Eu e o Meu Diário
17 de Novembro
Ontem, pela manhã, quando a Clarinha me pegou anotando numa folha de caderno as primeiras linhas do meu diário, ela achou o máximo. Disse que era uma idéia genial. Tão boa que só estranhava mesmo era não ter sido ela quem a houvesse tido primeiro!...
Fiquei quietinha, qual um bule de café fervendo por dentro - só aguardando o que viria a seguir. E olhe que não demorou nada: bastou que eu me negasse a deixar que aquela tonta lesse o que eu já havia escrito para que de repente ela ficasse mal-humorada e começasse a me criticar diante das outras meninas:
- “Gente, a Luísa é tão criativa que eu não duvido nada que ela vá começar o seu diário exatamente assim: Querido Diário Íntimo”, e caiu numa gargalhada tão gostosa que se eu não fosse rir de mim mesma, teria feito coro junto com ela...
Depois - como quem não quer nada – a Clarinha comentou que isso de diário é coisa de “garotinha romântica. Romântica e mimada”. E ainda disse isso e mais aquilo e eu tive que fingir que não ouvia nada e que nem era comigo. Romântica pode até ser, mas... mi-ma-da?! O quê é que uma coisa tem a ver com a outra?
Acho que ela sentiu foi inveja. Pois não é que daí a pouco eu também a vi rabiscando algumas frases no seu caderno!? Senti uma raiva danada, do tamanho do mundo... do mundo, não: do tamanho do Universo!...
Quem não sabe que diário é uma coisa íntima e pessoal? É onde registramos dia-a-dia os nossos sentimentos mais secretos! Senão não se chamaria diário íntimo, não é mesmo?...
E todo mundo sabe que um diário jamais pode ser lido por outra pessoa que não seja a própria dona dele. A Clara está cansada de saber disso tudo. Então, porque se meteu a querer bisbilhotar? Não é exatamente aquilo que eu disse? Pura curiosidade e inveja!
Ainda bem que a Regininha estava logo ali para me apoiar, senão eu teria explodido de ódio. De qualquer maneira, a Clara se enganou redondamente: primeiro que este não é um diário qualquer para ser registrado em folhas de caderno. Meu pai me deu de presente uma agenda com um grande coração vermelho na capa e é lá que eu vou guardar os meus segredos, anotar as minhas lembranças, idéias e sentimentos.
Minha intenção era passar tudo a limpo mais tarde, depois da aula, exatamente como vou começar a fazer daqui a um minutinho. Só anotei aquelas coisas ali por que me deu muita vontade de colocar no papel tudo o que me aconteceu ontem e o que eu ainda estou sentindo até agora. Para falar a verdade, a minha cabeça ainda está girando a mil! Parece um sonho...
Em segundo lugar, eu sou muito mais criativa do que aquela Clarinha possa imaginar. Jamais escreveria aquela frase no início do meu diário. Na verdade, as primeiras linhas que eu havia escrito eram outras bem diferentes dessas e virão logo a seguir, na data do dia 16. E eu vou deixar esta parte do jeitinho que está. Aquela convencida vai aprender a não ser tão abelhuda com o diário alheio. Por outro lado, ficará bem claro que eu não sou assim tão romântica e mimada quanto pareço ser...
Só agora, no final do primeiro dia de anotações, vou colocar aquelas palavras que ela imaginou que eu fosse escrever lá no iniciozinho. É por coisas assim que muitas vezes as pessoas dizem que há males que vêm para o bem: por causa disso o meu diário ficará totalmente diferente da maioria dos diários.
Então vamos lá: “Querido Diário Íntimo, espero que este final de ano reserve muitíssima alegrias para mim e para toda a minha família, para o meu tio Gê e a tia Maria, para os meus primos Pedro e Paulo de Lafaiete; para a Regininha, a Daniela e o Carlinhos e todos os meus amigos do colégio; enfim, para todas as pessoas que eu amo e admiro...”
16 de Novembro, anotação em sala-de-aula
É um tanto complicado ficar escrevendo e pensando em coisas que nada tem a ver com a matemática bem no meio da aula de matemática! Isso me deixa meio distraída: agorinha mesmo me embrulhei no final de uma conta enorme e acabei perdendo o raciocínio. Mas, para dizer tudo de uma vez: acho que estou apaixonada. E-na-mo-ra-da: essa palavra é um pouco antiquada, mas ainda é aquela que melhor diz do que eu estou sentindo.
