Prelúdio Negro
O lobo corria por sobre a imensa extensão branca, a neve que nunca derretia nas terras do norte. O céu estava escuro, mas não significava que era noite, ultimamente era impossível dizer que horas eram. Nem mesmo o tocar das patas na neve causava algum barulho, era como se todo e qualquer som tivesse partido.Mas havia um rastro que indicava sua passagem, vermelho sobre branco, suas patas estavam machucadas pelos dias de corrida frenética, mas a dor não conseguia lhe atingir, não havia tempo para ela.
Parecia que jamais chegaria ao seu destino... Começava a perder as esperanças, a única coisa que lhe restava naqueles dias sombrios e desprovidos de vida. Sabia que caso não chegasse a tempo, tudo teria sido em vão.
Ainda podia ouvir os gritos, o som da luta, estratagemas tão intensos que no fim de nada adiantaram contra o instinto destrutivo de seus filhos. Seus filhos com ela... Ingratos, malditos fossem todos. O que tornava as coisas piores era o fato de vê-la em cada canto, ouvir sua voz chamando seu nome, mas sabia que enquanto a visse daquela maneira, era um sinal de que ela estava viva... Porém, a sentia cada vez mais fraca, partilhando seu sofrimento, e em sua trilha ele jurava, em nome de todos os deuses que podia se lembrar que faria pagar bem caro, todos que esqueceram dela. Malditos...
Seus passos tornavam-se ainda mais rápidos, contrariando o cansaço que seu corpo sentia. A paisagem ao redor apenas um borrão... As poucas árvores que começavam a aparecer, lhe indicavam que estava no caminho certo. Mas a preocupação também estava crescendo, pois havia bem mais do que 1 hora que não a via nem ouvia. Chamara o nome dela, mas nada aconteceu naquela dimensão sem vida.
Por fim o contorno do grande castelo surgia ao horizonte, negro, parecia cortar o céu com suas torres altas e ameaçadoras. Parado ali, sentia a fúria crescer dentro de si, um ódio que pensou jamais sentir... Precisava liberá-lo, ou seria consumido. Foi ao passar por uma grande arvore de aparência muito antiga que ele a viu, deitada perto das raízes altas. Ao redor dela, folhas caiam como lágrimas vindas de um galho curvado sobre si... Sua alma estava chorando, pois não havia mais nada a fazer.
A imagem dela sumiu, deixando para trás uma sensação de vazio. Então ele soube que chegara tarde demais... A natureza havia morrido. Um uivo de dor saiu de sua garganta, ecoando pela floresta, levando consigo aquela sensação arrasadora... O fim havia chegado. O Grande Lobo despertaria em breve, devorando céu, terra e mar em sua trilha de destruição.
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Vários anos se passaram desde que Tristan encontrara Elwin na cidade, protegendo-a de um grupo de fanfarrões que tentavam lhe machucar e então a acompanhara até a floresta, onde a jovem residia. Não planejava passar mais do que uma noite ali, apenas o suficiente para que sua espada fosse cuidada pelo ferreiro da cidade, pois havia sido danificada após uma jornada pelas montanhas. Mas Elwin não era uma garota como as outras.
Vivia isolada na floresta, em uma cabana deveras confortável, tendo apenas a companhia de animais... E não era apenas da companhia humana que era desprovida, mas de sua visão também. Porem, não era somente isso. Ao primeiro olhar, seria uma simples garota de aparentes 20 anos, mas Elwin era fruto de um ritual, no qual sua visão fora tomada antes mesmo do nascimento, e havia se tornado ainda no ventre de sua mãe,a personificação da natureza.
As pessoas naquele vilarejo jamais entenderam o quanto Elwin era especial, e a temiam, eram hostis com ela e jamais lhe ajudaram, salvo poucas pessoas que não hesitavam em lhe estender a mão. Sua vida na floresta havia começado quando criança, mas afinal viver ali, não seria problema para ela. Sentia-se sufocar na cidade, a “selva de pedra” não lhe era natural e todos aqueles sentimentos ruins pareciam se infiltrar nas construções como a liga dos tijolos.
