Manezinho e Bidão

Meu dono é um menino que tem um grande coração. Seu nome é Manoel, mas todos o conhecem por Manezinho ou Mané. Tive melhor sorte que meus irmãos de sangue. Sou um jumento, tenho apenas dois anos e gosto de trabalhar. Não sou birrento, nem dou mordida.

Antes de pegar no batente, recebo minha ração, água fresquinha e tenho meus pelos escovados. Manezinho cuida de mim e me trata com carinho. Muitos não acreditam no que vou dizer, mas eu e meu dono nos comunicamos e nos entendemos as mil maravilhas. Estamos sempre aprendendo um com o outro. E isso se chama amizade.

Sei que meu dia vai ser atarefado. Carrego lenha, água, animais e outros tipos de cargas. Levo essas ‘miudezas’ para os sítios e por esse trabalho meu dono ganha uns trocados.

Muitos acham que os animais não percebem as coisas, não sofrem, não desejam nada para si, mas estão enganados. Percebemos quando somos amados, sofremos quando somos desprezados, enfim,desejamos ser tratados com amor.

Nesse lugar onde vivo e ‘ganho com o suor do meu corpo’, acontece algo estranho. O negócio é o seguinte: Depois das cinco horas da tarde passa por aqui uma 'tropa de choque'. Vou explicar: São caminhões cheios de animais. Poucas vezes vi passarem a pé. Qunado isso acontece,homens montados a cavalo tangem um rebanho de jumentos. Seguem pela beira do rio. Os animais demonstram medo e cansaço.

Um dia, Manezinho levou-me ao rio e ouvi claramente quando um dos meus irmãos que pastavam, dizia:

- Estou com medo – dizia com voz trêmula uma jumenta cinzenta. - Estou com medo, pois não sei para onde estão nos levando.

Um jumento velho, mas ainda imponente, disse com voz zelosa:

-Não tenha medo, nada vai nos acontecer. Se estivermos em perigo ainda tenho dentes e boas patas para acabar com quem intentar contra nós. Morro lutando, não se esqueça disso.

Meu dono percebendo meu interesse tirou-me da água e me falou ao ouvido:

- Sê tá preocupado né, Bidão? Sê tá preocupado com seus irmãos. Fique aqui que vou ‘discubrir’ pra onde eles ‘vai’ levar os ‘animá’.

Meu dono saiu de mansinho, e chegou como quem não queria nada, junto dos piões. Ouvi quando ele puxou prosa:

-”Tarde, sô”

-Tarde, menino - respondeu o pião de camisa xadrez.

- De onde vem ôcês?

-A gente vem de Riacho da pedra.

- Nossa! Léguas de caminhada, sô! Pra onde vai ôcês?

- Pra fazenda do seu Zito. Você conhece guri?-respondeu o pião que voltava com uma sacola. Tinha ido até à rua comprar alguma coisa pra comer.

- Sim, senhor. Conheço tudo por aqui! Fica lá pra riba do Poço Fundo. A estrada é a do Córgo do Cai Ali.

-Ah, bom!Quanto falta pra gente chegar?

- Moço, deixe os bichos descansarem um pouco mais, e depois é só levantar poeira que lá pras boca da noite ôcês chegam.

Mané percebeu um pião que ouvia em silêncio encostado na algarobeira, dizer com um riso espremido:

- Esperar pra quê, José? Eles vão morrer mesmo!

Mané ficou de orelha em pé. O pião de camisa xadrez fez sinal pra que esse calasse. Mané tomou uma decisão. Iria se oferecer para mostrar o caminho.

Os piões aceitaram a oferta do guri, e se colocaram na estrada. Depois de hora e meia de marcha apressada, chegaram à porteira da fazenda do seu Zito.Ali, os piões fizeram questão que o guri esperasse do lado de fora.Esperasse que dali há pouco voltariam.

Algo estranho acontecia naquele lugar e Mané iria descobrir. Voltando pra cidade foi procurar o velho Gogó pra falar o sucedido. E o que ouviu o deixou de queixo caído. Seu Gogó contou que lá pras terras do Dr.Zito toda carga de jumento servia para fazer charque. E o pior é que apesar de ser proibida a matança, os métodos usados eram de cortar coração.

- Cortá coração, como?

- É que a carne do jumento tem um odor e gosto muito fortes. Se o trabalho não for bem feito as pessoas percebem e não compram. Aí pra tirar o cheiro e o gosto o pessoal corta as patas dos jumentos e eles ficam a noite toda agonizando e suando. E todo cheiro ruim e gosto saem no suor. Pela manhã, os homens acabam o trabalho. A carne é lavada e temperada no sal grosso. Pronto, depois de uns dias é vendido como se fosse carne de boi salgada.

-Como é que o sinhô sabe disso tudo?

-Eu vi, filho com esses olhos que a terra há de comer.

-Mas isso é ‘maivadeza’, seu Gogó!

- Sim, filho, isso é malvadeza, mas ninguém pode fazer nada. Quem tentou, desapareceu sem deixar rastro.