Hoje, depois que tiramos as fotos da formatura, o Carlinhos me chamou na cantina da escola e disse que tinha algo muito importante para me falar. Percebi que ele estava agitado e perguntei se o que o estava preocupava era o nosso trabalho para a feira de ciências. Ele afirmou que não, que tudo já estava bem adiantado e...
Bem, talvez seja melhor que eu registre a nossa conversa inteirinha, do início ao fim. Mais tarde posso reler tudo e corrigir o que não estiver de acordo com o acontecido:
(Continuação da conversa:)
- Não era sobre isso que eu queria te falar, Luísa...
- E o que é então?
- Tem algum tempo que eu venho querendo te dizer umas coisas, mas até hoje ainda não deu...
(Fiquei curiosa e um pouco ofendida. Afinal eu não sou nenhum bicho-papão)
- Ô Carlinhos, você acha que eu mordo?
- Claro que não, Luísa!...
- Então fala logo...
- Bem... eu queria... eu queria saber se você tem namorado...
- Namorado?
- É... se está namorando alguém aqui da escola?
- Mas, e porquê, perguntei. (Não estava entendendo nada e aquilo muito aguçou a minha curiosidade)
- Porque eu queria te convidar para a gente ir juntos na festa de formatura...
- Uai... se é só isso, não tem problema algum – respondi - e percebi que ele ficou bastante aliviado.
- Mas não era só isso não... você... quer dizer, não era só isso de ir juntos na festa... eu queria mesmo era saber se você quer namorar comigo?
Surpresíssimo Diário: eu quase cai prá trás! Não esperava aquilo de jeito nenhum. Já havia percebido alguns garotos da escola me olhando de um jeito esquisito. Aquilo sempre me deixava um pouco sem graça.
Às vezes, também, nós, meninas, nos juntávamos num cantinho da sala na hora do recreio ou na aula de educação física, e ficávamos trocando confidências sobre os meninos, coisas mais ou menos assim: quem era o garoto mais bonito ou o mais legal ou ainda qual deles chamava a atenção de cada uma de nós e etc...
E – sinceramente! - prá mim o Carlinhos não se enquadrava em nenhum dos meus pontos de preferência. Pelo menos até agora eu não tinha prestado muita atenção nele.
Naquele momento, percebi que a Regininha e a Daniela se aproximavam e me virei para elas. Quando eu me voltei, o rosto do Carlinhos se achava pertinho do meu e nem sequer tive tempo de me desviar do beijo que ele trazia bem coladinho nos lábios. Como eu estava do lado direito dele, foi ali, na bochecha esquerda que eu ganhei o meu primeiro beijo de namorado. Na verdade, nem tive tempo de responder se queria ou não namorar com ele: a partir daquele beijo, já éramos namorados e ponto final...
Quer saber de verdade, mas de verdade mesmo, o que foi que eu senti, Enamoradíssimo Diário? Achei lindo o jeito como o Carlinhos me falou e tudo o mais que aconteceu hoje. Acho que é a isso que os adultos chamam de apaixonar-se...
Bem, se eu ainda não estou apaixonada, pelo menos devo estar me apaixonando...! E isso é o máximo! É o má-xi-mo!...
19 de Novembro
Concentradíssimo Diário: ontem não tive tempo para mais nada. Passei a tarde toda estudando para a prova de matemática...
Já hoje, na hora do almoço, fiquei um tempão observando o meu pai. Às vezes ele me olha com uma cara “daquelas”. Em certo momento o flagrei distraído, bastante distraído mesmo, distante, muito distante. Não entendi direito: os adultos são estranhos. Papai parecia estar no mundo da Lua...
Já era meio esquisitão comigo, protetor demais, mas ficou ainda pior depois que eu mostrei para ele as provas das fotografias que tiramos para a formatura da Quarta Série. Ficou com uma grande cara de “abobado”.
Num dos retratos, a turma toda está reunida, uns atrás dos outros. A professora colocou os menores sentados no chão. Em seguida, os médios por detrás dos pequenos e, finalmente, os maiores subiram em cima de um grande banco de madeira e aparecem apenas da barriga para cima, sob um fundo todo coberto por coloridas formas geométricas que me lembraram as pinturas de Picasso. Eu estou lá na primeira fila, sentada entre o Carlinhos e a Regininha. Graças a Deus que a Clara ficou na turma de trás!