Tampouco Tristan era um rapaz comum. Oriundo de um vilarejo extinto, o rapaz tinha sua alma fundida com o espírito do Grande Lobo, que por vezes aparecia, testando os guerreiros e aquele que o derrotasse, herdaria seu poder e sua alma. Mas o preço da batalha foi cruel e as pessoas do vilarejo pagaram por ele, tornando-se amaldiçoadas. Vivendo mais em sua forma lupina do que humana, Tristan também não sentia afinidade com as pessoas e elas por sua vez, sentindo a fera selvagem em seu intimo, mesmo que não pudessem ver ou saber exatamente o que era, o repudiavam. Mas em Elwin, Tristan encontrou o conforto, o carinho e compreensão, a amizade e por fim, o amor. Como poderia ser diferente, se ela era a natureza enquanto ele, um lobo?
Não demorou para que seus corações encontrassem a mesma sintonia, como se suas almas estivessem fadadas a se encontrar e se completarem.
No dia em que juntos foram para a cidade, recuperar a espada no ferreiro, Tristan por pouco não deixou sua fúria o cegar.Aquele mesmo grupo que encontrara no dia anterior, ameaçando Elwin, havia pego a garota quando esta cumpria suas obrigações para com aqueles que gostava na cidade.A levaram para um lugar isolado, e se não fosse por seus instintos, Tristan chegaria tarde demais, mas a cena presenciada, do líder do grupo quase consumando o ato libidinoso, foi demais para o rapaz, que sem hesitar, avançara sobre os homens, deixando no final, um rio de sangue e carne rasgada.Neste momento havia sentido uma forte e profunda vontade de proteger Elwin, a colocando acima de sua própria vida, seu único motivo para existir e em seu intimo jurou que a protegeria a qualquer custo.Chamava aquele sentimento de proteção, mas não sabia que o nome para ele era outro.
Naquele mesmo dia, perto do pôr-do-sol, quando haviam retornado para a cabana, descobriu que havia algo mais naquele sentimento, quando seus lábios tocaram suavemente os lábios de Elwin.Rápido demais, tudo havia acontecido, era como se estivesse escrito, como se tudo que até agora tinha ocorrido na vida de ambos, fosse culminar naquele exato momento, mas apesar da rapidez dos acontecimentos, a certeza de tudo não era uma ilusão.
Mas fora daquele circulo de felicidade, uma densa escuridão pairava como corvos no céu, atentos a cada mínimo movimento.Havia no mundo um mal a pouco despertado, muitos não sabiam a seu respeito, mas o casal apaixonado sentia aquela nevoa maligna se aproximando pouco a pouco, mas ainda, não oferecia um perigo imediato, porem ambos estariam em alerta, aquela ameaça ainda não havia tomado uma forma para que a combatessem.
Os dias eram como sonhos, tudo era tão perfeito, quase surreal, uma sensação de felicidade que parecia ser eterna e imutável.E pouco mais de dois anos depois, Elwin havia dado à luz, gêmeos.Os meses que antecederam o nascimento foram passados com ansiedade e alegria, algo tão novo e inesperado na vida de ambos, que nem mesmo as dificuldades poderiam apagar os sorrisos de seus semblantes.Tristan lembrava-se perfeitamente de seus sentimentos na primeira vez em que tomara Elwin em seus braços, sua felicidade por saber que seria o primeiro, e único, a lhe ter daquela forma e por saber também, que ela se alegrava com aquela perspectiva.