- O sinhô qué dizer qui eles mata a gente?

-Sim, Mané, eles fazem o falador fechar a matraca para sempre.

-E a gente ‘num’ pode fazer nada? Denunciar, ‘falá pru delegadu’?

- Não! Até a polícia teve que calar a boca se quisesse trabalhar em paz. Eles têm capanga e há muita gente camuflada que trabalha pro homem. Você não viu o caso do ladrão que mataram na porteira? Não foi ladrão coisa nenhuma. Foi um empregado que estava dando com as línguas nos dentes. Mataram com um tiro no rosto. Ficou irreconhecível.

-É, eu ‘lembru’. Mas vou ‘pensá’ num jeito de livrar os ‘animá’ desse ‘malvadu’ do seu Zito.

-Mané prometa que vai esquecer essa história. É pro seu bem que estou pedindo- disse seu Gogó preocupado.

Manezinho saiu dali dando trabalho pra cachola, e até Bidão havia percebido que seu dono não era mais o mesmo. Um dia perguntando o porquê de tantos pensamentos ocultos ouviu a história dos seus irmãos de sangue e ficou revoltado. Ofereceu-se para entrar na fazenda, morder o pessoal e livrar os animais que estavam na fila para morrer, mas Mané não deixou. Tinha de haver um jeito. Ele iria descobrir.

Passou a rondar a fazenda, tentando fazer amizade com algum menino que morava lá dentro. Quem sabe poderia pedir pra trabalhar lá e assim ser testemunha das crueldades daquele ricaço que ganhava fortuna em cima da tortura de animais. Não sossegou. Até que soube que dona Licota havia sido contratada para cozinhar e morar na fazenda. Seu marido seria um dos vaqueiros. A coisa parecia está caminhando. Foi se chegando devagar, aproveitando os dias de feira para ganhar a confiança da molecada, até que veio um convite para pescar no rio dentro da fazenda. Devagar e com paciência entrava e saia da fazenda sem deixar ninguém perceber que estava ali para constatar com os próprios olhos o que seu Gogó havia lhe dito há três meses.

Outra carga de jumentos e cavalos passou pela cidade, e ele aproveitou pra chegar na fazenda naquele dia. Mas brincando com os moleques tentava ir para mais perto daqueles galpões grandes que ficavam no pé da serra, mas Ricardão, o filho mais velho de dona Licota impediu. Quando Mané perguntou o porquê, ouviu a seguinte explicação:

- Mané, nós não podemos ir até lá. Seu Zito deixou ordens para ninguém chegar perto dos galpões. Se a gente for, meus pais perdem o emprego.

- Que ‘chatu’, não? Queria tanto saber o qui acontece ali!

Baixando a voz, Ricardão disse: - Eu sei. É lá que matam os jumentos.

Mané quase que cai pra trás. Ali acharia um aliado. Disfarçou quanto pode:

- E ôcês já viram?

-Já. E o qui ôcês acham? Comu é qui matam? É feitu boi?

-Não! É muito pior – responderam os moleques.

-Eles cortam as patas e os bichinhos ‘gritam’ a noite toda. Suam muito, e enquanto sangram e suam o cheiro da carne ruim vai saindo.

- Não é carne ruim, Tonto! É que eles suam e o suor lava a carne deixando ela saborosa pra gente comer. Foi isso que o capanga disse. Mas a gente esqueceu-se de uma coisa...

-O quê?

-Não é pra gente falar dessas coisas pra ninguém. Mané, você esqueça o que a gente disse. Se não...

- Se não o quê, Ricardão?

- Eles fazem a gente acordar com a boca cheia de formiga!

Mané saiu dali convicto que tinha de fazer algo, mas não sabia como. Passando pela casa da professora Avanira, resolveu entrar e falar suas preocupações. E a professora depois de ouvi-lo, confessou:

- Estamos investigando seu Zito há meses, e queremos que você se afaste da fazenda, pois a qualquer momento a polícia vai entrar com tudo lá, e, não queremos que inocentes sofram. Temos todas as provas. Lembra de dona Licota? Pois é, ela conseguiu gravar algumas conversas, tirou algumas fotos. Aquele vaqueiro que você conversou na beira do rio era um policial disfarçado. O homem vai pra cadeia, pode ter certeza disso. Vamos tirar dona Licota amanhã, e daqui pra sexta feira a polícia entra com tudo. A casa já caiu, e ele nem imagina que os dias de sofrimentos dos jumentos vão acabar e toda aquela corja vai pra trás das grades. Ainda tem os assassinatos... Tudo vai ser esclarecido, pode ficar certo disso.

Mané saiu dali com o coração voando, sabia que não pode fazer muita coisa, mas tinha a consciência que não foi omisso nem conivente com os erros dos outros. Quando crescesse ia ser policial para prender gente sem vergonha como seu Zito.

Mas por enquanto, tinha pressa. Iria contar a novidade para seus dois amigos, eu e seu Gogó.

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 08/02/2010
Reeditado em 18/02/2010
Código do texto: T2076377
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