O VIOLINISTA

Edmundo dormiu mal toda a noite, perseguido por pesadelos. Via-se detido por rochas inacessíveis, ravinas intransponíveis, ribeiras caudalosas, uma geografia onírica de sonhos maus, que, por mais que tentasse vencê-la, sempre o impedia de chegar a um destino indefinido que o chamava imperiosamente. Acordou várias vezes angustiado, mas voltava a adormecer. No último pesadelo que definitivamente o espertou, viu-se arrastado por uma enxurrada que o levava de calhau em calhau, a cabeça a sangrar. Levantou-se, acendeu o candeeiro às apalpadelas e foi direito ao pequeno espelho que tinha dependurado da parede aos pés da cama. Não, não tinha nada, tinha sido um sonho.

Edmundo, um mocinho desempenado e desenvolto dos seus quinze ou dezasseis anos, tinha-se deitado preocupado pelas cautelas e ralhos da mãe que não queria que ele fizesse a viagem sozinho. Não era a primeira vez que palmilhava de costa a costa o interior bravio da ilha, mas era a primeira vez que o ia fazer sozinho. Isto ainda é inverno nesses matos, filho, o tempo ainda não está seguro, dizia ela, melhor é esperar mais umas semanas... ou um mês... ou então esperar que alguém faça a viagem para não ires sozinho.
—Esperar? Mas eu esperei todo o inverno por este dia... nem mais uma hora!
—Fala-se a alguém que vá contigo. Paga-se a um homem para te acompanhar... Ai se eu soubesse não tinha acabado aquilo tão depressa. Olha agora, filho, quem esperou três meses, não pode esperar mais duas ou três semanas?
Mas Edmundo resistira aos seus próprios receios e aos conselhos de todos e deitara-se com o firme propósito de, antes do dia raiar, se meter a caminho sozinho para Santa Cruz, do outro lado da ilha.
De mansinho para não acordar os outros, empurrou a porta do seu quarto e, ainda em cuecas e camisola interior, foi andando ao longo do corredor que dava para a cozinha, pé aqui, pé ali, o candeeiro na mão à frente do nariz... Ao passar pelo quarto da irmã, parou com um sorriso maldoso, vou lhe pregar um susto... Ainda levou a mão à taramela da porta mas não abriu, não vale a pena, pensou, deixá-la dormir, e entrou na cozinha.

Estava tudo como tinha ficado na véspera. Nas costas duma cadeira, ao pé da mesa, a froca de lã, nova que a mãe lhe tinha feito, e, sobre o assento da cadeira, muito bem dobradas, uma camisa lavada, um par de calças e umas meias. O cobertor de lã também lá estava, enrolado e atado em cima da mesa, pronto a ser entregue. Edmundo sorriu, agradecido pelo amor daquela mãe que trabalhara todo aquele inverno a cardar, a fiar e a tecer para que ele pudesse ter o seu violino, a coisa que mais queria nesta vida... Tudo arranjado e pronto, pensou Edmundo, agora é só chegar a casa do Alfredo Violeiro, entregar o cobertor, pegar no violino e pôr pernas ao caminho de volta. Depois... música... já sei o suficiente para aprender o resto sozinho, vai ser bonito... Deitou à cara ainda quase imberbe e aos fartos cabelos uns punhados de água do lavatório de verga, vestiu-se, calçou as botas de borracha, apanhou o saquinho da merenda que tinha ficado também pronto de véspera e saiu sem se lembrar de meter uma dentada na boca.

Lá fora estava um ventinho fresco... Edmundo virou-se para os lados donde ele soprava e fungou o ar, como quem quer cheirar alguma coisa. Está leste, pensou, mau sinal. Um galo, ao sentir-lhe os passos no empedrado do pátio, ensaiou, ainda no poleiro, um prematuro bom-dia, mas calou-se logo como que envergonhado daquele fora de horas. A Teimosa bufou meigamente pelas narinas enquanto ele acendia a lanterna pendurada na trave do palheiro. O gato que dormia a um canto da manjedoira da jumenta, veio roçar-se nas pernas do rapaz. Bom, pelo menos aqui está tudo acordado, pensou Edmundo e enquanto o animal comia a ração que ele lhe preparara, foi-a selando e informando:
—Hoje, minha velha, vamos para longe. Vamos atravessar a ilha de costa a costa... Santa Cruz... É, minha velhota, vamos até Santa Cruz. Se a gente mexer bem as canelas ainda lá chega antes do meio-dia. São quatro horas bem puxadas... tu sabes, minha velha... já lá foste muita vez.
A burrinha, como se quisesse concordar com o dono, levantou o focinho da tina onde comia a palhada e deu-lhe uma marrada nas costas, Edmundo desequilibrou-se com o empurrão e a retranca escapuliu-lhe da mão...
—Oh!... assim não vale, Teimosa, deixa-te de brincadeiras — e ajustou-lhe de novo a retranca e a cilha.
Chamavam Teimosa à burrita porque, quando se lhe metia uma no miolo, era praticamente impossível fazê-la mudar de ideias. Duma vez, teimou em não seguir Edmundo, e tanto puxou pela arreata que o levou atrás de si. Arrastou-o até ao poço do outro lado da casa, bebeu e, reconfortada e conformada seguiu o dono na mais perfeita obediência.

