In vivo - Capítulo 2

Memórias da antiga escola

Há tempos eu não sentia aquela sensação repressora de está em um lugar novo, vendo pessoas que nunca tinha visto antes e com as quais passaria a conviver a partir de então. Eu acabei de ser transferido para uma nova escola, o motivo? Fiz muitas inimizades... Minha mãe queria que eu estudasse em uma escola no centro, pois no meu bairro existem muitos estudantes que fedem a marginalidade, como os garotos que fumam e usam drogas quando a aula acaba e até mesmo durante a aula, só que fora da sala, detrás da quadra.

Na antiga escola eu apanhava bastante. O meu porte magro, baixa estatura e óculos faziam de mim um alvo fácil para os caras mais velhos dos oitavo e nono ano, não só eu como outros também, como era o caso do gordinho Josafá, que falava enrolado naturalmente e parecia uma gralha quando ficava nervoso. Os mais velhos provocavam ele só pra vê-lo nervoso. Eles pegavam sua bolsa e ficavam jogando entre si, o fazendo correr de um lado para outro, era deprimente vê-lo com a cara vermelha como um tomate e enrugada de tanto nervosismo. Eles nem sequer batiam nele, era um verme que nem pra se espancado servia. Pensando nisso eu procurava sempre andar longe deles, fazer o máximo pra que eles não notassem a minha existência e assim passar despercebido, mas nem sempre funcionava. Já fui pego muitas vezes por motivos fúteis e infantis, somente para servir de palhaço como o Josafá.

Por mais que eu tentasse ficar invisível, um garoto valentão vara-pau de pernas compridas do qual nunca soube o nome, só sabia que era do time de atletismo, resolveu me ensinar o seu ofício. Botava-me pra correr na saída da escola freqüentemente e em diversos lugares e situações. Às vezes eu caia fuçando o chão com seu empurrão violento, sentindo as batidas do meu coração na garganta. Ele ria convulsivamente de mim, e depois me deixava em paz.

- Corre! Corre senão eu te pego espirro de gente! – Era um dos meus apelidos. Tudo que era magro, fraco e esquisito servia para me representar.

Nunca tive certeza do porquê da implicância, alguns diziam que era porque eu tinha amizade com uma menina pela qual ele era apaixonado, que nesse tempo era da minha sala. Uma vez ela me deu um beijo no rosto por ajudá-la a fazer um trabalho de matemática em pleno corredor durante o recreio, então os boatos começaram. Seu nome era Aline, ela era uma menina baixa de cabeça pequena e redonda, cabelos encaracolados e de contornos tão bem talhados que parecia ser de porcelana. Com o tempo fiquei sensível e dependente dos carinhos dela, deixava de brincar com os outros para poder ficar mais tempo com ela, e quando não vinha para a escola, sentia amargamente sua falta. Havia uma ligação profunda, uma força me prendia a ela, talvez fosse alvorecer de um amor matutino. Os outros garotos me assistiam de longe me vendo falando com ela, invejosos. Começaram a inventar estórias sobre nós dois. Por dois meses fomos namorados segundo a opinião pública, e as piadinhas só pararam quando ela parou de falar comigo, talvez fosse isso o que eles queriam.

- Tá namorando hein?! Garanhão... – Dizia um me dando tapinhas nas costas.

- Que dia vai ser o casamento? – Ria outro.

- Posso ser padrinho? – Dizia um numa seriedade artificial e forçada.

- Que entrem os noivos! - Dizia alguém às vezes que entravamos juntos conversando na sala depois do intervalo.

Fiquei com raiva daqueles imbecis que fizeram ela de alvo de risadas. Fiquei triste sem ela. Começei a passar o intervalo na sala, os garotos me chamavam para brincar e eu sempre recusava, ficava na minha carteira desenhando meus garranchos. Eles ficaram ressentidos e me pediam desculpas, explicavam seus motivos, mas eu continuei isolado, evitando encontrar com ela e vê-la tirando o olhar de mim, aquilo me doía muito, era estranho eu tão novo com dores tão adultas. Tentaram desmentir a história para que eu fizesse às pazes com ela novamente, mas com o tempo eu acabei me desfazendo daquele sentimento. Ela me tratava agora como um desconhecido, parecia outra pessoa, não podia ser a mesma garota que me beijou no rosto. Eu não ligava mais, acho que não era amor sincero, e sim uma paixonite, algo mais eufórico do que sentimental.

Já o abutre que me perseguia, esse era um covarde, caso fosse verdade que gostava dela, pois nunca chegava perto dela para tentar conversar, nem antes nem depois do meu namoro de faz de conta com ela terminar, era bruto e desajeitado demais para se adequar aos moldes delicados dela, talvez achasse que ela era posse sua. Ele só sabia correr e bater nos outros, nunca tinha aprendido a ser gentil, pedia tudo aos gritos, era mais fraco do que eu no final das contas.

