Os olhos de Clarice
Quando o sinal soou anunciando o término das aulas daquele dia, eu corri no meio da garotada para assistir ao espetáculo anunciado à boca miúda, na hora do intervalo: a briga entre dois meninos da sexta série B.
A rua ficou lotada. A molecada estava ansiosa para ver a luta corporal e disputava entre si os melhores lugarzinhos.
O sol do meio-dia castigava os pequenos uniformizados, riscando-lhe as faces com gotas de suor.Por que essa peleja não começa de uma vez? - pensei ao virar um gole d'água da garrafinha.
Pouco a pouco, a multidão decepcionada foi se desfazendo, assim que um garoto gordinho, de cabelos finos e levemente molhados, anunciou, ofegante, para a meninada em polvorosa:
-Eu acabei de vê-los na diretoria, não vai mais ter briga!
Aquela espera inútil fez nascer em mim uma vontade imperiosa de urinar. Pensei em voltar à escola.Mas se os briguentos achassem que eu fui lá para espioná-los? Talvez sobrasse até para mim.Não, eu apertaria o passo e faria em casa.
No caminho, tentei pensar só em Clarice, em seus cabelos escuros e volteados, enquanto entrefechava os olhos.Mas como era difícil desviar o pensamento para qualquer outra coisa quando o corpo quer falar mais alto que a mente.
A cada passo, a vontade aumentava.Queria fugir de mim mesmo.Apanhei o chiclete no bolso e o masquei, com toda energia para ignorar a senhora que lavava a calçada com uma mangueira.As gotículas de água brilhavam ao sol formando um singelo arco-íris.Assim era eu, tinha todas as cores da angústia.
Ai, Clarice! Será que um dia eu vou ficar bonito e você vai olhar para mim? Daqui a um ano vou tirar meu aparelho, mas e essas espinhas? Por que você não foi ao colégio hoje? Ai, que vontade de fazer xixi!
Respirei fundo.Estava chegando.Só mais uns minutinhos.Você já beijou na boca, Clarice? Eu não! Por favor, xixi, não saia, não saia!
-Zeca – gritou um homem do outro lado da calçada. Fingi não ouvi-lo.
Segui trançando as pernas.Eu já não me aguentava mais.Andava com o corpo arqueado. Seus olhos acinzentados são tão belos, Clarice.Nunca vi olhos assim. Ela me disse que dependendo do dia, eles ficavam com uma cor diferente; ora verde, ora cinza.Queria ser assim: um dia bonito e no outro eu mesmo.
Empurrei o portãozinho enferrujado de casa me contorcendo.Um jato me escapou.Senti-me levemente morno.Rápido, Zeca! Rápido!
A porta estava fechada.Bati, gritei:Manhêêêêêêêê...Socorro!
Quando o segundo jatinho de urina saiu,rendi-me: abaixei a bermuda e fiz xixi ali mesmo, no vaso de plantas da mamãe.Ufa, que alívio,meu Deus:
-Dona Geralda, a senhora viu a minha mãe? – indaguei à vizinha.
-Ô, meu filho.Eu nem vi que você chegou.Sua mãe saiu para ver um emprego.Ela disse que é para você esquentar o almoço.Ah, a chave da porta está no vaso de espada-de-são-jorge.
-Onde a senhora disse que mamãe guardou a chave?Ah, não!
- A chave está no vaso de planta!.Escuta, tem alguém batendo palma em seu portão.
Meu coração e meus lábios disseram em uníssono ao vê-la: Clarice.
-Oi, Zeca.Vim copiar a matéria.Não deu para eu ir à escola , fui ao oculista.Vou ter de usar óculos.Você acha que eu vou ficar feia?
Os belos olhos de Clarice por trás de lentes corretivas!? Será que agora eles enxergariam a pureza de meus sentimentos?
-E então, vamos entrar? Sabe o que é? Estou com uma vontade doida de fazer xixi.Poderia usar o seu banheiro?
(Maria Fernandes Shu –20 de maio de 2009)