Soletrando

Dico e o mano Zoca, levavam todos os dias a marmita com o almoço do tio Moura nas barcaças de cacau, onde ele exercia a lida diária. Por sinal, o tio era o mais afamado barcaceiro das cercanias e um verdadeiro ídolo para os dois moleques.

Certa feita, quando chegavam empunhando a marmita, exatamente ao meio-dia, sol a pino, mormaço fatigante, encontraram o tio embebido de suor jorrando do peito e das costas, manejando habilmente o rodo, num frenético e cadenciado vaivém. Ora empurrando um montículo de cacau na ida, ora trazendo outro tanto do ouro branco na volta, de modo que todas as amêndoas espalhadas na barcaça, num vão de mais ou menos 100 metros quadrados, fossem reviradas e secassem uniformemente

Vestido numa calça coringa azul e desnudo da cintura para cima, ele esbanjava uma esbelta e volumosa compleição torácica. Bíceps rijos e salientes, que sem nunca ter praticado halteres, contribuíam para comprovar a lei do uso e desuso de Lamarck.

Os garotos o invejavam e torciam para que dias, meses e anos passassem mais depressa e eles pudessem também crescer e ficar tão musculosos quanto o tio.

Muitos dias os moleques paravam extasiados para assistir a uma demonstração de força do tio, ídolo deles, quando do transporte das sacas de 60 quilos de amêndoas de cacau, de um lado para outro do armazém ou deste para o caminhão que levava o produto para o porto de Ilhéus, rumo à exportação. O tio transportava três sacas de uma só vez: uma presa nos dentes e as outras duas sobraçadas num deslocamento de mais ou menos 20 metros.

Não menos extasiados ficavam assistindo os desafios lançados pelo tio no jogo de queda-de-braço. Era imbatível nessa modalidade. Aqueles musculosos bíceps, aliados a um mínimo de técnica, nunca foram derrotados mesmo sendo o oponente ligeiramente mais corpulento.

Enquanto o tio almoçava, os sobrinhos ficavam à sua volta traquinando, à espera que a marmita fosse devolvida para ser usada com o almoço do dia seguinte. Era uma rotina diária dos pimpolhos.

O tio, além das qualidades braçais descritas e mesmo sem grandes estudos, gostava de se manter inteirado dos acontecimentos. Quando se dirigia até a cidade de Itajuípe ou Itabuna, comprava revistas “O Cruzeiro”, porque ele se deleitava com as peripécias do Amigo da Onça.

Num belo dia, ao termino do almoço, ele se dirigiu aos sobrinhos propondo uma sabatina e sugerindo: aquele com mais acertos ganharia uns trocados para comprar guloseimas. Acordo fechado ele pegou a revista que se encontrava próximo de onde estavam e começou a inquiri-los. Eles deveriam soletrar corretamente as palavras escolhidas.

Nas monossílabas e dissílabas, ambos tiravam de letra. Como ainda cursavam as primeiras séries primárias, nas trissílabas e polissílabas o negócio começou a ficar feio. E justo numa trissílaba tio Moura pegou o sobrinho Dico pelo pé.

A palavra era vulcabrás, nome de uma antiga e famosa marca de calçado.

O tio mostrou a palavra estampada numa propaganda na revista e falou:

- Agora é sua vez Dico. Soletre pra mim essa palavra.

Depois de fitar detidamente a palavra e muito matutar, o menino começou a soletrar cadenciadamente.

- V-u-lê-vul-c-a-ca-b-r-a-brá...

E nada da palavra sair.

Nova tentativa.

- V-u-lê-vul-c-a-ca-b-r-a-brá-se!

Nada de arrematar o vocábulo.

Várias outras tentativas foram feitas sem sucesso. Já exausto de tanto queimar neurônios, eis que disparou o desfecho para o tormento com a pérola:

- V-u-lê-vul-c-a-ca-b-r-a-brá-se! Sabão! - arrematou.

Zoca e seu tio caíram em gostosas gargalhadas, deixando o mano Dico bastante enfurecido.

Duro foi o vencedor voltar para casa com o mano perdedor. Não tendo gostado da gozação que lhe foi dirigida, ele ameaçou ir à forra na primeira oportunidade. Por conta dessa pequena rixa levaram alguns dias de Tom e Jerry. Onde Dico estava Zoca, temeroso da desforra, não encostava. E assim foram levando essa vidinha pachorrenta de animosidade, abrandada pelo passar do tempo até cair no completo esquecimento. E “tudo voltou a ser como dantes no quartel de Abrantes”

Valmari Nogueira
Enviado por Valmari Nogueira em 08/01/2011
Reeditado em 22/05/2015
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