In Vivo - Capítulo 4

A minha origem

Na volta até que o ônibus estava vazio, o que era ótimo: menos gente pra ficar me olhando suado com o uniforme sujo. Eu estava parecendo um refugiado sem casa que foi escorraçado pelos compatriotas, me sentado próximo a saída na janela, onde só havia perto e atrás de mim, uma mulher que aparentava algo como cinqüenta anos nas costas, o rosto pouco enrugado e uma sacola na mão. Eu estava distraído com a paisagem passando lá fora, pensando em nada, então ela começou a berrar com o motorista, já levantada próxima a porta.

- Ei motorista! Pára a merda desse ônibus pra mim! – Gritou a mulher de uma forma que me assustou e me tirou do meu transe.

O ônibus fazia muito barulho, pois o dono da empresa só os reformava quando não podiam mais andar, era complicado o motorista ouvir, então eu levantei e puxei a corda para que o motorista pudesse parar. De onde aquela mulher tirou da cabeça que o motorista tem a obrigação de saber onde ela vai descer? Sinceramente, tem coisas que me deixam irritado.

- Olha onde é que essa porra vai parar! Mas é uma desgraça mesmo. – Resmungou alto ela propositalmente para que o cobrador ouvisse, e nem sequer me deu obrigado.

- Minha senhora, você devia puxar a corda pouco antes de chegar aonde você quer parar, o motorista não vai adivinhar se você não disser. – Disse já irritado com essa amostra líquida de ignorância.

- Ah, mas eu não alcanço essas corda, essas porra é tudo alto! – Disse a velha fuzilando sabe lá quantas regras gramaticais com os palavrões que pareciam ser de estimação.

- Então por que você não pediu pra eu puxar a corda ou para o cobrador?

Ela ressentiu, mas a porta abriu e rapidamente ela já estava longe do ônibus. Nada mais me irrita do que a ignorância de alguém que se esforça em fazer o errado. Talvez ela estivesse estressada com os filhos, maridos, parentes, dinheiro, etc.

Chegando a minha casa vejo minha mãe debruçada sobre a máquina de costura que tem na sala, alguns moleques pequenos jogando bola na rua. Eu tinha que dar um jeito de entrar sem que ela me visse totalmente sujo, senão ela começaria um interrogatório, então aproveitei que ela estava completamente concentrada nos panos e fui puxando o ferrolho apenas quando ela ligava a máquina, pois o barulho cobria o som agudo do ferrolho e o disfarçava. Precisei fazer isso umas cinco vezes até puxá-lo completamente e enfim abrir a porta. Agora era o zumbido da grade abrindo, mas tinha mais um problema, quando eu entrasse minha sombra chegaria perto dela, e assim ela poderia perceber minha presença, então tive que ser rápido. Em apenas uma costurada eu abri completamente a grade, pois a sombra dela também poderia alcançar seu campo de visão, fiquei torcendo pra ela não perceber o vulto dela, demorei um pouco e esperei alguma reação dela, deu certo. Em apenas um vulto entrei em casa e logo me encostei-me à parede a fim de anular minha sombra. Tive que mexer a grade mais uma vez, ela parou, ficou estática por alguns segundo. Eu fiquei apreensivo, parecia um fugitivo da cadeia. Segui andando na ponta dos pés à medida que a máquina era ligada, a fim de anular o som dos passos. Já estava quase lá, bem perto da porta do quarto.

- E tu já chegou?! – Disse meu irmão surgindo da outra sala com o cabelo bagunçado, um beiju pela metade numa mão e um copo de café na outra. Já eram dez horas da manhã.

O pior foi que ele disse isso justamente na hora que a máquina estava desligada. Minha mãe virou-se rapidamente e me viu no estado lastimável em que estavam meus trapos. Meu irmão realmente tem um dom de aparecer nos momentos mais impróprios.

- Ué Caio, você já voltou? E por que está todo sujo desse jeito?! – Disse minha mãe reparando algo no meu cotovelo. – Olha esse corte! Onde foi que você caiu?

