SANTUÁRIO DAS LETRAS

Os pés chatos de Mané Tiquinho, sempre pisaram na terra. Esses pés conheceram a lama, a cinza, o barro, a areia, a massapé, a cal; a pedra grande, a pequena, a redonda; a pontiaguda; a fria e a quente.

De tanto andar seus pés ficaram marcados. Grossos, calejados, rachados, empapuçados, mas serviam... Ah, como serviam! Levando-o a todos os lugares.

Um dia alguém decidiu que Mané Tiquinho deveria ir à escola, e sem os pés não poderia entrar. Não é que justamente ali, naquele santuário das letras, viria sofrer a maior decepção! Sim, foi ali que ouviu pela primeira vez que seu nome não era Mané Tiquinho, que dali em diante tudo iria mudar. ‘ Seu nome seria: MANOEL ANTÔNIO QUIRINO DA SILVA. ’

Nunca ouvira tal coisa. E acrescentaram para o menino: ‘ Aqui não se usa apelido’. Desorientado o menino perguntou: ‘Apelido, o que é isso?’

Com os olhos arregalados, Mané mal conseguia piscar. Então seu nome não seria mais Mané? Então como seria encontrado caso alguém o procurasse, ou como iria saber que estavam falando com ele? Tava gostando disso não.

Mané continuou de olhos fixos na moça bonita, que tinha voz de artista... Dessas figuras etéreas que aparecem na TV. Pareciam anjas. 'Ah, anjas, não!' Disse dona Carlota que o correto é dizer: anjo.

- Essas roupas que você está usando não servem. A escola vai lhe dar dois uniformes, e só poderá entrar se estiver vestido com a farda.

- Ah, fessora, eu gosto tanto do meu calção! Não aperta minha barriga e minha camisa não aperta meu gogó...

- O nome é pescoço, Manoel!

Continuou a professora Belinda.

-E sapatos... Você precisa de sapatos. Que número você usa?

- Sei não. Não tenho número nenhum. Ninguém nunca me deu um. Onde posso encontrar?

- Ai, meu Deus! Esse veio de outro planeta.

- Eu não preciso de sapatos. Eu já tenho tudo que preciso para andar. São meus pés. Esses são importantes.

- Não, Manoel. Você precisa aprender muita coisa, ou melhor, você não sabe de nada. Esse lugar é um santuário e como tal precisa ser honrado. Alem disso, você já viu alguém andar por aí desse jeito? Pés descalços, sujos, pisando em tudo o que é impuro?Vamos! Experimente esses sapatos. Pode ser que sirvam.

O menino tentou. Mas os pés não se adequavam. Machucavam. Estava vivendo seu segundo suplício.

- Vamos, Manoel. Você consegue. Lembre-se: A ESCOLA ESTÁ FAZENDO TUDO POR VOCÊ. E O GOVERNO TEM FEITO TUDO PELA EDUCAÇÃO. O que você tem que fazer é aceitar o que estamos oferecendo, e dá graças a Deus pela oportunidade que está às suas mãos.

Mané Tiquinho olhou os outros meninos que ali estudavam. Todos limpinhos, certinhos, educadinhos . Olhou pra professora tão bela, com voz de artista. Contemplou o prédio tão bem cuidado, parecendo-lhe um palácio. Ah, e os livros? Tão novinhos e cheirosos... Sacola, lápis, cadernos, farda... Tudo novo.

Olhou para baixo e viu os seus pés. Pés diferentes, pés que não se encaixavam. Os pés de Mané Tiquinho, se decidisse ficar, iam incomodar muita gente... Triste constatou que ali não era seu lugar. Sem se despedir, deu as costas para o santuário das letras, partindo pra nunca mais voltar.

Obs. A escola deve ter portas abertas para os diferentes. Fazendo assim, ela abre um leque de possibilidade que vai atingir não só o aluno com deficiência em áreas diversas, como também os docentes e todas as demais figuras envolvidas no ambiente escolar. Darão uma chance a si mesmo e a outros; assimilando outras aprendizagens e tendo novas experiências.

29/10/10

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 29/10/2010
Reeditado em 03/01/2011
Código do texto: T2585278
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