Cicatrizes [devaneio]
"Todos possuímos uma cicatriz por algo que fizemos no passado. Não possuir nenhuma é ter uma alma incompleta."
(frase de um desenho antigo)
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- Eu não sei nada sobre seu passado... E mesmo que soubesse, não há nada que eu poderia fazer pra mudá-lo. Existem traumas na sua vida, esses buracos na sua alma, que sempre vão existir, e eu não posso tapá-los.
A garota não falava nada, e insistia em fingir desatenção. Mas Miguel sabia que ela estava ouvindo. Continuou:
- Iris me contou que vocês costumavam brincar muito... E que a sua brincadeira preferida era "polícia e ladrão". Mas algumas vezes vocês extrapolavam e alguém acabava se machucando.
O que ele estava tentando dizer?, Raven se perguntava. Ele prosseguiu:
- Quando você se machucava, abria ferida, sangrava... Você se lembra da sensação?
- Dói - simplesmente ela respondeu.
- Exato, na hora dói, fica sangrando. Se você fica cutucando, ela não pára de sangrar, não é verdade? Mas se você esquecê-la por um tempo, deixá-la cicatrizar por completo, depois você pode tocar na ferida que não sangra mais.
A garota continuou sem falar nada além. Miguel continuou:
- As feridas do corpo depende de nós mesmos, da capacidade de coagulação para fechar a ferida, sem que precisemos de nada extra. Já as da alma são mais difíceis de cicatrizar. Isso porque elas não se curam sozinhas, na realidade, apenas uma outra alma é capaz de curar uma alma. Por isso que as pessoas não podem viver isoladas.
- Mas são exatamente as outras pessoas que fazem uma alma sangrar. As pessoas vivem se machucando. - finalmente ela manifestou estar prestando atenção.
Ele a olhou paternamente.
- Quando você brincava de "polícia e ladrão"... quantas vezes você caiu e se machucou?
- Incontáveis...
- E alguma vez você se recusou a brincar por medo de se machucar?
Raven começou a entender o que Miguel estava tentando dizer com aquela conversa aparentemente sem propósito. Mesmo assim, ele explicitou:
- Você sempre se machucava, mas não se importava muito porque sabia que logo iria sarar. Mas suas feridas na alma, e não são poucas que você carrega... Só aumentam em número, e elas não se cicatrizaram.
- E o que eu deveria fazer?
- Do mesmo modo que você deixa que a ferida na pele se cicatrize pra você voltar a cutucá-la, as feridas na alma também são assim. Eu não sei sobre seu passado, só sei que ainda te faz sangrar. Se você for atrás disso nas suas atuais condições, só vai continuar sangrando, até a hora que sua alma sucumbir de tantas feridas. Se você esquecer isso um pouco, deixar-se regenerar, mais tarde você pode voltar a tentar a entender seu passado, que já não vai lhe causar tanta dor. Permaneça conosco, por um tempo. Depois, quando estiver recuperada, poderá escolher o que fazer.
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(obs.: trecho de um capítulo entitulado "Família: hospital de almas", de uma história ainda sem título)