Era ainda escuro quanto atravessaram a aldeia, uma vaga luminosidade hesitante deixava apenas adivinhar os vultos das casas á beira do caminho, as paredes, a igreja... Só por alturas do Mosteiro, a aldeia vizinha, é que clareou de todo e o mundo se encheu de vida, de ruídos, de cor, de movimento. Os pássaros chilreavam nos bardos, as galinhas cacarejavam nas capoeiras, as vacas mugiam, os cães ladravam, um gato atravessava furtivo em frente da Teimosa e, à entrada do portal por onde se ia sumir, já seguro de si, parava a olhar os estranhos viajantes... Ao sair da aldeia, Edmundo avistou um vulto que caminhava aos solavancos, mais adiante, e reconheceu-o:
—Ó perna-bamba, já a girar, tão cedo. Espera, homem, que vamos juntos.
O manco era amigo de Edmundo, embora mais velho. O Mário da Velha Couta, que tinha tido paralisia infantil e ficara com uma perna murcha, ia ordenhar as vacas às suas relvas dos Terreiros. Ouviu e reconheceu a voz de Edmundo, voltou-se e esperou apoiado no comprido bordão:
—Então e tu... para onde vais tu, a uma hora destas?
—Vou-me a Santa Cruz buscar o meu violino...
—Buscar o quê?...
—O meu violino — repetiu Edmundo — de olhos postos nas orelhas da Teimosa, para evitar o olhar do amigo.
—Torceste do miolo — perguntou Mário, espetando o indicador na testa e fazendo o gesto de quem aparafusa alguma coisa.
Edmundo continuou calado a olhar para a crina da burra com um sorrisinho de quem estava gostando da reacção do outro que continuou
—Vocês são todos doidos... “buscar o meu violino”... Para que diabo queres tu um violino. É o que eu digo, do Lajedo nunca saiu coisa que se dissesse benza-te Deus. É tudo amalucado.
—Artistas queres tu dizer, os do Lajedo são artistas, músicos de primeira, vocês é que não prestam para nada aqui no Mosteiro. Vocês nem sequer têm uma capela que se veja...
—Deixa, deixa, que beatices não faltam cá também...
Riram-se os dois e puseram-se a caminho lado a lado.