Depois cada um de nós tirou uma foto individual. A diretora nos autorizou a trazermos a roupa que preferíssemos e cada uma se arrumou do jeito que quis. Acho que ambos os retratos ficaram muito bons. Estou de mãos dadas com o Carlinhos e a Regininha na foto em grupo e muito bonita e sorridente na foto individual, linda mesmo, com o vestido novo que ganhei do papai...
Foi então que eu indiquei o Carlinhos com o dedo e perguntei para ele se o achava bonito. Meu pai desconversou logo:
- Ora, Luísa... eu vou lá achar homem bonito...
- Mas, pai, o Carlinhos não é um homem... quer dizer, homem ele é... o que quero dizer é que ele não é um homem como o senhor, assim adulto e de óculos. Ele ainda é apenas um garoto...
Meu pai desconversou de novo e eu acabei não sabendo a sua opinião. Ele apanhou as provas das fotografias, afastou um pouco os braços para enxergar melhor por cima dos óculos e disse que eu estava ficando muito linda mesmo e que já estava “virando mocinha”.
Não sei se gostei de ouvir aquilo. Antigamente eu não me importaria, mas, agora...?! Aquilo me soou “estranho”...
Então, meu pai me segurou nos braços num desajeito só – você nem pode imaginar o quanto, meu Estimado Diário - e repetiu uma história que eu já devo ter ouvido pelo menos trinta vezes: que quando bebê eu me parecia com o E.T. de um filme antigo; que ele me segurava no colo exatamente daquela maneira como estava fazendo agora; e ainda: que apontava o dedo indicador para o céu e dizia:
- Casa... Telefone...
Eu não assisti ao filme do extraterrestre. Assim não posso dizer se parecia ou não com o E.T. Não sei também se gostei do meu pai ter me colocado no colo. Já estou meio grandinha para esse tipo de coisa. De novo, achei aquilo estranho. Tem coisas que eu não consigo entender...
20 de novembro
Hoje quase morri de raiva. O Felipe aprontou mais uma. E dessa vez foi das grandes...
Ah, desculpe-me, meu Amado Diário: esqueci de te apresentar os pestinhas que Deus colocou no meu caminho como irmãos, o Felipe e a Isadora... O Felipe tem doze anos e a Isadora fez quatro em agosto...
Eu e a Isadora dormimos juntas. Além de repartirmos o mesmo quarto, dividimos também alguns momentos bons em que somos como “unha e carne” e muitas horas ruins em que nos defrontamos com “unhas e dentes”.
Mamãe diz que quando eu estou com o “ovo virado”, ninguém me agüenta. Mas tem hora que é impossível, insuportável mesmo viver aqui em casa: são tantas as brigas e discussões, que ninguém conseguiria agüentar, nem Jesus se voltasse à Terra acompanhado de todos os seus Anjos!
A Isadora, essa pirralhinha difícil, pensa que já é gente e discute comigo por qualquer “bobagem”; eu brigo com o Felipe e a mamãe, então, entra na “história” e começa a gritar como uma desesperada. Às vezes, quando a Isadora ultrapassa o obscuro limite que de alguma maneira deve estar claramente prescrito na cabeça da minha mãe, ela vai até o armário e traz de lá a “Corina” nas mãos.
A Corina é uma correia velha que fica no armário de casal, só esperando a ocasião propícia para entrar em “cena”. Mas é só a Isadora que ainda passa uns maus pedaços com ela, pois eu e o Felipe já estamos “bem crescidinhos para apanhar”. Pelo menos é assim que a minha mãe costuma dizer antes de começar a se desesperar...
Bom: como eu ia dizendo, o Felipe às vezes tem umas brincadeiras muito sem graça. Vira e mexe, a gente se pega e às vezes se pega para valer, como aconteceu hoje. Tudo começou quando o Felipe me pediu emprestado o vidro de cola.
Você não vai acreditar, Piíssimo Diário: não é que antes mesmo que eu lhe tivesse dado permissão para mexer nas minhas coisas, ele já surgiu todo saltitante na minha frente, trazendo o vidro de cola numa das mãos. O problema foi que trouxe na outra um “bilhetinho” que eu havia escrito para o Carlinhos. Veja só a minha situação: eu não podia negar que tivesse escrito aquela “bobagem”, afinal a letra era minha mesmo. Isso não significa, porém, que eu fosse entregar aquele bilhete para alguém.
Tentei me justificar, dizendo que havia copiado aquilo de um livro romântico que havia pegado na biblioteca, mas ele não acreditou. Minha sorte foi que coloquei ali só as iniciais do nome do Carlinhos, pois se o Felipe soubesse para quem estava endereçada a tal cartinha, a gozação não ia mais ter fim e sabe lá Deus o que mais poderia ter acontecido.
