__ Ta bom “fio”? Não deu tempo de provar.
__ Ficou bom, muito bom. Obrigado.
Quando ele saiu, ela percebeu a confusão. Acho que esse vendedor nunca mais volta nessa cidade.