Uma nova esperança [1]

O brilho do sol quase cegava meus olhos, eu estava pendurada em um tronco, com os braços amarrados por uma grossa corda e os pés livres e descalços no chão em brasa, tentar levantá-los feria os pulsos, eu tinha a difícil escolha de queimar os pés ou cortar os braços, afortunadamente não morreria sem ter podido fazer uma escolha, isso deveria me consolar?

Não como há alguns dias, já perdi a conta de quantos, cheguei aqui trazida junto com muitos outras meninas, quase todas também vendidas ao mercador pelos próprios pais, assim como eu.

A cena era deprimente, jovens quase desnudas e expostas como comida no mercado , homens velhos levantavam a pouca roupa que havia em seu corpo com suas bengalas, examinavam seus dentes como se fossem animais e pagavam por elas uma quantia muito maior do que a que foi paga ás suas famílias. Meu corpo doía pelas chibatadas que levei, cada asqueroso e repugnante ser que se aproximava era atingido por algo que deveria ser um chute, mas minhas forças já eram insuficientes até mesmo para manter-me de pé, o sangue escorria de minha cabeça, o cheiro horrível daqueles pessoas suadas ficava ainda pior com o sol e o calor por alguns instantes desejei ter sido comprada só para me ver livre daquilo que parecia ser o inferno em vida.

Quase desmaiada depois de dois dias e uma noite espantando os que tentavam me levar e sem capacidade para outra reação percebo um homem alto, usando botas compridas e uma cartola se aproximar de mim, ele faz como todos os outros, levanta o pouco de roupa que ainda me resta, abre minha boca e examina meus dentes e por fim grita ao negociante:

-quanto quer por esta?

-Me faria um favor levando-a, espantou grande parte dos fregueses, é arisca, desbocada e mal agradecida, se quiser levá-la é sua, tudo que peço em troca é esse relógio de bolso.

Quando dei por mim estava sendo carregada por um homem forte, de pele negra e mãos pesadas, fui jogada com certa violência no banco de trás de um automóvel e esse mesmo homem trouxe um pedaço de pão e água, aquilo me pareceu um banquete, estava tão faminta que não me preocupava em saber aonde nem com quem estava, precisava de energia para tentar escapar e teria de comer. O empregado me olhava com um sorriso preso nos lábios e quando terminei de comer me perguntou meu nome, não respondi, e novamente senti uma onda de solidariedade invadir minha alma.

-Deixe-a em paz, ordenou de longe o home que há pouco me comprara.

aproximou de mim, segurou meu queixo com firmeza virando minha cabeça que pudesse vê-lo.

-Ora, ora, vejamos o que os bons ventos de verão me trouxeram. Você é uma raridade nessa feira, sabe disso, não?

-Não sou escrava, muito menos um objeto para ser barganhado, exijo que me solte imediatamente. -disse tentando parecer forte.

O homem riu por um bom tempo e depois disse em tom arrogante:

-Você me pertence garotinha, paguei por você e há de permanecer comigo, caso contrário será devidamente castigada, você será útil para me entreter na solidão de minhas terras.

-Amarre-a, ordenou a seu servo.

E assim foi, meus punhos que estavam em carne viva foram novamente atados por um nó forte, mas eu sairia dali, e não hesitaria em fazer o que fosse para ser livre pela primeira vez na vida.

-Que descuido o meu, esqueci de me apresentar, sou Acácio, Acácio Feber e Rabello, ás suas ordens. -disse enquanto tirava sua cartola e se curvava.

-Está mesmo ao meu dispor?

-É claro que sim, sou um homem de palavra.

-Então solte-me, agora mesmo.

-Minha cara, como é mesmo seu nome?

-Nunca saberá nada de mim, velho asqueroso.

-A ousadia dos jovens, você me divertirá mais do que imagina mocinha, chamar-te-ei de Natássia. E, minha cara Natássia, peça-me até mesmo meu coração, mas não volte a sonhar com sua liberdade, ela pertence a mim a partir de agora.