Resultado: aprendi que a partir de agora tenho que guardar melhor as minhas coisas pessoais, senão aquele pestinha vai acabar me fazendo algum estrago...
Voltando ao bilhetinho, eu havia escrito o seguinte:
“Querido C. S.,
Desde aquele dia em que conversamos na cantina da escola, não consigo mais parar de pensar em você! Penso em você em cada minuto do dia: durante as aulas, na hora do almoço, quando estou estudando ou dormindo. Esta noite cheguei a sonhar que estávamos passeando num jardim muito florido e repleto de árvores e pássaros coloridos, à beira de um lindo lago azul...
Ontem fiquei te observando de longe, jogando bola com um grupo de meninos. Quando o sinal bateu e você começou a caminhar na minha direção, o meu coração disparou e eu pensei que ele ia sair pela boca afora.
Depois, você deu meia-volta e se dirigiu ao bebedouro. Acho que não chegou a me ver sentada atrás da Daniela e da Regininha. Só sei que senti, então, uma coisa muito complicada para explicar com palavras...
Definitivamente: acho que estou apaixonada.
Um grande beijo, meu Querido, meu doce Amado...”
Pois não é que o Felipe começou a repetir algumas daquelas frases, acentuando certas palavras e caindo numa risadaria que parecia não ter fim: “definitivamente, estou apaixonaaaada por voooocê”, “um beijo, meu queridiiiinho, meu doce amado”...
Então, eu não agüentei e acabamos brigando feio mesmo. E teria sido pior se a mamãe não tivesse entrado na história. De qualquer maneira, foi bom para ele aprender a não se meter comigo e saber qual é o seu lugar daqui para frente...
21 de novembro
Ouvi mamãe comentando com o papai que ultimamente eu tenho andado muito nervosa e distraída. Pode até ser que ela tenha um tanto de razão: ontem na hora do almoço, por exemplo, mamãe pediu que eu fosse buscar uma lata de óleo na despensa.
Bom: dizer apenas que ela pediu é pouco. Na verdade ela gritou, berrou e esgoelou até cansar. Agora, me perguntem se por acaso eu ouvi alguma coisa? Nadinha, nadinha. Será que estou ficando surda? Fiquei preocupada e perguntei pra minha mãe se havia algum caso de surdez na família. Ela jurou que não e eu tive que acreditar. Conclusão: devo estar mesmo um pouco avoada! Mas: e nervosa?
Devo confessar que ultimamente venho agindo de maneira um pouco estranha. Às vezes eu me pego distraída durante um bom tempo me olhando no espelho, penteando os cabelos ou remexendo nalgum ponto “obscuro” na pele do meu rosto.
Meu banho, então, agora ficou muito mais demorado e parece incomodar as pessoas. O Felipe desanda a bater na porta como um louco, me importunando de um jeito muito irritante, proposital...
Quer saber de verdade – mas, de verdade mesmo! – o que eu fico fazendo durante todo aquele tempo no banheiro, Amigo Diário? Fico lavando o vidro do boxe. É por isso que o meu banho é tão demorado. Depois que acabo de me lavar, sempre passo algum tempo esfregando a bucha no acrílico do boxe até achar que está tudo limpinho-limpinho.
Está vendo: é só isso! Será que estou com algum problema?!
23 de novembro
Eu sei que diário só é diário porque a gente escreve nele todos os dias. Mas ontem foi impossível: eu me senti triste e chateada durante todo o dia e por isso não consegui registrar nada. Durante algum tempo fiquei passando a caneta entre os dedos, de uma mão para a outra, esperando vir alguma idéia interessante. Como não veio nada, acabei desistindo. Teve uns momentos em que até chorei...
Quando estou assim, apanho o vidro de acetona e a caixa de algodão, a cestinha de esmaltes e um pauzinho-de-laranjeira e passo algumas horas sozinha no meu quarto, pintando as unhas.
Teve um dia em que senti tanta tristeza - mas tanta tristeza! - que pintei as unhas umas cinco vezes seguidas, cada hora de uma cor diferente. Já percebi que esta é a minha maneira de lidar com os acontecimentos que me deixam triste...
O caso é que o papai brigou com a mamãe ou vice-versa, o que dá no mesmo e não faz a menor diferença. E olhe que não foi uma briga à-toa, como aquelas que eu tenho com o Felipe.