De tanto que me perseguia por causa dele sai dessa escola, mas não sem me vingar das coisas que ele me fez. No último dia na escola eu já sabia que ele queria me dar uma surra de despedida. Eu apanhei todos aqueles anos do ensino fundamental, incapaz de me proteger, muito menos tinha alguém que pudesse me livrar deles, mas não no último dia, será se não tinha sido o bastante? Até no último dia tinha que apanhar? Mas agora era diferente, eu não tinha mais nada a perder, não tornaria a vê-lo novamente. O meu hobby de assistir filmes me subsidiou a ter uma brilhante idéia: preparar uma ratoeira pra ele na qual eu mesmo seria o queijo. Passei os quatros últimos meses pensando nela e agora estava tudo pronto, meu medo era que algo desse errado. Já tinha terminado a minha última prova, tendo plena certeza de que passaria e não precisaria de recuperação, mas ele ainda estava na sala, provavelmente fazendo prova. Os caras já se despediam de mim.

- Ei cara, vai logo pra tua casa, senão o Fernando vem atrás de ti – Dizia um mais covarde que eu.

- É mesmo moço, não espera não – Concordava outro já se despedindo de mim.

- De jeito nenhum, hoje eu não vou bancar o covarde, hoje ele vai ter o que merece, vou descontar tudo o que ele me fez esse ano – Dizia eu olhando pro corredor entre a cantina e o muro da escola.

- Cara, ele vai te quebrar todo, sai logo daqui antes que ele venha, tu sabe o quê que ele quer.

- Nada, hoje ele vai ter o que merece, escrevam o que eu estou dizendo.

- E o que tu vai fazer? – Perguntava um entusiasmado percebendo que eu tinha algo escondido, e eu realmente tinha.

- Algo que ele não vai esquecer – Disse com um riso pra dentro.

Meus ajudantes recém-contratados cuidavam dos meus planos enquanto eu distraia os colegas. Após tocar o último sinal a profecia se cumpriu. Ele realmente veio atrás de mim na sua carreira endiabrada de avestruz, e eu como já era de praxe apertei o passo rumo ao corredor que descrevi antes. Ele caiu na ratoeira como um idiota que era achando que tava com tudo. Eu havia colocado vários fios pelo corredor presos nas paredes por pregos, de modo que ele tinha dificuldade em passar. Ele ficava desajeitado se abaixando enquanto corria, perdia toda a majestade, enquanto eu baixinho passava com facilidade, pois já tinha decorado os fios, mas o melhor ainda estava por vir. Ele esbarrou em um emaranhado mais fechado de fios que derramou um balde de tinta vermelha que estava no telhado da cantina. Ele ficou melado do lado esquerdo da orelha até a calça. Depois veio na minha direção, furioso como se fosse me esmagar.

- Ah seu fiapo de barbante, agora eu vou te quebrar todo! – Dizia ele tirando tinta da orelha.

- Não cara, não me bate não, por favor – Dizia eu abaixado no chão com as mãos protegendo a cabeça fingindo choro. Isso o deixou muito confiante e senhor da situação, e era isso que eu queria.

- Filho da Puta! Eu vou te encher de murro! – Disse, mas foi surpreendido ao pisar no buraco que eu havia cavado bem cedo de manhã escondido com as folhas do pé de manga.

O desleixo dos zeladores veio ao meu favor, pois foi com as folhas que eu disfarcei toda a armadinha. O buraco pequeno era só pra garantir que ele pisaria mesmo ali, o principal era a corda com um laço que coloquei na beira dele, mas coloquei esterco de vaca no fundo do buraco, não resisti em incrementar mais um pouco. Então eu me levantei puxando uma corda que desengatou um saco que estava pendurado logo atrás de mim na mangueira. Era um saco de fibra grande que tinha em casa, estava cheio de terra e peças de automóveis que tinha na oficina ao lado. Ele estava conectado a corda que passava pelos galhos. O puxão da queda fez a corda que passava pelas bifurcações dos galhos, prenderem suas pernas e acochar o nó. Foi muito difícil fazer uma armadilha dessas, por causa do arranjo das cordas e principalmente pelo saco. Ainda tive que pagar dois garotos pra me ajudar e não deixar ninguém passar por ali e desmanchar tudo. Foi um orçamento bom em relação do prazer de ver aquele grandalhão levar um tremendo tombo e ser arrastado pelo chão cheio de esterço de vaca e pendurado oscilando na minha frente de cabeça para baixo. Estava feroz como um leão dentro da jaula, mas agora eu era o grandalhão, e ele o alvo fácil. Ele estava içado no ar a uma distância de pouco mais de um metro do chão, o corpo todo melado de esterco e tinta.

