Cavaleiros desajustados - (Noite anterior à partida)

Eram quatro cavaleiros: Dicot, Erpo, Ferin e Gares. Os quatro muito jovens, honrados e nobres, foram promovidos de escudeiros com a idade mínima, aos 21 anos.

Com o advento da guerra com o país vizinho do norte, esta era a primeira oportunidade de demonstrarem seu valor no campo de batalha.

Na noite anterior à partida, Gares não conseguia dormir. Deitado no gramado onde costumavam brincar quando crianças, olhava as estrelas, pensando em sua vida. Nem reparou quando Ferin apareceu a seu lado.

- Ansioso?

Só então reparou na presença do amigo, ao ouvir a pergunta.

- Absolutamente - respondeu-lhe.

- Absolutamente "sim" ou absolutamente "não"? - replicou Ferin.

- Pedir a um poeta para interpretá-lo, a ele próprio, é suicídio, você sabe...

Ferin sabia, só estava provocando. Apenas Ferin era capaz de entender Gares e sua alma de poeta. Gares era um jovem sensível, romântico, muitas vezes mal interpretado. Embora fosse um bom combatente nos treinos, a guerra não era seu lugar. Pensando nisso, Ferin perguntou:

- Por que você está indo, Gares?

- Por que não ir?

- Creio que você seja o que menos se ajusta à frieza do campo de batalha. Seu coração caloroso merece algo melhor.

- Meu caro, se for pensar, todos nós somos desajustados! O homem não nasceu para a guerra, embora continue insistindo nela. Mesmo se olhar para nós quatro, o que temos? Eu sou um poeta, você é um pensador analista, Erpo é preguiçoso, Dicot é bon-vivant. Somos apenas crianças mimadas; o que estamos fazendo com armas nas mãos?

- No meu caso é lógico - disse Ferin - Minha mente não se aquietará se eu deixar essa chance escapar. Como pensador, procuro enxergar todas as dimensões do homem, atingir os limites, experimentar. Os prazeres e as dores de se viver. Mas e você, nobre amigo? E a sua dama? Vai deixá-la pra trás?

Gares sorriu.

- É exatamente por causa dela que eu tenho mais chances de voltar vivo que você. Por que eu sei que tem alguém me esperando, alguém que quero rever. Quero experimentar a sensação que narram as histórias, do retorno à casa. A tensão no campo de batalha, sentir-me perder para então me encontrar... Ah, quero encontrar a minha real força!

- Vocês são é loucos! - uma outra voz interrompeu, juntando-se aos dois - Quem é idiota de querer ir para a guerra?

- Dicot, o que houve? Não disse que ia aproveitar sua noite de despedida? - perguntou Gares.

- Que posso fazer? Aquela mulher é doida, me expulsou da casa dela! Nem pra levar em consideração que estou de partida, não quis atender meu pedido e me chamou de vagabundo, de sem-vergonha! De que adianta eu ser cavaleiro se isso não aumenta meu status com as mulheres?

- Por isso que você vai pra guerra? Pra se tornar popular? Quanta vulgaridade! - Gares fingiu indignação, mas acabou rindo. Ferin percebeu o tipo de festa em que o amigo estivera, e não era difícil de imaginar que tipo de pedido Dicot tinha feito, no estado de falta-de-bom-senso causado pelo excesso de álcool...

- Eu não sou como vocês dois, idealistas - falou Dicot - Eu não preciso encontrar um sentido na vida, ela foi feita para ser aproveitada!

- Então por que você está indo pra guerra? Ela não contraria seu conceito de boa-vida?

Dicot ficou mudo, sem-graça. Sentia a cabeça querer sair do pescoço, e se esforçava para não deixar isso acontecer. Respondeu num murmúrio:

- Meu pai ia cortar meu financiamento.

Ferin riu alto. Debochou:

- Não acredito! Iam cortar sua mesada?

- Ferin! - reclamou Dicot - Não é uma mesada qualquer! Sabe que sem o financiamento eu não posso sustentar meu status, e assim eu seria demovido do posto de cavaleiro!

Ferin continuou a rir do desespero infantil do amigo. Depois de um tempo, comentou:

- Cada um tem seu motivo para ir. O que será que motivou Erpo?

- Erpo é tão preguiçoso que quase não se tornou cavaleiro - disse Dicot - Ele apenas se motivou porque não queria ficar pra trás. Sabe, nós três como cavaleiros, só ele que não...

- Vai ver, foi isso - Gares emendou - Vendo que nós três íamos pra guerra, ele quis ir também.

- Talvez... - ponderou Ferin - Erpo é preguiçoso, mas maior que sua preguiça é seu orgulho.

- É... Tão preguiçoso que nem tá aqui. Certo ele, deveríamos seguir seu exemplo e irmos dormir, amanhã partimos cedo. Eu vou indo, acabou minha diversão mesmo...

Com isso, Dicot se despediu, misteriosamente sem dificuldades para andar. Talvez já houvesse criado resistência ao álcool...

- Se importa se eu lhe fizer companhia, nobre amigo? - perguntou Ferin a Gares.

- Se importa se eu interromper seus pensamentos para uma ou outra citação, meu caro? - retrucou Gares.

Sem dizer mais nada, acompanhando o silêncio das estrelas, Ferin pensava em como a vida deles iria mudar, sem conseguir achar uma resposta que o satisfizesse. Não, a falta de vivência não lhe permitia descobrir antes do tempo. Era uma cortina perigosa essa que queria abrir, mas ele não se permitia deixar de arriscar.

Voo do Corvo
Enviado por Voo do Corvo em 26/10/2009
Reeditado em 26/10/2009
Código do texto: T1887944
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