Quando eu e aquele pestinha brigamos, daí a um minuto esquecemos tudo e voltamos a ficar de bem, como se nada tivesse acontecido. Briga de adulto, porém, é diferente. Não consegui entender o motivo da discussão, mas sei que mamãe ficou calada e quieta o dia inteirinho.
De noite, os dois nem dormiram juntos. Quer dizer: dormir juntos até que dormiram, só que ela se deitou num cantinho da cama e meu pai no outro, cada um virado para o lado oposto.
Se eu não soubesse que aquilo era mesmo uma briga, acreditaria que haviam combinado fazer juntos alguma estranha espécie de meditação transcendental...
24 de novembro
Hoje fez um dia lindo, com muito Sol, brincadeiras e sorvete. Fomos ao clube pela manhã. Usei o meu biquíni lilás e percebi que alguns garotos olharam demais para mim e cochicharam depois entre si. Achei bom e ruim ao mesmo tempo. Senti um pouco de vergonha, mas fingi que não estava nem ali.
Será que a cor do meu biquíni chama muita atenção? Eu até achei um dos meninos parecido com o Carlinhos. Era bonito e engraçado e fazia de tudo para que eu o notasse. Só tinha um defeito: não era o Carlinhos...
Obs.: Papai e mamãe não trocaram nem uma palavrinha no clube. Continuam calados e distantes. Será que isso ainda demora muito? E, afinal: o que terá mesmo acontecido?
25 de novembro, 11:00 da manhã...
Acabei de tomar banho.
Você pode estar estranhando que eu esteja em casa a essa hora, Deprimidíssimo Diário, mas já-já eu me explico. Na verdade, hoje foi um dia muito difícil...
Se ontem tudo correu às mil maravilhas, hoje aconteceu exatamente o contrário, um verdadeiro “dia de cão”. E olhe que são apenas onze horas da manhã! Que tragédia será que o resto do dia ainda estará me reservando?
Logo pela manhã, assim que entrei no banheiro, o Felipe disparou a bater na porta, desesperado, nem dando tempo para que eu pudesse me dedicar à minha habitual limpeza e higiene do boxe. Desta vez, porém, acho que ele tinha alguma razão: não estava se sentindo bem da barriga...
Então, abreviei o meu banho e acabei de me ajeitar no quarto. Em seguida fui até a dispensa e contei na folhinha o número de dias que faltam para o Natal. Percebi que o meu “mal-humor matinal” melhorou um pouquinho depois disso: as aulas já estão quase acabando e falta um mês certinho para o Natal. É o máximo, não é?!
Depois fui para a aula, feliz da vida. Foi ai, porém, que começou mesmo todo o meu drama...!
Eu estava distraída, fazendo uns exercícios de matemática, quando senti que a minha roupa estava úmida “lá embaixo”. Pensei que tinha feito xixi sem querer e dei uma olhadela. Isso não acontece desde que eu era uma menininha, mas poderia ser, não é mesmo? Foi então que eu percebi que havia uma mancha vermelha na minha calça. Entendi logo que aquilo era sangue e o que significava.
Apesar de minha mãe e eu já termos conversado muito sobre essas “coisas” de mulher, fiquei assustada e cheia de vergonha, sem saber o que fazer. Tudo bem que desde que o mundo é mundo as mulheres vêm passando por isso, mas “aquilo” tinha que “vir” justo no meio da aula de matemática?
Sorte é que a Regininha estava de novo por perto e me ajudou, senão estava frita... Chamei-a baixinho, tão baixinho que ela nem conseguiu me ouvir. Aumentei um pouco a voz e repeti o seu nome. Então escutei um sonoro “psiu” vindo lá do fundo da sala e reconheci a voz da chata, da inconveniente, da convencida e antipática Clarinha. A Regininha se aproximou e eu lhe contei rapidamente o que tinha acontecido.
- “Espera a aula acabar que a gente resolve isso”, falou no maior sangue-frio. Em horas assim é que ficamos sabendo da amiga que temos e até aonde podemos contar com ela...
Pra mim aquela aula demorou um século para terminar. Nunca, em toda a minha vida, eu havia sonhado que quarenta minutos custassem tanto para passar. Quando bateu o sinal do recreio, a Regininha disse para a gente ficar na sala até que a maior parte dos nossos colegas tivesse saído.
Então peguei o meu agasalho e o amarrei na cintura, que era para esconder “o meu problema”. Daí, fomos juntas até a sala da supervisora e a Regininha explicou-lhe o que havia acontecido, pois eu continuava sentindo muita vergonha.