Enquanto ele balançava e a corda rangia apertando o laço nas pernas dele, eu colocava alguns cacos de vidro no chão abaixo dele com as pontas para cima. Ao ver o que eu estava fazendo ele começou a soltar palavrões, então eu peguei uma tocha acesa de pano embebido em álcool e comecei a discursar. Eu estava morrendo de medo de dar errado e a corda não fisgar as pernas dele, ou de ele conseguir sair depois de pego, mas o nó juntou as pernas dele de uma forma que ele não poderia desfazer. Ver meu plano funcionar me encheu de confiança.

- Certo seu otário, como hoje é meu último dia aqui vamos inverter os papeis, agora eu sou o que bate, e você o que apanha. – Disse friamente de um modo que nem eu me reconhecia.

Meu sangue fervia em grossas labaredas de ódio, eu o tinha ali na minha frente, poderia fazer o que quisesse com ele, não havia ninguém por perto, e ele não é do tipo que grita por ajuda, além do mais eu tinha meus comparsas mantendo a minha privacidade e distraindo o vigia, o prêmio deles seria um lanche acompanhado de refrigerante após concluir minha vingança. Ele olhava para baixo amedrontado com o quão longe eu estava indo colocando cacos de vidro logo abaixo dele caso ele pensasse em desfazer o nó.

- Seu maluco, ta ficando doido é? Tu vai me cortar todo com isso se eu cair, para com isso! – Dizia ele com a voz alterada e a cabeça inchada com a pressão do sangue.

- Azar o seu, devia ter pensado melhor antes de decidir que podia bater em alguém! – Gritei eu feroz sentido que estava ficando alterado e febril de vingança.

- Ei moço, faz isso não, eu vou me cortar todo se eu cair, tu quer me matar? – Dizia ele começando a dar sinais de pavor.

- Até que não é uma má idéia... – Disse estendendo a tocha acesa perto da corda que sustentava ele.

- Pára com isso moço, tu é psicopata?! Desculpa cara, eu não vou fazer mais nada contigo, agora deixa eu sair daqui, ou pelos menos tira esses cacos de vidro aí – Dizia ele tropeçando na língua com o rosto mais vermelho.

- Hahaha, eu devia tirar uma foto sua – E o fiz com o celular que tinha no bolso – E então Fernando pernas de avestruz, você se arrepende amargamente por me fazer de idiota?

- Sim, si...im, ta bom me tira daqui.

- Quer que eu corte a corda?

- Não! Tira os vidros primeiro. – Dizia ele tentando se dobrar pra alcançar a perna.

- Não adianta você não vai conseguir... hahaha! – Dizia eu causando mais pavor àquele marmanjo que chorava como um bebê.

- Cara, minha cabeça vai espocar!!! Ta doendo muito, eu vou desmaiar e morrer assim.

- Tá ok. Resolverei seu problema, detesto ver alguém chorar...

Eu o empurrei de forma que ele pudesse oscilar mais forte e dei a ele a tocha com fogo. Devia está doendo bastante suas pernas.

- Agora você escolhe se morre de cabeça pra baixo com a pressão do sangue esmagando seu cérebro ou se arrisca a cair nos vidros e sobreviver. Até mais! – Disse eu já costas p ele acenando com a mão e andando calmamente até sumir da vista dele pelo corredor enquanto ele girava e começava a gritar.

Um de meus assistentes ficou encarregado do final. Através de um mecanismo que eu projetei para que ele pudesse cortar a corda antes que ela arrebentasse. Quando ele estava totalmente pendido para um lado onde havia um monte de folhas, ele puxou a cordinha e ela puxou uma faca bem amolada que estava junto a uma alavanca simples de madeira, que ao cair, bateria certeira na corda e a cortaria, deixando o pobre rato cair nas folhas depois de um susto que ele jamais iria esquecer.

Antes que ele corresse atrás de mim melado de tinta, esterco e fervendo de raiva, eu já tinha saído de bicicleta e estava longe em outro bairro em frente uma padaria esperando meus ajudantes para receber o relatório final e bancar mais lanche como recompensa pelo trabalho bem executado. Segundo eles, o Avestruz nem sequer foi visto pelos arredores. Ele deu um jeito de sair sem ser notado, o que é fácil, pois tem muito terreno baldio por detrás da escola e construções. O que sei é que ele nem sequer tocou novamente no meu nome. Ainda bem que ele não caiu nos vidros quebrados, pois eu só queria lhe dar um susto, não internado...

Desde esse dia fiquei espantado comigo mesmo, não achei que era capaz de algo tão engenhoso para um garoto que estava no final do sétimo ano, se bem que meus ajudantes foram bem úteis nas instalações. Agora estou em outra escola, tenho a chance de construir uma nova imagem de mim, me impor e ter o controle do ambiente em que vivo. Dessa vez irei enfrentar qualquer um que se opor a mim, é minha chance de fazer diferente, de fazer minha própria sorte!

Marcos Paulo Silva
Enviado por Marcos Paulo Silva em 27/12/2010
Código do texto: T2695014
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