No dia em que as dores de Elwin se tornaram mais intensas e preocupantes, Tristan correra ate a cidade, buscando a única pessoa que poderia ajuda-los,a esposa do padeiro que sempre guardava algo especial para a garota,eternamente grato pela ajuda dela no momento de dificuldade em sua vida,quando quase perdera sua esposa e filha.Do lado de fora da cabana, Tristan caminhava de um lado para outro, inquieto, sob o olhar atento dos animais que eram mais próximos a eles, guardiões da floresta, o urso, a águia, o cervo e um belo lobo negro.Quando o primeiro choro ecôo, o silêncio que havia na floresta era quase palpável, parecia que até mesmo o vento havia cessado seu sussurro para ouvir o primeiro sinal da chegada dos herdeiros do lobo e da natureza.Quando a segunda criança nasceu, Tristan já não cabia em si de tanta felicidade, dentro da cabana, com o primogênito nos braços.Elwin, apesar de esgotada com todo aquela dor e esforço, não conseguia parar de sorrir, as lágrimas e alegria escorriam por seu delicado rosto.
Os primeiros anos foram mágicos, Alastar e Alarios cresciam em tamanho e força num ritmo mais rápido do que as crianças comuns, mas havia algo, uma sombra que crescia no coração de ambas as crianças, e que a principio, ninguém conseguia sentir, mas com o passar do tempo, esta sombra foi tomando forma e espaço, criando dois sentimentos perigoso em ambos: a ambição e ganância.
Sabiam que não eram como as crianças que encontravam na cidade, eram mais fortes, mais rápidos, mais inteligentes, e possuíam um poder interior que aquelas outras crianças apenas imaginavam em seus sonhos.”Somos deuses”, diziam, acreditando que as outras pessoas deveriam servi-los, que não eram boas o suficiente para eles.Logo os problemas começaram, aqueles que não obedeciam a suas vontades, eram castigados de forma severa, e ao completarem 10 anos de vida, possuíam a aparência com alguém do dobro da idade deles.Sabiam que seus atos entristeciam seus pais, especialmente Elwin, mas diziam para ela, que o mundo pertencia a eles, que a família deles, deveria ter o mundo aos seus pés, e que fariam isso.
Mas chegou o dia em que ambos deixaram seu lar, em busca do que chamavam de “caminho da salvação”.Sumiram pelo mundo,sem deixar qualquer rastro,mas aquela sombra no coração deles,havia ganho uma densidade assustadora,trazendo consigo o presságio de tempos negros.
E mais 10 anos se passaram.Elwin e Tristan não tiveram outros filhos, embora ainda conservassem a mesma aparência de quando se conheceram,Elwin definhava de tristeza pela perda dos filhos,sentia-se culpada pelo o que tomara conta das almas deles,e nem mesmo Tristan conseguia dominar aquela tristeza,e a sua própria foi transformando-se em ódio pelos filhos,raiva pelo o que estavam fazendo não só a própria mãe,mas ao mundo,que sofria as conseqüências do estado frágil de Elwin.
Era uma tarde de outono, particularmente agradável.Havia alguns dias em que o espírito de Elwin começava a recuperar sua antiga força, tendo sua base no amor que Tristan sentia por ela, em seu esforço de faze-la sorrir, e a noite anterior fora como a primeira em que estiveram juntos, deixando o coração da moça mais leve.Elwin encontrava-se em uma clareira perto da cabana, colhendo as pétalas de Quatro-Estrelas para uma poção que prepararia para mandar até a cidade.Já havia recolhido o essencial, quando sentiu a brisa mudar, tornando-se fria, não o frio comum que se sente ao entardecer, mas aquele que tocava a alma, trazendo consigo uma sensação de medo.O sol que brilhava fraco, mas ainda com um calor gostoso, parecia deixar seu brilho morrer por entre as folhas que ainda se mantinham nos galhos mais altos.A floresta em si parecia mais silenciosa, como se não ousasse fazer sequer um som.Elwin sentiu que havia algo errado, algo ruim que tocava o solo da floresta, trazendo a morte por onde passava.Ergue-se completamente, girava o corpo devagar, não precisava da visão comum para poder ver o que se passava por ali, as sensações dentro da floresta, lhe davam o necessário para “ver”, e assim, fixa sua atenção em um ponto desprovido de qualquer cor, qualquer vida, como se as sombras brotassem do chão.E parados naquele ponto, em pé com terríveis olhos amarelos, estavam Alarios e Alastar.Se não fosse seu coração de mãe lhe dizendo que eram eles, não teria reconhecido.