- Não teve aula depois do intervalo, o professore faltou. – Disse torcendo pra ela acreditar, olhando para outra direção que não encontrassem com os olhos dela.

- Nossa, parece mais que você levou uma surra, me deixa passar algo nesse cotovelo. Como foi que você cortou ele? – Perguntava ela meio desconfiando de algo mais.

- Ah mãe eu não vi, agora que vim perceber o corte. Eu tava jogando bola no intervalo já que não ia ter aula mesmo!

- Tu jogando bola? Como se tu não sabe jogar? – Perguntou meu irmão com um pedaço de beiju empurrando a bochecha.

- E daí? A gente só tava brincando, não era um campeonato! – Disse me irritando com ele.

O meu irmão era um preguiçoso que adora debochar de mim, o que faz com que a gente discuta um com o outro de vez em quando. Já minha mãe era mesmo mãe, como ela percebeu tão rápido que eu estava cortado? Parece que as mães sabem escanear nosso corpo numa simples olhada, um antivírus com o mesmo potencial seria ótimo! É algo incrível o grau de percepção delas.

O colar artesanal no pescoço dela me lembrou de uma história sua, e também minha. Pelo que ela e meu avô contam, quando criança era uma menina que adorava os ares bucólicos, montar à cavalo, ouvir música e bordar com as senhoras. Tinha cabelos cacheados bem cuidados, era magrinha, os olhos transbordavam sua inocência interior, e sua pele pouco morena com uma franja cobrindo a testa lhe dando dois anos a menos na aparência. Sabia cozinhar muito bem e também era muito educada. Os garotos da roça viviam cortejando ela, mas meu avô fazia vista grossa e eles tinham que ser muito sutis pra chegar perto dela, pois meu avô conhece bem os pensamentos maliciosos dos meninos da roça, uma vez que ele já foi um deles. Ela tem uma cicatriz perto da sobrancelha esquerda de uma vez que caiu de um pé de caju pra tirar uma pipa enganchada, foi seu clímax de mau-criação durante toda infância, pelo menos a que se sabe.

Um dia chegou um hippie na fazenda vendendo brincos feitos de fios e pedras, algo bem artesanal. Falava como goiano, tinha cabelo rastafári, barba tão grande que era entrançada, olhos tão azuis que pareciam congelados e uns óculos como os do John Lennon. Era muito branco e alto, mais alto que qualquer um por aqueles arredores, tinha traços fortes de europeu. Andava com uma mala enorme e um violão preto cheio de tribais de bichos e flores, o violão era mais conservado que o próprio dono. Ele apareceu morto de fome, o pobre diabo dizia está vindo de Palmas caminhando e queria chegar a São Luís para participar de um concurso de música que aconteceria no final do ano, e ainda era setembro. Uma hora ou outra alguém lhe dava uma carona, mas era muito difícil. Ele estava magro que dava pra ser contar as costelas, seu rosto sujo de poeira estava semelhante a uma caveira, o solado do chileno de couro tinha a espessura de uma folha de tão gasto. Meu avô se compadeceu dele e lhe ofereceu abrigo, disse que poderia passar um tempo no quarto de hóspedes e pagaria uma passagem pra ele. O sujeito chorou como um bebê nos braços dele, e como meu avô era mais baixo, ele se dobrava todo para abraçá-lo.

Alguns dias depois ele tinha virado a grande atração do lugar dedilhando seu violão. Meu avô dizia que o violão falava até alemão nos dedos habilidosos dele, tinha um repertório quase infinito e qualquer música que cantassem, ele descobria a melodia. Os garotos se juntavam aos rebanhos para vê-lo tocar, e ele até ensinava os pequenos a fazer malabarismo, andar de perna de pau e truques de mágica. Era uma pessoa bastante carismática, cativava com facilidade as pessoas.