O tal Acácio entrou no carro, fechou a porta e seu empregado montou em um cavalo preto, muito bonito, por sinal, e depois de algumas horas de viagem chegamos á linda fazenda que seria meu "lar" de agora em diante.

-Leve-a até socorro, ordene que lhe dê um bom banho e vista-a bem para o jantar. -disse para seu criado e, voltando-se para mim, em um tom suave e cortês:

-Jantará comigo, se não tiver modos, aprenderá, a paciência é uma das virtudes da idade, e eu esperarei até que esteja como eu quero.

Não tive chance de responder, o homem alto, de feições sofridas, olhos marcantes, cabelos negros e gestos lapidados caminhava em direção ás escadas da porta principal. Em uma pequena corrida de olhos pude admirar a beleza do local, janelas grandes e incontáveis enfeitavam a parede branca da casa grande, terras e mais terras, com árvores de todos os tipos, amoreiras, mangueiras, pés de graviola, mais adiante muitos pés de café, algo que parecia um estábulo e algumas cabeças de gado.

-Linda, não é? Me desculpe pelos maus modos, o patrão exige que sejamos firmes longe da fazenda, me chamo Nicácio, mas pode me chamar de Nico. Lamento o que passou, te solto desde que prometa não fugir, se tentar terei de machucá-la e não quero fazer isso.

Apenas concordei com a cabeça e ele soltou a corda, eu não teria forças para fugir, e não queria criar problemas para alguém, talvez a primeira pessoa em minha vida, que me tratara com respeito.

Ele me ajudou a caminhar até a casa grande e tentou me animar com suas palavras:

-Sabe, o patrão é em bom homem, se souber manejar a situação poderá ter o que quiser.

-Minha liberdade, é tudo que eu desejo.

-Moça, isso eu acho um pouco difícil, mas se for tinhosa demais ele vai judiar de você, tome cuidado. Qual é seu nome de verdade?

-Minha mãe me chamava de Cândida, mas eu escolhi Aurélia.

-E como devo te chamar?

-De Aurélia, obrigada por tudo.

Ele me levou até uma porta que ficava do lado direito da casa, a porta do cozinha, de onde vinha um cheiro que fez meu estômago se contorcer de fome.

-Por nossa senhora Aparecida menina, o que te fizeram, minha filha?

Disse uma mulher corpulenta, negra e baixinha que logo puxou uma cadeira e meu deu um copo com água, chorou ao ver meus punhos e disse que me ajudaria.

-Eu estava no mercado de negros, passei quase dois dias lá até seu patrão me trocar por um relógio. -disse para ela no tom mais normal que consegui.-

-Uma branca?! Não se preocupe, agora está segura conosco, venha, vamos tomar um banho. Foi o menino Jesus que colocou seu Acácio em seu caminho, não poderia ter vindo para um lugar melhor, todos somos muito felizes, e você também será, quer que alguém avise para seus pais que está em segurança?

-Acredito que não faz diferença para eles, mas obrigada, todos são muito gentis comigo, perdoem a minha frieza, é que não estou acostumada a ser tratada com carinho.

-Agora você ganhou uma família, espere até conhecer o resto dos empregados.

-Socorro, o patrão quer que a vista para o jantar. Ele a chama de Natássia.

Aurélia, venha ver!

-Pegou minhas mãos e me levou até o lado de fora onde o sol começava a se esconder entre as montanhas, tudo estava laranja e eu podia sentir o sereno quebrando o calor, nunca me senti tão bem, tenho apenas 16 anos, é verdade, mas sofri como se tivesse vivido 48 e aquele lugar era o lar mais caloroso que já tivera e a vontade de fugir e ganhar o mundo ficou pequena perto da sensação de pertencer a algum lugar. Afinal, talvez não fosse tão ruim...-

[continua]

Aimée Legendre
Enviado por Aimée Legendre em 20/05/2011
Reeditado em 01/01/2014
Código do texto: T2981578
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