Ambos haviam mudado, embora ainda fossem jovens, suas feições eram duras e sombrias, uma aura maligna pairava ao redor deles, pequenas e finas, mas visíveis cicatrizes pontilhavam algumas partes de seus rostos,descendo pelo pescoço,mas todo o resto estava coberto pelas capas de viagem que usavam.Suas auras lançavam visões terríveis na mente de Elwin, que recua, ao passo que Alastar avançava, sorrindo.
- Depois de todos esses anos, não vai nos abraçar mãe?Voltamos para casa.- a voz que antes lhe enchia de ternura quando a chamava, agora lhe causava um calafrio.Ao ver que ela continuava em silencio, o sorriso ganha novas dimensões, com um ar de evidente satisfação.
- Eu lhe disse que conseguiríamos, estamos mais poderosos mãe, descobrimos muitas coisas, entre elas, como fazer do mundo o quintal de nosso reino.E você, irá nos ajudar em nossa missão de salvar este mundo, das almas podres desses humanos.
Tristan havia desenvolvido uma ligação forte com Elwin, podendo até sentir suas emoções e pensamentos, e agora sentia o medo que irradiava dela com uma força devastadora, não precisava ver o que se passava para saber o que era.Havia temido a chegada deste momento e agora se amaldiçoava por ter escolhido este dia, para ir à cidade.Seus passos se transformavam em uma corrida desenfreada, seu corpo tremia com um forte espasmo enquanto sua forma lupina, adormecida pelo tempo, retornava.Mas quando seus passos alcançaram a borda da floresta, Elwin era atacada por Alarios que surgira atrás dela enquanto sua atenção estava em Alastar, e ao alcançar enfim a clareira, os únicos vestígios de Elwin era sua cesta caída ao chão, o conteúdo esparramado, e com um súbito frio na espinha, tomava consciência das gotas de sangue no chão.Haviam derramado o sangue dela, filhos ou não deles, pagariam por isso.
A caçada de Tristan se estendeu em direção às terras frias do extremo sul, que ao contrario das terras do norte, onde havia varias vilas, o sul estava morto.Houve um confronto no primeiro mês da caçada, quando ambos tomando conhecimento da perseguição por seu pai vieram ao encontro dele.Não foi uma luta fácil, e por pouco o espírito do Grande Lobo não acordou em sua totalidade, a fúria de Tristan era imensa, e apesar de todo seu conhecimento e experiência, não conseguiu derrotar os filhos, e este não foi o único combate entre eles, porem o ultimo havia sido o pior e quase ceifara a vida de Tristan,e serviu para colocar uma distancia ainda maior entre ele e Elwin.
Não foram poucas as vezes em que ouviu seu chamado,seu nome sussurrado ao vento trazia a voz de Elwin,em varias ocasiões,tivera um vislumbre de sua imagem,que ficava gradativamente mais fraca,mas enquanto a visse e ouvisse,sabia que ainda estava viva,esperando por ele,e este fio de esperança o mantinha lúcido,mantendo o lobo afastado da chance de lhe tomar o corpo e mente.
Perdera qualquer noção de tempo quando finalmente seus passos o levaram ao final de sua jornada, estava no território que os gêmeos reivindicaram para si.
Mas o tempo perdido lhe custara um preço alto demais, e agora, não havia volta no único caminho que lhe era mostrado, e nele, mais forte do que a destruição que o mundo sofreria, ardia um único sentimento: a vingança.