À noite ninguém queria mais saber de televisão, todos iam para frente da casa do meu avô admirá-lo tocando e contando suas histórias de andarilho e os lugares pelos quais já passou. Eram tantas histórias que a cada uma que contava se lembrava de mais quatro. As moças da região suspiravam por aquele moço de cabelo esquisito e simpático, elas pareciam disputar quem o assediava da maneira mais escancarada possível. Minha mãe que se apaixonou por ele, mas se limitava em admirá-lo da platéia. Ele havia sido o primeiro a mexer com aquela garota inerte para os rapazes.

Meu avô se apegou bastante ao rapaz que atendia pelo nome de Xiva, e chegou a pedir que morasse na fazenda, até prometeu construir uma casa pra ele, mas o moço recusou, dizia que apesar das privações e durezas, gostava de está sempre viajando, que se sentiria sufocado que largasse a vida de nômade. Meu avô insistiu bastante e ele acabou indo embora sem se despedir, deixando apenas uma carta na sua cama agradecendo por tudo e explicando o motivo de ir sem se despedir de ninguém. Meu avô já tinha lhe dado o dinheiro da passagem mais um pouco para comer na estrada.

Naquele dia minha mãe não saiu do quarto o dia todo. Meu avô tinha ido visitar um compadre seu numa fazenda que não pegava sinal de celular, estava vendo algumas cabeças de gado para comprar, o compadre precisava de dinheiro para bancar uma cirurgia. No caminho de volta, quando já estava perto da sua fazenda, seu celular tocou. Era Edite, a mulher com quem ele vive desde que a Vovó morreu.

- Alô, é o seu Narciso? – Dizia uma voz feminina chorosa e trêmula.

- É sim Edite, o que foi que aconteceu muié?

- Cisso, o Xiva foi embora... – Dizia ela parecendo assuar o nariz.

- Ora essa, ele foi e nem se despediu?! – Disse meu avô zangado. – Você ta chorando?!

- Cisso, né só isso não, a sua filha...

- A Aninha ta chorando também?! – Disse ele mais zangado ainda.

- Não senhor, é que ela foi embora com ele. – Disse ela abrindo de vez o choro.

- O quê?! Aquele infeliz levou minha única fia embora! Ah que eu vou atrás desse miserável é agora! Depois de tudo que eu fiz por ele é assim que me agradece? – Dizia ele fungando de raiva quase esmagando o celular de tanto apertá-lo.

- Edite, quenta as ponta que eu já to chegando pra nós ir atrás desse vagabundo.

- Tá bom, vou chamar o Clementino pra ele ir também.

- Espera que já to na estrada de chão. – E desligou.

Meu avô quase queimou a carta redigida pelo hippie apenas com o olhar, e se derramou todo ao ler a de sua filha. O vaqueiro Clementino foi com ele na pick-up até a rodoviária de Araguaína, mas nem sinal dele, ninguém os viu. Já era quase noite e nada de encontrar nem sequer o rastro dos dois, até que um caminhoneiro deu uma luz.

- Vi sim senhor, eles estavam andando a pé quando pro rumo do Estreito quando eu tava vindo pra cá, era um homem de cabelo trançado e uma moçinha bonita. – Dizia o caminhoneiro meu assustado.

- Oxi! Esse cabra ta indo é a pé? Não tem juízo mesmo não. – Dizia ele com a cara vermelha.

- Hein patrão, então vamos pro estreito pra ver se a gente encontra eles na estrada. – Dizia Clementino aparentemente calmo.

- Tá certo, pois vamos pra caminhonete seguir pro Maranhão.

Já estava bem escuro, estava naquela época que o dia vai embora mais cedo e a noite caí antes das seis e meia. Meu avô já estava desesperado, abaixava a cabeça e levava as mãos ao rosto apático como um fantasma.

- Tenha calma seu Cisso, nós vamos achar ela, vamos ter fé. – Dizia Clementino no volante com sua voz grossa de vilão principal, apesar de ele não ser nenhum vilão.

- Tá certo Clementino, mas se aquele maldito encostar na minha filha... Ah ele vai se arrepender do dia que virou homem. – Dizia meu avô notoriamente alterado. – Como é que pode a essa hora da noite caminhando no meio do tempo?!

