RETRATOS DE INFÂNCIA - CAP. 2
Eram quatro horas da manhã. Eu quase não me lembro direito, mas ainda são vivos os barulhinhos, que mamãe tentava evitar ao máximo no fogão de lenha ao fazer o café e a marmita que o pai levava para o trabalho diário. Era um fogão que ficava num canto da cozinha. Era de cimento colorido de vermelho, acabamento feito com colher de pedreiro, cheio de ondinhas, com uma chapa preta de três buracos e um fogo que ficava quase sempre acesso. As paredes do fogão de lenha serviam para brincarmos de escolinha, quando a professora distraída, deixava toquinhos de giz no quadro. Pegava e brincava com os meninos da rua.
Era uma escuridão total, mas mamãe levanta-se todo dia, sem muita cerimônia e fazia o café fresquinho que o pai levava para o trabalho juntamente com o almoço. Mas não tinha jeito, sempre se faz um barulho, por mais que não se queira, embora ela tivesse um grande cuidado para não acordar os filhos. Meus irmãos mais velhos já trabalhavam, um deles seguia com papai. As meninas eram domésticas e não precisavam nem levantar tão cedo assim ou levar comida para o trabalho. Eu era criança e ia para a escola somente. Já era de sorte em poder freqüentar aulas perto de casa. Havia dias em que mamãe deixava cair uma panela ou colher no chão, e no silêncio da madrugada, o barulho era multiplicado várias vezes. Nossa casa era de quatro águas, com uma sala e alpendre, três quartos que tinham portas ligadas à sala, e a cozinha ficava do outro lado. Não havia cobertura além das telhas, nem laje nem forro, e também as paredes internas não iam até o teto, o que tornava a missão de mamãe de não fazer barulho para não acordar ninguém, praticamente impossível. Mas ela sempre tentava.
Ela não dormia mais. Levantava uma hora antes de meu pai, que saía às cinco e depois ia para a cama. Mas sei que ela não dormia, porque eu ficava no mesmo quarto e quase sempre acordava com o barulho da cozinha e percebia seu revirar de um lado pra outro na cama sozinha. Pensava ela em inúmeras situações cotidianas e nos muitos afazeres que a esperava assim que o sol nascesse. Penso até que ela não dormia direito, com medo de perder a hora de fazer o almoço na madrugada. Frio ou calor, chuva ou vento, todos os dias, e às vezes até no domingo ela acordava cedinho. Não havia dor, e ela sentia várias, que a fizesse descumprir sua “obrigação”. Sei disso, porque na novela das oito, depois de suas rezas noturnas, ela ficava em frente à TV e possivelmente não assistia a mais que dois diálogos. Cochilava....