A partir do Mosteiro, Edmundo podia ter encurtado caminho virando a nordeste. Por atalhos que atravessavam relvas e ribeiros, teria atingido mais depressa o dorso central da ilha, a tirada mais longa e mais inóspita da viagem a Santa Cruz. Mas com Teimosa à trela, tinha de optar por caminhos mais andáveis. Além disso, a conversa e a companhia de Mário, conscientemente ou não, protelavam o momento de enfrentar os receios próprios, os prognósticos maternos e os perigos reais da grande travessia. Falaram de raparigas bonitas e feias, brincalhonas e sisudas, de vacas boas e de vacas más e duma ribanceira que caíra por alturas da Ribeira do Fundão e tinha tapado o Caminho de Baixo. Edmundo, sempre que podia ia intrometendo na conversa a narrativa do seu violino e do seu amor pela música. Que sempre tinha gostado de música. Que desde pequeno fazia gaitas de canas e cornetas de folha de caseira e tocava música. Quando havia ensaios na capela fugia de casa e escondia-me no coro da igreja para os ouvir e ver ensaiar. Quem tocava violino, na capela era os José de Cima da Fonte. Pelava-se para o ouvir. Uma vez passou lá por casa dele quando o violinista estava praticando e escondeu-se atrás da casa para o ouvir mais de perto. Empoleirado entre as espadanas tinha escorregado, caído e partido a cabeça.
—Olha, ainda tenho a cicatriz na testa. Ele ouviu-me a chorar, apanhou-me com a cabeça a escorrer sangue e levou-me para casa dele. Amarrou-me um pano à volta da ferida e ia-me levar a minha mãe, mas eu pedi que me deixasse primeiro experimentar o violino. Ele deixou e foi o princípio duma paixão que ainda não me passou. Ele tem me ensinado às vezes e agora eu vou ter o meu violino.
—Pois sim, pois sim — disse-lhe Mário — mas olha que hoje ainda não está tempo para atravessar esses matos. Se isto se fecha de névoa e chuva não vês um palmo adiante do nariz. Eu, se fosse a ti, não ia hoje... Espera mais umas semanas...
—Tu também? Vocês são todos uns medricas, para diante é que é caminho.
—Está bom. É contigo. Mas olha que já se perdeu gente aí para cima... Se o tempo se fechar e tu te perderes, amaça-te, pára e espera que clareie, não te ponhas a andar à toa que entonteces e cais nalgum valado e pronto, nunca mais ninguém te encontra...
—És um maricas medroso. Olha, só para tu veres, logo à noitinha, quando passar para trás, bato-te ao ferrolho para te mostrar o violino.
—Pois oxalá... Deus queira que sim.
Separaram-se.
Os Terreiros, como o nome sugere, é uma ampla quebrada, a meio da vertente oeste da ilha. Uma zona de amplas e férteis pastagens onde Mário tinha as suas relvas. Foi lá que os dois moços e amigos se separaram. Mário ficou-se a ordenhar as vacas e Edmundo, com a Teimosa pela trela, e intimamente cheio de receios e apreensões, lançou-se na grande aventura que por pouco lhe havia de custar a vida. Pôs-se a subir a serra, mais ravina do que encosta, por uma picada que dali escalava até às alturas do planalto central da ilha. A ladeira era comprida e íngreme, quase a pique. Teimosa ia seguindo o dono, mas sem entusiasmo, quase a reboque. Entre bardos de hortênsias ainda secas, em plena hibernação, viam-se vestígios de relheiras de carros de bois que traçavam na lama já endurecida dois sulcos perfeitamente paralelos. Entre as relheiras estendia-se um trilho de terra batida salpicado de ervas e arbustos raquíticos e era por aí que penosa e lentamente trepava Edmundo seguido da jumenta.
Quando, estafados, chegaram ao cimo da encosta, tinham entrado, quase sem dar por isso, noutra zona climática, desabrigada, húmida e fria.
Nas ilhas montanhosas é assim, as zonas climáticas sobrepõem-se quase na vertical. À beira-mar, um tempo morno, tropical, aconchegante, e um pouco mais além, no alto dos morros, nos cimos da serra, a umas centenas de metros mais acima, ventos hostis, nevoeiros frios, neves, gelos...
Chegados lá a cima, Edmundo sentiu o frio e o vento que soprava impertinente, e parou para abotoar a froca até o pescoço. Teimosa, que se tinha detido ao lado dele de cabeça pendente e triste, sacudiu as enormes orelhas borrifando-lhe as faces com um chuveiro gelado que lhe deu arrepios. Só então é que Edmundo viu que as últimas dezenas de metros da empinada subida tinham sido já no meio de uma neblina enregelante. Procurou no bolso das calças um lenço para se enxugar. Passou-o pela cara e pelos cabelos e o lenço ficou tão encharcado como se tivesse caído num poço de água. É... isto aqui só com guelras, meu Deus. Isto, de facto, ainda está frio aqui em cima... E húmido... e ventoso. Lembrou-se das apreensões e dos medos da mãe, se calhar era melhor ter esperado mais umas semanas. Mas agora, para diante é que é caminho. E pôs-se a andar em grandes e decididas pernadas, inclinado para diante, rompendo o vento e a neblina, e obrigando a jumenta a trotar à sua frente.