A supervisora nos disse que aquilo era assim mesmo, que eu estava vivendo a maravilhosa experiência de “me tornar mulher”. E falou mais isso e mais aquilo e aquiloutro e eu pensei que ela não ia acabar nunca aquele falatório medonho. Depois, telefonou para a minha casa e daí a pouco mamãe apareceu para me buscar.
Agora estou entendendo melhor o que o meu pai queria dizer quando falou que eu estava “virando mocinha”. Parece até que adivinhou...
15:00 horas
Há pouco estive me olhando no espelho durante um bom tempo. Percebi que os meus seios estão diferentes, um pouco inchados. Deram-me a impressão de que um estava maior do que o outro e fiquei preocupada.
Chamei minha mãe e mostrei a ela, que também disse que “isto” era “assim mesmo”. Depois nós duas combinamos de irmos juntas ao shopping para escolher uns sutiãs. Afinal, estou crescendo e tenho que me acostumar com essas coisas de “ser mulher”...
Bom, está na hora da gente sair. Até mais tarde, Angustiadíssimo Diário...
Fim de Tarde
Chegamos a pouco do shopping. Compramos três sutiãs, dois para mim e um para a mamãe. Os meus são das cores creme e branco.
Fui para o meu quarto experimentar e ver como é que ficavam, antes que o Felipe chegasse da aula, pois ele tem um “faro especial” para descobrir os pontos fracos da gente. Escondi tudo debaixo das outras roupas, na última gaveta do armário. Achei que assim conseguiria escapar da sua “sanha”.
Ledo engano. Foi só ele chegar para daí a pouco descobrir a novidade e começar a fazer o que mais gosta: me irritar.
- Ei, eme-eme...
Fiquei boiando...
- Ela agora é eme-eme, gente!...
Entendi menos ainda. Quando a mamãe me explicou que aquilo queria dizer “menina-moça”, explodi indignada e sai correndo atrás daquele atrevido. Se eu o tivesse alcançado, ele agora estaria fritinho, fritinho...
26 de novembro
Hoje eu acordei mais cedo. Senti-me muito ansiosa na hora de sair, afinal é a primeira vez que vou usar sutiã. Depois do banho, fiquei um tempão me olhando no espelho e aí lembrei que nem havia ensaboado o boxe.
Mexia aqui, levantava li, buscava ver se dava para alguém notar que eu estava de sutiã por baixo da blusa. Só então fui para a aula.
Ontem, durante as compras, eu e minha mãe conversamos bastante sobre “essas coisas de ser mulher”. Sinto agora que estamos muito mais próximas uma da outra. Sou exatamente igual a ela, adulta e mulher.
Também conversei com a Regininha. Como eu disse antes, ela já passou por tudo isso e bem sabe do aperto que eu senti ontem. Na hora do recreio fomos juntas ao vestiário. Ela pediu para ver como “tinha ficado”.
A princípio eu me senti um pouco embaraçada, mas acabei levantando a blusa. Depois ela também suspendeu a sua roupa e me mostrou o dela, que é um pouco maior, pois os seus seios são mais desenvolvidos que os meus. Amigas são assim mesmo: não guardam segredos uma da outra...
Mudando de assunto: o Carlinhos esteve muito engraçado hoje. Não sei se percebeu alguma coisa ou se simplesmente achou que eu estava meio calada e distante. Ficou fazendo graça e dizendo abobrinhas para me distrair. Acabei até me esquecendo um pouco daquela tristeza toda e do dia de cão que tive ontem...
Uma última coisa que eu queria comentar hoje é que o papai e a mamãe voltaram a conversar e estão “de bem” outra vez. Não entendi como se deu a reconciliação, mas vi os dois bem juntinhos agorinha mesmo, rindo e brincando um com o outro na cozinha.
Deram até um beijo, que eu fiquei observando de longe, quietinha-quietinha...
01 de dezembro
Noelino Diário, não deu para anotar nada nestes últimos dias. Fiquei estudando como uma desesperada para as provas finais. Mas agora as coisas voltaram a se acalmar de novo.
Já estamos em dezembro e comecei a riscar a contagem regressiva na folhinha detrás da porta do quarto de despensa: faltam exatamente vinte e três dias para o Natal. Toda manhã eu vou até o quartinho e faço um “xis” no dia que está começando. Gosto muito dessa época, mas fico aflita na longa espera...