Chegando à ponte do Estreito eles acharam a mochila do hippie jogava na pista e logo desceram para ver. Era ela mesma, e nem sinal do Hippie e da moça. Seguindo mais adiante viram um monte de gente na ponte olhando pra baixo como se alguém tivesse se jogado de lá. Havia polícia e um monte de carros parados.

- O quê que ta acontecendo aqui mesmo? – Dizia meu avô tentando passar pelas pessoas.

- Um homem caiu da ponte, ta cheio de bombeiro lá embaixo procurando ele. – Respondia uma senhora.

- E como foi isso? – Perguntava meu avô torcendo para não ser o Xiva.

- Eu não vi, foi o que me disseram. Foi uns trombadinhas que derrubaram ele, pelo menos foi o que me disseram.

- Você viu uma moçinha dessa altura, branca e de... – E foi descrevendo até o desnecessário pra senhora.

- Não vi não moço. - Respondeu a senhora.

Mais adiante viram uns policiais conversando com um repórter e encontraram a minha mãe com o rosto apavorado falando com o policial. Quando viu o meu pai ela correu e abraçou-o chorosa.

- Desculpa paizinho, nunca mais faço isso com o senhor, pode me bater se quiser, eu mereço mesmo pra deixar de ser tão burra. – Dizia ela chamando a atenção dos circunstantes.

Meu avô se derreteu todo e disse que não bateria nela, que era uma boa filha e ele é que era o canalha. Mas na verdade eles haviam sido surpreendidos por três marginais covardes que o espancou por pura diversão. Ela correu e ligou pra polícia enquanto eles continuaram a chutar o hippie sem dó, ninguém nos carros parou para ver o que era, até que um parou e foi oferecer ajuda. O hippie não aquentou mais de tanta dor e se jogou no rio, sumindo na escuridão, deixando um rastro de sangue na beira da ponte. Os marginais foram pegos e detidos, mas o corpo do Xiva nunca foi encontrado. Minha mãe tinha dezessete anos nessa época.

Na bolsa do hippie estava todo o dinheiro que meu avô tinha dado, junto com comida, água, fios, seus cordões e o único aparelho eletrônico: um pequeno aparelho de som junto com CDs. No bolso do violão havia uma música que ele compôs pra ela, mas o violão não foi encontrado e a letra se perdeu com ele. Até hoje ela usa os cordões dele e escuta The Beatles e Janis Joplin, ele foi o primeiro a tocar no coração dela, o pioneiro.

Quando ela fez dezoito teve seu primeiro filho, cujo pai jazia nas águas do Rio Tocantins. Demorou pouco e um amigo de meu avô se encantou por ela. Os dois se casaram com seis meses após o início do namoro. Meu avô tinha plena confiança nele. Seu nome é Benedito, mas era sempre chamado de Bené por todo mundo, dava preguiça falar seu nome de quatro sílabas o tempo todo. Tem porte de homem do campo, mãos pesadas, rosto redondo e nariz afiado, os cabelos eram cacheados, olhar singelo e amigável, era também um pouco tímido, não conversa tanto, mas é um homem honesto que sabe se organizar, não era de esbanjar e ostentar bens, era simples de hábitos simples. Tinha um comércio em Imperatriz e por conta dele ela foi morar na cidade.

Com ele, minha mãe teve meu irmão mais novo. Hoje eu tenho doze anos, ela tem trinta e meu irmão mais novo nove, quase dez. Meu pai é mais velho, tem trinta e seis, mas uma aparência mais jovem. O Bené me registrou no nome dele, apesar de eu não ser seu filho de sangue, então acostumei a tê-lo como pai, mas sei bem quem foi que me deu o impulso de vida junto a minha mãe, acho que não preciso mais dizer quem foi.

Marcos Paulo Silva
Enviado por Marcos Paulo Silva em 08/01/2011
Código do texto: T2716039
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