O terreno agora era direito e o rudimentar caminho de bois com a relheiras menos marcadas ia passar sobre uma ponte de madeira já visível no nevoeiro à frente do animal. Teimosa à medida que se aproximava da ponte ia levantando a cabeça e afitando as orelhas, sinal de que a ponte lhe metia medo e, ao chegar lá, recusou-se a atravessá-la. Debaixo daquela chuvinha teimosa, batida do vento leste, Edmundo tentou por todos os meios forçar o animal a atravessar a ponte. Pôs-se à sua frente puxando-a pela arreata, pôs-se atrás dela e tentou empurrá-la para cima aponte, ralhou-lhe, bateu-lhe... Nada. Não houve maneira de convencer a Teimosa. O vento ia crescendo e vergastando-o com aqueles borrifos gelados que ensopavam. A visibilidade reduzia-se a uns escassos metros. Já todo alagado e fustigado pelo vento que em cima da ponte soprava mais forte, Edmundo desistiu de convencer a burra a atravessar e resolveu-se a descobrir sítio para atravessar a ribeira a vau. A ravina do lado de lá da ponte, embora mal se visse no baço da neblina, parecia baixa e facilmente acessível ao caminho. O pior era para descer lá para baixo. Pôs-se a procurar, ao longo da margem, um lugar por onde pudessem descer para o leito da ribeira, que, dada a altitude a que já estavam, levava ainda pouca água. A enterrar-se até aos joelhos em moitas de líquenes esponjosos, carregados de água, Edmundo seguiu a margem da ribeira tropeçando aqui, escorregando ali... Agarrava-se com uma mão aos zimbros e às queirós para ajudar, com a outra, a arrancar as botas aos líquenes e à lama que lhas prendiam... Aproximava-se perigosamente da margem e não encontrava lugar para descer e atravessar a ribeira a vau. Desesperado, confuso, a tiritar, chorando, resolveu voltar para a entrada da ponte onde tinha deixado a Teimosa. Meu santo Anjo da Guarda ajuda-me que eu não saio daqui vivo... e soluçava. Porque é que eu fiz esta maldade, santo Deus? Porque é que eu não ouvi os conselhos da minha mãe?... De repente, sentiu-se escorregar, viu aos pés o vazio da ravina e rolou por ela abaixo, aos tropeções, até ao fundo da ribeira. Acabou meio sentado à borda da corrente, as pernas metidas na água gelada, as botas a querer fugir-lhe dos pés... levadas pela ribeira. O corpo doía-lhe, moído da queda. Deixou-se cair para trás e ficou encostado ao barranco. Sentiu que a cabeça rodopiava, leve, leve, e pensou que ia perder os sentidos.
Entrou em pânico, gritou por socorro, acudam-me, socorro! Depois num assomo de desespero, dentes encarrilhados de raiva, soergueu-se, apanhou as botas e, descalço, de calhau em calhau, arrastando-se aqui, gatinhando ali, meio metido na água gélida da corrente, conseguiu atravessar para o outro lado e vir descendo até debaixo da ponte. Quando, depois de várias tentativas frustradas, conseguiu subir o valado e chegar ao caminho do lado de lá, deixou-se cair desamparado na relheira e perdeu os sentidos. Quando voltou a si, o corpo doía-lhe como uma chaga, notou vaga e confusamente que Teimosa estava junto dele e compreendeu que ela tinha atravessado a ponte. Tentou levantar-se mas não foi capaz. Tentou de novo agarrando-se ao rabo da burra e, depois de muito esforço, conseguiu escarranchar-se em cima do animal.

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Do resto da viagem Edmundo não se lembrava, quando muitos anos depois me contou esta história. Só se lembrava de ouvir os cascos da jumenta a caminhar num ritmo consolador, debaixo de si, e de confundir numa espécie de delírio febril, as imagens do pesadelo que o acordara de madrugada com outras de experiência mais recente.
Já alta noite, Edmundo sentiu que Teimosa parava em lugar que lhe sugeria vozes e cheiros familiares. A burrinha tinha-o levado ao pequeno pátio duma casa de Santa Cruz onde ela estava habituada a parar em prévias viagens à vila.
—A Teimosa tinha-me salvado a vida — disse-me ele — tinha-me levado a casa de minha Tia Laura que havia muitos anos vivia em Santa Cruz. No outro dia mandou-se notícia para o Lajedo de que eu estava bem e de que ficava a descansar uns dias em casa da Tia.
—O cobertor do Alfredo Violeiro foi encontrado dias depois, no mato, à entrada da ponte da ribeira Grande. Estava encharcadíssimo, mas secou-se e levou-se a casa do habilidoso marceneiro que entregou o violino satisfeitíssimo com a troca. As botas de Edmundo, essas nunca mais apareceram.