Nem preciso dizer que há muito tempo não acredito em papai-noel. Nem eu e nem o Felipe. Vou fazer dez anos e sei muito bem que são meus pais que compram os presentes e que preparam a ceia e alguma boa surpresa em nossa casa. Mas como a Isadora ainda é muito pequenininha e a gente “têm consciência de que não se deve tirar as ilusões dela”, continuamos esperando fielmente a chegada do nosso papai-noel.
A diferença agora é que eu faço parte da turma que sabe de “toda a verdade”. Assim, ajudo a embrulhar o presentinho dela e a esconder bem direitinho até a noite do dia vinte e quatro...
Ano passado, papai comprou uma bicicleta de rodinhas para a Isadora e foi um custo esconder a “bendita”. Ela veio desmontada dentro de uma grande caixa de papelão e tivemos um trabalhão para enfiar aquilo tudo no quartinho de despensa e depois vigiar dia e noite para que a minha “adorada” irmãzinha nem desconfiasse da surpresa...
Depois veio a grande noite e tudo foi um sonho maravilhoso. Ceiamos e mais tarde fomos à rua ver os fogos. Quando voltamos, eu e o papai entramos em casa antes dos outros e colocamos a caixa da bicicleta bem pertinho da árvore de Natal.
Em seguida, acendemos o pisca-pisca e fingimos que não tinha nada de especial na sala. Ai, a Isadora e os outros chegaram e nós continuamos quietos e indiferentes à caixa, até que ela a descobriu e ficou deslumbrada...
Pode até ser que o papai-noel não exista, mas é indiscutível o poder que ele tem sobre as “crianças”. E sobre nós também. Estou falando do poder que ele tem de nos emocionar. A Isadora estava que era uma alegria só: pulava e gritava e falava que o Papai-Noel havia deixado aquela caixa imensa só para ela...
No dia seguinte, o papai montou a bicicleta e passamos todo o tempo brincando juntos, sem briga e nem nada. Apesar de não mais acreditarmos em papai-noel, eu e o Felipe também ganhamos alguns presentes.
Conclusão: mesmo que o papai-noel não exista, ele é sempre “portador de felicidades” para a gente, seja através dos nossos pais ou de qualquer outra pessoa que deseje ou faça o bem para o seu próximo.
Aquele foi um Natal inesquecível e maravilhoso, inesquecivelmente maravilhoso...
02 de dezembro
Minhas “regras”, como diz a minha mãe, já foram embora. Ufa, um alívio...
Agora é só no final deste mês ou no principinho do próximo, se tudo correr “certinho”. Mamãe me disse que no início “elas” costumam se atrasar ou adiantar um pouco, mas que depois vão se “normalizando”.
O que sei é que isso me causa uma verdadeira confusão na vida, um trabalho que antes eu não tinha: ter que trocar “aquilo” uma porção de vezes durante o dia e a noite incomoda bastante e me deixa irritada, muito irritada mesmo na maior parte do tempo...
De qualquer maneira, estou muito orgulhosa! Pelo menos deveria estar...
Obs.: faltam apenas 22 dias para o Natal...
04 de dezembro
Hoje é o penúltimo dia de aula. Recebemos os boletins. Passei com “E” em todas as matérias. Estou esperando o Felipe chegar para compararmos quem tirou as melhores notas. No ano passado, ele se saiu um pouco melhor do que eu, mas este ano eu me esforcei e ai vamos ver, né?!...
Em vista do Natal estar chegando, eu e o Felipe estamos vivendo atualmente uma fase de “tréguas” e “bem-aventuranças”. Deve ser o tal “Espírito do Natal” de que a mamãe tanto fala...
O Felipe vai para a sexta série e eu já estou na quinta: eu, o Carlinhos, a Regininha, a Daniela, a convencida e antipática da Clarinha e todos os outros. Mas o que é melhor nisso tudo é que continuaremos juntos na mesma classe no próximo ano...
Na segunda aula de hoje, fizemos o sorteio do nosso amigo-oculto. Te dou um doce se você adivinhar com quem eu sai, Deliciosíssimo Diário Íntimo: lógico, tinha que ser com o Carlinhos! Parece até coisa do destino, não é mesmo?...
Pena ele também não ter saído comigo... Imagina: foi tirar logo quem? a chata e a metida da Clarinha. Mas eu não liguei, não me importei nem um pouquinho. Porque haveria de me importar, não é mesmo? O carlinhos só tem olhos para mim...
05 de dezembro, meio-dia...
Importantíssimo: faltam só 19 dias para o Natal. O grande dia se aproxima, mas com que lentidão, meu Deus!...
Hoje foi o último dia de aula. Parece um sonho: estamos de férias...!
Na aula de ontem o Carlinhos me pediu uma lembrança para guardar durante as férias. Ele e sua família vão viajar para a praia e nós também. É pena que a família dele vai para o Rio de Janeiro e nós para Guarapari, no Espírito Santo...
Estou tão ansiosa com a viagem que na noite passada sonhei que tinha colocado um bilhete endereçado ao Carlinhos dentro de uma garrafa e que a havia arremessado da Praia dos Namorados ao mar...
...E que ela fora pelo litoral, impulsionada pelas correntes marítimas, até chegar na praia próxima à casa onde a família do Carlinhos se encontrava hospedada. E que ele, então, a encontrara, tirara a rolha e lera o bilhetinho, ficando muito feliz ao saber que mesmo de longe eu continuo a pensar nele...
Bom, foi só um sonho e um desejo. Na verdade, achei que o Carlinhos ia me pedir um retrato para carregar na carteira e por isso trouxe uma cópia da fotografia que nós tiramos para a formatura e na qual estou muito bonita, com o vestido novo que o meu pai me deu.
Como vai para a praia, dei a ele de presente uma sunga de natação e ele me retribuiu com um biquíni novo, estampado e lindo, cheio de flores... Olha só que coincidência! É o destino, não é mesmo!? E o que é melhor: vou poder aposentar aquele horrível biquíni lilás que tanto chama a atenção dos garotos no clube...
Mas, quer saber o que foi que o Carlinhos me pediu, quer saber, Amorosíssimo Diário: ele me pediu um beijo! Não um beijo como aquele do dia 16. Ele queria um beijo lá... você sabe de onde é que eu estou falando... daquele lugarzinho que fica bem no meio do caminho, entre o nariz e o queixo...
Se eu te disser que me recordo de tudo o que aconteceu, meu Estimadíssimo Diário, certamente estaria mentindo. Fiquei muito nervosa. O que eu consigo me lembrar é que os nossos rostos foram se aproximando e aumentando devagarzinho, feito Lua crescente quando vai se tornando Lua cheia...
...meus olhos estavam grudados nos dele e os dele nos meus e foram se chegando, se aproximando bem de mansinho mesmo, até que - de repente!, Zás!... - trombamos os narizes direitinho, exatamente como tinha que ser.
É certo que me doeu um pouco na ponta do nariz, mas fazer o quê? O amor às vezes dói...
Foi assim que eu ganhei de verdade o meu primeiro beijo, daquele mesmo jeitinho que eu havia visto o papai e a mamãe fazendo alguns dias atrás aqui na cozinha da minha casa. Foi inesquecível! Foi a coisa mais incrível que já me aconteceu desde a época em que eu ganhei de presente a minha boneca “Barrigudinha”!
Foi o máximo mesmo, você nem pode imaginar, Adorável Diário...
Início de noite
Daqui a duas horas temos que estar no clube para a festa de formatura. Todos aqui em casa já estão se arrumando. Eu estou muita linda no meu vestido novo e o Felipe também ficou muito bonito: está usando um terno cinza com flor na lapela e tudo...
Parece que ele arrumou namorada na escola e disse que vai apresentá-la hoje a noite para o papai e a mamãe. Estamos muito curiosos para conhecê-la...
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Viajaremos amanhã bem cedinho. Sei que isso vai ser o máximo, principalmente para a Isadora que ainda não conhece o mar. Aposto que ela vai estranhar e reclamar daquele mundão de água “salgada”, exatamente como aconteceu com o Felipe na primeira vez em que passamos as férias no litoral e ele sentiu na boca o gosto salgado da água que lhe havia respingado...
Como já está quase na hora da festa, tenho que me apressar senão não acabo de arrumar a mala. Mamãe disse para deixarmos tudo prontinho para amanhã. Assim, acho que chegou a hora de me despedir de você, meu Delicioso Diário Secreto e Íntimo. Pelo menos por enquanto, porque no ano que vem tem mais...
Então, até breve...
Até logo, Carlinhos, e Feliz Natal. Feliz Ano Novo, meu amor...
Feliz Natal, Regininha, até a volta...
Feliz Ano Novo, Daniela...
Feliz Natal, tio Gê e tia Maria...! Feliz Natal Pedro, Feliz ano novo Paulo...
Feliz Natal para você também, Clarinha. E um grande, um imenso beijo em todos...